3 – Fiolhais é cientista, mas também é homem religioso. Isto
vê-se bem quando ele procura atenuar a rigidez do ateísmo de alguns cientistas
– casos de Bohr e de Schrodinger – tentando ver neles o seu possível lado
religioso. É por isso que o autor, fazendo bem escolhidas citações destes
físicos, conclui que os dois reconhecem “a necessidade de realidades
exteriores à realidade material que é objecto do método da ciência” (sublinhado nosso). Que realidades,
então, serão essas? Realidades espirituais? Divinas?
Eis alguns segmentos da citação de Schrodinger: “Espanta-me
muito a deficiência do quadro científico do mundo à nossa volta. Ele fornece um
monte de informações factuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem
magnificamente consistente, mas não nos dá mais do que um medonho silêncio
sobre as pessoas que estão perto do nosso coração, que são o que realmente nos
importa. Ele não nos diz uma palavra a respeito do amargo e do doce, do vermelho
e do azul, da dor e do prazer físico, do belo e do feio, do bem e do mal, de
Deus e da eternidade” (p. 64, sublinhado nosso).
Começa então este físico por se lamentar de que “o quadro
científico do mundo real à nossa volta” não nos dá “mais do que um medonho
silêncio sobre as pessoas que estão perto do nosso coração, que são o que
realmente nos importa”. E nós, a esse lamento, podemos responder perguntando: e
terá, a ciência, de dar mais do que dá? Competirá à ciência física quebrar esse
medonho silêncio e, em seu lugar, fazer avultar o mundo simbólico que nós e as
pessoas (que nos estão perto) criamos com os nossos corações e espíritos?
Depois, que “realidades exteriores” há aqui referidas, para além de nós e das
pessoas que amamos, todos nós que florescemos da materialidade que também
somos? É a isto que ora vamos tentar responder.
Que coisas são, com efeito, o doce e o amargo? Serão
mesmo “realidades exteriores à realidade material”? Parece que não, pois que o doce não é uma outra realidade distinta
e diferente, para além das realidades de mim e do mel, tal como o amargo, para além de mim e do limão. Em
si mesmos, o doce e o amargo não são realidades exteriores a
mim, ao mel e ao limão. Sem falarmos dos seus conceitos, o doce e o amargo são
sensações minhas, a partir de características do mel e do limão.
O mesmo se diga do vermelho
e do azul, do belo e do feio, mudado
aquilo que mudar se deve. Sem consistência real, eles só existem na minha
realidade humana que sente, e nos reais objectos que, pelas suas
características, eu acho que são vermelhos,
ou azuis, ou belos, ou feios.
E que dizer da dor
e do prazer físico? Eles têm ou são realidades distintas e diferentes, fora de
nós e de quaisquer outras coisas que eventualmente no-los possam causar? Quer
se fale de dor mental ou física, e também de prazer físico e ainda espiritual,
nada disso tem consistência real. O que há realmente são pessoas doridas física
e/ou mentalmente, bem como pessoas deleitadas física e/ou espiritualmente, tudo
isso motivado ou favorecido por qualquer agente real: nós mesmos, ou fora de
nós.
Por outro lado, bem e
mal, bom e mau, coisa boa e coisa má, o amor é bom e a injustiça é má, tudo
isto são graus de abstracção ou subjectividade, embora em direcção descendente,
e portanto caminhando para serem realidades, que de facto ainda não são. Porque
o amor só existe realmente em concretos
amantes, tal como a injustiça também só é real em concretas pessoas agredidas ou agressoras:
as primeiras padecendo, agindo as segundas. Amor e ódio, justiça e injustiça
não são propriamente realidades: o que é real são pessoas que amam ou odeiam,
que são justas ou injustas. Os valores humanos não são realidades em si mesmos,
mas só na concreta realidade dos humanos e também nas realidades da sua
circunstância. É por isto que os tribunais, por exemplo, presentificam, também
eles, o valor humano da justiça.
Onde estão então as “realidades exteriores à realidade
material”, de que fala Fiolhais, como estando presentes nestes dois físicos
ateus, e concretamente em Schrodinger? Realidades espirituais? Divinas? Pois
nem sequer são realidades em si mesmas! O que acontece é que o ser humano é
dotado de mente, sobretudo de espírito. E aquilo que aí se passa, para um
físico, até mesmo ateu, é tão inexplicável que até poderia ser divino.
Espiritual, é com certeza, e até transcendental, como adiante se verá, mas transcendente
não. E é claro que não há só a ciência física, com a qual se olha mais para
fora do que para dentro. Para o caso que temos em apreço, existem sobretudo as
ciências do espírito.
Ah, mas ainda falta falarmos de Deus e da eternidade, os
dois derradeiros elementos de que fala Schrodinger. Da eternidade, podemos já dizer que não existe. O que poderá existir
são seres eternos, seres não sujeitos às mudanças medidas pelo tempo. E quanto
a Deus, dir-se-á mais adiante.