quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

354 - Falas

Não se pode falar a Deus porque falar-Lhe
é falar para uma imagem mental:
estamos a falar connosco

domingo, 27 de dezembro de 2015

353 - Com Deus

Os monges vivem no silêncio, mas gostam da vida,
são alegres e, dizem, também muito sociais:

“passam o dia inteiro com Deus”

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

352 - Poços de Água ou de Solidão

Somos poços de viva intimidade, entre si comunicantes:
a alma água da terra e do céu entranha-se em cada um,

mas cada um, se não está interligado, seca de solidão

domingo, 20 de dezembro de 2015

351 - A Música e o Silêncio

Quando nos pomos a ouvir música baixinho,
acontece que é ela que emerge do silêncio

ou é o silêncio que nasce de dentro dela?

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

domingo, 13 de dezembro de 2015

349 - O Poder do Nada

Ser nada é alguém poder abraçar o mundo
e, nesse abraço, poder também dar a outrem,

sem condição, seu coração

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

348 - Encantamento

O que é que mais nos encanta numa bela melodia:
são os sons que a levantam, ou é o almo silêncio
que até na rede dos sons dela se infiltra?


domingo, 6 de dezembro de 2015

347 - No Rio da Vida, Transcendendo o seu Curso


1 – Olá, amigas e amigos! É por volta dos três ou quatro anitos que as crianças chegam ao conhecimento do sentido da palavra eu, e logo, antes que a consigam utilizar, se aprestam a usar palavras mais fáceis de idêntico sentido, como são as palavras mim e meu. Ora, isto leva-nos a fazer muitas perguntas, e também a tentar responder-lhes.
Que sou eu? Não perguntamos aqui pelo eu social ou jurídico ou até tributário (!), mas pelo eu mental. O que é, então, o eu mental? Respondemos que, o mais provável, é ele ser um molho de desejos e temores e pensamentos e doutrinas, tudo mergulhado e vivenciado no tempo, e tudo ligado pela memória. Mas então, nós somos isso, isso tudo, ou somos só e simplesmente a luz que de fora o olha? Estamos a ver-nos a ser isso, ou, pelo contrário, somos só essa luz que vê? É que há muito quem diga – nomeadamente em livros de auto-ajuda – quem diga que, profundamente, nós não somos esse eu mental mergulhado em vivências temporais, sendo por isso preciso desfazermo-nos dele, para enfim sermos só aquela luz que até chamam eterna.

2 - O que parece mais acertado é que nós somos as duas coisas, isto é, o eu mental e a luz que de fora o olha, ou seja, somos o observado e o observador. São as duas faces da mesma realidade mental: a face vivida ou primária e a face reflexa, a qual até poderíamos designar de espiritual em segundo grau. Durante a vida, não parece poder existir só uma destas faces sem a outra, já que ambas dependem sobretudo do nosso cérebro, portanto do nosso corpo que, como todos experienciamos, é mortal.

3 - Não obstante, é muito saboroso sentarmo-nos na margem do rio da vida, olhando as águas do nosso eu mental passando, mais tumultuosas amiúde do que lisas, sem nos envolvermos sobretudo nesses tumultos. Estar na margem é não só vermos a uma certa distância os problemas para melhor depois os resolver, mas também – e bem mais que isso - é também aí o lugar (sem lugar) de onde vemos que não vamos com as águas, mas simplesmente estamos, simplesmente somos. Somos simplesmente presença.
Isto, porém, só pode acontecer-nos porque saímos temporariamente da corrente. E assim, isto não é desfazermo-nos do eu mental – coisa de todo impossível – mas sim, e sem constrangimentos, desocuparmo-nos dele temporariamente e até transcendê-lo. De facto, quando nos acontece esse estado de presença, que é o estado de quando somos nada, ou vazio, subitamente nos ligamos a tudo e nos surpreendemos repletos de uma indizível paz, de uma intensa alegria de estarmos vivos.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

346 - A Dança de Tchaikovsky

Tal a rosa ou o lírio, de miríades de partículas no vazio
suspensas e unidas pela vibrante e criadora energia,

assim nós dançamos a nossa valsa das flores

domingo, 29 de novembro de 2015

345 - Sentir-se Universo

Gosta de se sentir Universo e até nele se perder:
paixão já de Espinosa e de Einstein, ou é
a vacuidade humana a pedir o Inominado?


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

344 - Para Além de Conceitos e Palavras

Que diferença há entre o Deus e o Vazio,
os dois sendo tudo-em-tudo-e-mais-além?
Não são duas tradições a dizerem o mesmo?


Nota: R. PanniKar (1918-2010), jesuíta catalão, fez-se budista sem deixar de ser cristão. Quase no final da sua vida, depois de regressar da Índia, ele escreveu: “Eu deixei a Europa como cristão, descobri lá que era indu e regressei como budista, sem jamais ter cessado de ser cristão”.

domingo, 22 de novembro de 2015

343 - Concerto de Opiniões

Opiniões, cada um tem as suas,
e é por isso que eu sou eu e tu és tu:

o concerto entre os dois é que é comum

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

342 - Sabedoria Popular

É certo que a Terra anda à volta do Sol,
mas, tal como ainda se diz que o sol se levanta e põe,

assim também se cumpre toda a tradição do divino

domingo, 15 de novembro de 2015

341 - A Névoa do Hábito

Pela névoa do hábito nos olhos, nós olhamos e não vemos:
não vemos como da primeira vez, e também na última

quando de todo coisas e pessoas nos desaparecem

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

340 - A Não Nascida Presença

Não há o “ser” nem o “não-ser”, mas sim
as formas e o vazio, que as é e mais ainda:

o vazio é a presença não nascida, o silêncio

domingo, 8 de novembro de 2015

339 - O Homem, esse muito Estranho Ser

1 - Desde a antiga civilização romana, pelo menos, que muitos homens têm o hábito de pôr um letreiro no muro da frente de sua casa, a dizer: “Cuidado com o cão”. Esta cautela, é evidente, é pedida aos homens que passam pela rua, mas estes terão de ter mais cuidado com o dono de cada um desses animais caninos – embora até lhe chamem o seu próximo – do que com o cão propriamente dito. Pois nunca se viu um cão a ser tão predador como pode ser o seu dono.
Sem falarmos agora da diária e sangrenta predação que os homens do globo praticam entre si, sabemos por exemplo que nós, os humanos, “capturamos peixes na idade adulta a uma taxa 14 vezes maior do que os próprios predadores marinhos, e em terra matamos carnívoros do topo da cadeia alimentar natural a uma taxa 9 vezes superior” (Net, 27/8/15).

2 – Estranha é também, para Einstein “a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta visita, sem saber porquê, muito embora por vezes pareçamos adivinhar um objectivo. Mas, do ponto de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o homem está aqui pelos outros homens – acima de tudo por aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa felicidade”. Einstein citado por Richard Dawkins, em A Desilusão de Deus, p.255.

3 – É o homem um ser estranho, sim, mas também por outras razões. Pois será pela veemência com que cria, defende e vive do seu eu mental que Krishnamurti diz que “a vida do homem é uma coisa estranha”. Duas vezes pelo menos o diz ele num livrinho de Cartas a uma Jovem Amiga. Di-lo quase no final de duas cartinhas seguidas, mas logo acrescentando nos dois lugares a frase lapidar com que remata os textos e desvenda aquela estranheza:”Feliz o homem que é nada”. Frase que também serve de subtítulo à obrinha deste mestre.

            “Feliz do homem que é nada”, isto é, que, anulando, ou melhor, transcendendo a nascida coisa que é o seu eu mental, está para além dela. Em vez de “ser” ou “não ser”, o homem é nenhuma nascida coisa “nulla res nata”, e por isso é nada (veja aqui o texto anterior).

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

338 - O Nada e as Nascidas Coisas

Há o Silêncio ou o Vazio ou o Nada (Não Nascido)
e as daí nascidas coisas ou formas ou aparências:
Eles são as coisas, mas são para além delas


Nota: A palavra “Nada” procede de “nulla res nata (nenhuma coisa nascida). É o “(Nada) transcendente e comum a Deus, ao homem e ao mundo, o Nada por excelência e não por privação”. O Nada está para além do próprio Deus, pois que Deus não é por nós verbalizável nem mentalmente concebível. Veja Paulo Borges em O Buda e o Budismo, pp. 122-123) e ainda José Arregi em Deus Ainda Tem Futuro?, pp. 205-230.

domingo, 1 de novembro de 2015

337 - Intimidades

Vamos perdendo nossos queridos amigos
até que, quem sabe, um só poderá ficar:

íntimos amigos de nós mesmos

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

336 - Uma Concha Vazia

Junto ao ribeiro, na erva, a concha de um caracol:
dentro, só o Nada para além de todos os deuses,

de onde surgem tu e eu … todo o mundo

domingo, 25 de outubro de 2015

335 - O Incriado e as Formas

Cada forma - dizem – integra o seu espaço,
e, para além da forma e do espaço, há o Vazio:

é o Incriado que sustenta as formas em seus espaços

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

334 - Almo Vazio

Há um fundo de espaço que se cumpre
quando aparece o vulto de uma criança:
Vazio é ela e também é seu espaço


Para a Joana Rita, pelo seu aniversário.

domingo, 18 de outubro de 2015

333 - Os Livros Sagrados

A Bíblia é palavra de homens que, apurados,
tinham os olhos e os ouvidos da alma, e por isso

também se diz ser palavra de Deus

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

332 - Sobre a Fé

Não raro em obra terrena, a fé é causa do sucesso:
será então que, quando acreditamos em Deus,
a fé é também sua causa?


domingo, 11 de outubro de 2015

331 - Um Testemunho Insólito

De agnóstico ateu a agnóstico crente
Olá, amigas e amigos! Mão amiga levou-me recentemente ao feliz conhecimento da existência de um outro blog que, de quando em vez, agora visito por ter coisas muito belas. É o Phytospiritualité. Desta vez, em edição de 7-9-15, ele põe-nos à nossa frente Emmanuel Schmitt (ES) a falar connosco. ES é filósofo e também escritor já eminente sobretudo em países francófonos. E agora, no seu recentíssimo livro que tem por título La Nuit de Feu, ele conta-nos como acontecera aquela sua experiência mística num alto monte da Argélia, no meio das areias do deserto. Experiência mística que bem se pode comparar com aquela, mais antiga, de que fala o nosso texto imediatamente anterior a este. Eis como ES nos conta a sua experiência, partindo nós de dois pequenos segmentos desse livro, entre os citados pelo referido blog:

Eu perdi-me no meio do deserto, sem água nem víveres. Numa exaltação de alegria, eu acabava de descer apressado o monte Tahat, o pico mais alto do Hoggar, com essa pressa perdendo o contacto com os meus companheiros de grupo. A noite cai e com ela vem o frio. O vento levanta-se e com ele o medo de ter medo. Então, eu cavo um leito de areia, sepultando aí o meu corpo já congelado em seu torpor. (…) Ao fim de alguns minutos, eu sinto o meu corpo dividir-se em dois. Um fica na terra, o outro sobe aos ares. À sensação de desmembramento, junta-se a de um alongamento infinito. Eu sou tão grande como o deserto, sou um com o universo. Aproximo-me de uma Força fundamental e fundo-me nela. Totalidade. Mais tempo, mais espaço. Beatitude. Paz. Luz. Tudo tem um sentido. Tudo está justificado. Entro num Fogo. A eternidade dura toda a noite. Voltando ao invólucro do meu corpo, eu tento encontrar palavras. Esta Força não me deixou a sua identidade. Tudo ia para além da linguagem, do conceito. Deus? Sim, Deus, pois que é assim que os homens lhe chamam. Seja o que for que de ora em diante me aconteça, eu sou habitado pela confiança e pela alegria. Quer eu morra ou viva, isso tudo será como crente.
           
Noutro passo, ele diz: Contrariamente ao filósofo ateu (que eu era), agora eu tenho a chance de tirar da minha noite o meu encantamento e alegria. Mas, para as questões que mais me importam, eu não encontro respostas certas. Quando digo “Sim, Jesus é o Filho de Deus”, isto não é a afirmação de uma certeza objectiva mas de uma adesão.
Quer dizer, depois de, perdido no deserto, se ter encontrado com o Fogo, Emmanuel Schmitt passou, como diz, de agnóstico ateu a agnóstico crente.


Nota: Agradeço à Cristina Cidade ter-me dado conhecimento do Phytospiritualité. Soube deste blog quando ela o referiu como um dos seus favoritos, na altura em que se inscreveu como seguidora de O Fascínio. Agradeço e desejo-lhe as maiores felicidades, agora na sua nova aventura em Timor, com a família.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

330 - A Experiência Mística do Sinai

Outrora, no Sinai, sagrado monte,
Deus apareceu e falou, ou foi Moisés que,

apurado vidente e ouvinte, O pôde ver e ouvir?

domingo, 4 de outubro de 2015

329 - Outros Planetas

Se a humanidade desaparecer neste planeta
em razão dos desmandos que pratica,

ela não merece perpetuar-se noutros espaços

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

328 - A Mãe Terra

No rodar do nosso orbe, nunca se cai no universo:
a mãe Terra nos gerou, acolhe até ao fim

e nos guarda, depois de adormecermos

domingo, 27 de setembro de 2015

327 - Uma Escola Singular

Houve outrora a luminosa escola de Apolo,
onde Diónisos, o excessivo, aprendia:

é a perene escola que está dentro de nós

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

326 - Naquele Estio

Após trabalho árduo, num banco se sentou
e, jubilosa, a menina pulou-lhe para o regaço:

a vida às vezes é tão bela que até dói, não é, pai?

domingo, 20 de setembro de 2015

325 - Presença

Corridas as cortinas dos sentidos e calado o pensamento,
entremos na concha do silêncio, e por ele no ser:

viver a partir desse centro, isso é já a perfeição

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

324 - Os Dois Lados da Luz

Feito de tempo, de vicissitudes guardadas na memória,
é o eu. Mas será perene esta luz que de fora o olha?

Ou ela é só a outra face da luz que está por dentro?

domingo, 13 de setembro de 2015

323.4 - A Ciência e o Divino


4 – E eis que chegamos ao caso de Einstein. Partindo de dados do texto do professor de Coimbra, sabe-se que um dia, para desfazer dúvidas sobre aquilo que Einstein, que era judeu, pensava sobre o divino, o rabi de Nova Iorque perguntou-lhe se ele acreditava em Deus, ao que lhe respondeu da maneira seguinte: “Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na ordem harmoniosa de tudo o que existe no mundo, e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos actos dos seres humanos” (p. 67). E noutra ocasião, continuando a fundar-se no judeu Espinosa, Einstein afirmou: “Nós, seguidores de Espinosa, vemos o nosso Deus na maravilhosa ordem e submissão às leis de tudo o que existe, e também na alma disso, tal como se revela nos seres humanos e nos animais. Saber se a crença num Deus pessoal deve ser contestada é uma outra questão”. E pouco depois explica que, para a maioria das pessoas, esta última crença lhe “parece preferível à falta de qualquer visão transcendental da vida” (p. 67), o que manifestamente não é o caso dele, porque já tem esta visão transcendental, assim não precisando de aceitar o Deus pessoal transcendente. Porque ter visão transcendental é diverso de afirmar a transcendência divina: visão transcendental podemos consegui-la só por nossas capacidades naturais, mas o Deus pessoal transcendente, só pela fé se poderá admitir e aceitar.
Ora, como se vê, o Deus de Espinosa (1632-77) e de Einstein é simplesmente um Deus interno ao mundo, e portanto nada mais do que isso. Sendo assim, o Deus destes dois judeus é diferente dAquele Outro do rabi de Nova Iorque, o qual é o Deus tradicional dos judeus, Deus uno, único e pessoal, que se interessa especialmente pelo seu povo. Foi em conformidade com esta última visão de Deus que os confrades religiosos de Espinosa o proscreveram da comum Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Segundo estes – e agora com certeza também segundo o rabi americano – o Deus de Espinosa e de Einstein não é o verdadeiro Deus.
Fiolhais ainda refere que um dia, a quem perguntou ao cientista se ele era uma pessoa religiosa, ele respondeu assim: “Sim, sou, pode dizer isso” (p. 67). Mas é claro que a sua religião é só transcendental, atendendo exclusivamente à maravilhosa realidade do mundo, e não a religião da transcendência divina de um Deus pessoal que se ocupa do destino dos homens.
Einstein é portanto um panteísta: todo o universo e o universo todo é Deus, e Deus nada mais é do que isso. Quanto a ele dizer que é religioso, isso quer dizer que ele vive, com profunda admiração e até comoção e espanto, a profunda consciência do seu panteísmo.

E já que de Deus estamos falando, terminamos também aqui o ponto três. Para além do que disseram o judeu de Amesterdão e agora o judeu Einstein, que mais será Deus? Será Alguém que nós procuramos como aquele que tem sede, sem saber que nada num lago, um lago de água pura? É claro que, se soubermos que nadamos nesse lago, já não temos de/que procurar! É beber dessa água! 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

323.3 - A Ciência e o Divino

3 – Fiolhais é cientista, mas também é homem religioso. Isto vê-se bem quando ele procura atenuar a rigidez do ateísmo de alguns cientistas – casos de Bohr e de Schrodinger – tentando ver neles o seu possível lado religioso. É por isso que o autor, fazendo bem escolhidas citações destes físicos, conclui que os dois reconhecem “a necessidade de realidades exteriores à realidade material que é objecto do método da ciência” (sublinhado nosso). Que realidades, então, serão essas? Realidades espirituais? Divinas?
Eis alguns segmentos da citação de Schrodinger: “Espanta-me muito a deficiência do quadro científico do mundo à nossa volta. Ele fornece um monte de informações factuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas não nos dá mais do que um medonho silêncio sobre as pessoas que estão perto do nosso coração, que são o que realmente nos importa. Ele não nos diz uma palavra a respeito do amargo e do doce, do vermelho e do azul, da dor e do prazer físico, do belo e do feio, do bem e do mal, de Deus e da eternidade” (p. 64, sublinhado nosso).
Começa então este físico por se lamentar de que “o quadro científico do mundo real à nossa volta” não nos dá “mais do que um medonho silêncio sobre as pessoas que estão perto do nosso coração, que são o que realmente nos importa”. E nós, a esse lamento, podemos responder perguntando: e terá, a ciência, de dar mais do que dá? Competirá à ciência física quebrar esse medonho silêncio e, em seu lugar, fazer avultar o mundo simbólico que nós e as pessoas (que nos estão perto) criamos com os nossos corações e espíritos? Depois, que “realidades exteriores” há aqui referidas, para além de nós e das pessoas que amamos, todos nós que florescemos da materialidade que também somos? É a isto que ora vamos tentar responder.
Que coisas são, com efeito, o doce e o amargo? Serão mesmo “realidades exteriores à realidade material”? Parece que não, pois que o doce não é uma outra realidade distinta e diferente, para além das realidades de mim e do mel, tal como o amargo, para além de mim e do limão. Em si mesmos, o doce e o amargo não são realidades exteriores a mim, ao mel e ao limão. Sem falarmos dos seus conceitos, o doce e o amargo são sensações minhas, a partir de características do mel e do limão.
O mesmo se diga do vermelho e do azul, do belo e do feio, mudado aquilo que mudar se deve. Sem consistência real, eles só existem na minha realidade humana que sente, e nos reais objectos que, pelas suas características, eu acho que são vermelhos, ou azuis, ou belos, ou feios.
E que dizer da dor e do prazer físico? Eles têm ou são realidades distintas e diferentes, fora de nós e de quaisquer outras coisas que eventualmente no-los possam causar? Quer se fale de dor mental ou física, e também de prazer físico e ainda espiritual, nada disso tem consistência real. O que há realmente são pessoas doridas física e/ou mentalmente, bem como pessoas deleitadas física e/ou espiritualmente, tudo isso motivado ou favorecido por qualquer agente real: nós mesmos, ou fora de nós.
Por outro lado, bem e mal, bom e mau, coisa boa e coisa má, o amor é bom e a injustiça é má, tudo isto são graus de abstracção ou subjectividade, embora em direcção descendente, e portanto caminhando para serem realidades, que de facto ainda não são. Porque o amor só existe realmente em concretos amantes, tal como a injustiça também só é real em concretas pessoas agredidas ou agressoras: as primeiras padecendo, agindo as segundas. Amor e ódio, justiça e injustiça não são propriamente realidades: o que é real são pessoas que amam ou odeiam, que são justas ou injustas. Os valores humanos não são realidades em si mesmos, mas só na concreta realidade dos humanos e também nas realidades da sua circunstância. É por isto que os tribunais, por exemplo, presentificam, também eles, o valor humano da justiça.
Onde estão então as “realidades exteriores à realidade material”, de que fala Fiolhais, como estando presentes nestes dois físicos ateus, e concretamente em Schrodinger? Realidades espirituais? Divinas? Pois nem sequer são realidades em si mesmas! O que acontece é que o ser humano é dotado de mente, sobretudo de espírito. E aquilo que aí se passa, para um físico, até mesmo ateu, é tão inexplicável que até poderia ser divino. Espiritual, é com certeza, e até transcendental, como adiante se verá, mas transcendente não. E é claro que não há só a ciência física, com a qual se olha mais para fora do que para dentro. Para o caso que temos em apreço, existem sobretudo as ciências do espírito.

Ah, mas ainda falta falarmos de Deus e da eternidade, os dois derradeiros elementos de que fala Schrodinger. Da eternidade, podemos já dizer que não existe. O que poderá existir são seres eternos, seres não sujeitos às mudanças medidas pelo tempo. E quanto a Deus, dir-se-á mais adiante.   

terça-feira, 8 de setembro de 2015

323.2 - A Ciência e o Divino

2 – Fez bem Fiolhais em relacionar os citados cientistas físicos com o contexto socio-cultural em que viviam, para nele averiguar das suas crenças. É que um cientista, enquanto tal, nunca pode chegar à certeza, e muito menos à verdade de que Deus existe ou não existe, pela simples razão de que a ciência física não pode ter como objecto de estudo o Deus que é Transcendente a este mundo sensível em que vivemos. Por isso, sozinha, a ciência não pode ser determinante e decisiva para conduzir o cientista a essa existência ou não existência, embora aqui deva afirmar-se que o pode influenciar para uma ou outra dessas duas direcções.
O que portanto será geralmente determinante e decisivo, neste caso, será o contexto socio-cultural em que cada um desses homens (por acaso cientistas) vivia, sobretudo se a tal contexto se juntar o impulso pessoal do coração que leva à fé, (portanto à crença de que Deus existe ou não existe), levando uns desses homens a acreditar que Ele existe, e outros que não existe. Mas a ciência, como já foi dito, pode ajudar numa ou noutra direcção, como terá acontecido com Schrodinger.


domingo, 6 de setembro de 2015

323.1 (de 4) - A Ciência e o Divino

1 - Olá, amigas e amigos! Com o título em epígrafe escreveu Carlos Fiolhais um artigo, publicado na obra Deus Ainda Tem Futuro?, coordenada por Anselmo Borges. Carlos Fiolhais é um insigne cientista e professor de Física na Universidade de Coimbra, e acontece que, em tal texto científico, ele também se manifesta como crente. Qual é a relação entre ciência, nomeadamente a ciência física, e o divino, isto é, a religião? Pode um verdadeiro cientista, sobretudo um físico, ser também religioso? Ser crente de qualquer uma das conhecidas religiões monoteístas não colide com as conclusões de algumas investigações científicas? Ser cientista físico é determinante para ser ou não ser crente?
Por informações do texto, sabemos que Galileu (1564-1642), Newton (1642-1727), Planck (1858-1947) e Broglie (1892-1987), para além de terem sido físicos eminentes, eram também crentes no Deus das religiões monoteístas. Mas o professor de Coimbra tem o cuidado de escrever que “o enquadramento social se revela determinante para a opção religiosa” destes cientistas, ou que, por palavras semelhantes, “a envolvência social e cultural é determinante na manifestação individual do fenómeno religioso”. Era portanto natural que, por esta razão, os quatro físicos referidos fossem crentes, como também terá sido natural – acrescentamos agora nós – que Bohr (1885-1962), um outro físico famoso, não fosse “uma pessoa religiosa, podendo ser considerado ateu”, já que o seu ambiente socio-cultural dinamarquês assim seria também. Quer dizer, para os cinco cientistas, a ciência não terá sido decisiva para a sua opção religiosa ou não religiosa. Para todos, por igual, foi determinante o ambiente em que viviam.
Já o mesmo não aconteceu com Schrodinger (1887-1961) - famoso físico que vem a seguir no texto de Fiolhais –, o qual foi ateu à semelhança de Bohr, apesar de ter nascido, crescido e vivido em ambientes católicos, na Áustria e na Irlanda. Porque é que, neste caso, o ambiente socio-cultural não foi determinante? Não terá sido porque o cientista considerou que a ciência não se dava bem com a religião? E porque é que não se apresenta ao menos um físico que, em ambiente ateu, tenha sido crente? Não haverá nenhum? Bem sabemos que, sobretudo em tempos idos, por ser demasiado fechado, se não opressivo, era muito difícil romper com o ambiente social e cultural. Mas Schrodinger parece ter rompido.

Fiolhais também refere Heisenberg (1901-76) e Max Born (1882-1970), os dois alemães, os quais seguiram a regra geral: eram crentes, tendo vivido em contexto cristão. Mas, entre os cientistas já citados, ainda refere Einstein (1879-1955), remetendo embora o seu tratamento para mais adiante, em virtude de o considerar um caso especial. E era de facto um caso especial, não só porque ele não acreditava no Deus único e pessoal - como acreditavam os crentes cientistas referidos -, como também não se dizia ateu, como dois dos citados se diziam. Ele afirmava que tinha um Deus, mas esse Deus era outro, e que até tinha religião, mas também ela era diversa. Iremos ver à frente o que isso será.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

322 - A Dança do Ser

Entrei no presente, mas sou feito de passado:
Como pode pôr-se o novo numa vasilha velha?
Quem celebra, no agora, tal festim?


domingo, 30 de agosto de 2015

321 - Na Alma, se Partindo

 Acontecem-nos na vida coisas tão jubilosas
que não resistimos a segredá-las em alaridos de alma:

são peças de loiça caindo no chão, se partindo

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

320 - Uma Boa Colheita

Corria na eira o último afã de ventilar o milho,
e depois de o levar às costas para a caixa, o pai disse:
agora, já temos pão para todo o ano


domingo, 23 de agosto de 2015

319 - Mais Pérolas

Quanto de mais belo poderá fazer um bichinho
se, só para se defender de um grãozinho de areia,

tece a sua, para nós, preciosa pérola!

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

318 - Pérolas

O pescador de pérolas mergulhou no mar
e logrou algumas pérolas muito belas:

assim nós, no nosso íntimo lago

sábado, 15 de agosto de 2015

317 - Num Lago de Água Pura

Não interessa aquilo que se deve ser,
mas o que se é: como quem se sente sequioso,
sem saber que nada num lago de água pura


quinta-feira, 30 de julho de 2015

316 - Agora ou Nunca

Além de pensar, de decidir e fazer,
ainda há a pura consciência de ser:

a felicidade é agora ou nunca

sexta-feira, 24 de julho de 2015

315 (continuação)

3 – Naquele primeiro texto e à primeira vista, como o autor logo ao princípio nos diz que vai “falar sobre a transformação inter-religiosa da imagem de Deus como consequência de encontros no Japão entre pessoas budistas e cristãs” (p. 167), parecerá querer referir-se só a crentes, e portanto excluir os descrentes. No entanto, se olharmos atentamente para toda a citação da conclusão, e sobretudo atendermos a que o autor inicia a mesma conclusão a dizer que “no século XXI vivemos na era do diálogo inter-religioso, intra-religioso e pós-religioso” (sublinhado meu), então é porque o autor não só não exclui os descrentes, como positivamente os inclui.
É esta mesma conclusão que está patente e expressamente se afirma no segundo texto. E a propósito do cientista ateu e seu livro aí citados, eu próprio posso testemunhar o fascínio e a emoção do mesmo quando - lá para o final da obra e já desligado do seu pensamento científico por se render à força do sentimento – fala comovido sobre a evolução e a vida em que felizmente está mergulhado. E quando assim a razão se cala, por já ter feito o seu trabalho, e se ergue a voz dos sentimentos – à ideia vem logo o sentimento da gratidão de estar e ser vivo –, o que é isso senão pura espiritualidade?

Quer dizer, a religiosidade é geralmente espiritualidade, mas a espiritualidade é bem mais abrangente do que a religiosidade. Há espiritualidade que não tem a ver com religiões, e nem por isso ela será menos profunda ou deixará de gerar uma reconfortante felicidade. 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

315 - Religiosidade e Espiritualidade

         1 – Olá amigas e amigos! Religiosidade e espiritualidade serão só uma e a mesma coisa, ou, embora com semelhanças, são duas coisas diversas?
         Para tentar responder a esta questão, citarei dois textos integrados na obra Deus Ainda Tem Futuro?, recentemente publicada e com coordenação de Anselmo Borges (ed. Gradiva). O primeiro texto leva o título O Deus do Oriente e o Deus do Ocidente: a transformação inter-religiosa da fé, e tem a autoria de Juan Masiá, filósofo e teólogo na Universidade Sophia, em Tóquio; o segundo intitula-se Neurociência e Espiritualidade, escrito por Miguel Castelo-Branco, médico e neurocientista, Director do IBILI, Universidade de Coimbra.
        
2 - Eis então a citação do primeiro texto, já na sua conclusão: “O nome futuro da religião e da espiritualidade será a profundidade humana, a tomada de consciência e o contacto com a dimensão de profundidade da vida para agradecer que estamos recebendo vida (sendo vivificados) e para darmos vida (vivificarmo-nos) uns aos outros. Esta é a espiritualidade do futuro, a espiritualidade do Espírito de Vida: consciência agradecida da vida e praxis de dar vida” (pp. 178-179).

E agora, a citação do segundo texto, também na sua conclusão: “Toda a visão holística do mundo é uma forma de fé na sua forma mais básica. Não ocorre necessariamente apenas na fé ou crença religiosa. Como (já) referimos, mesmo os cientistas ateus podem ter um pensamento profundamente espiritual” (p.81), como é o caso de Richard Dauwkins, autor de A Desilusão de Deus, como noutro passo do seu texto o autor exemplifica (p. 76). E logo a seguir, na mesma conclusão, acrescenta: “A sua demanda científica (dos cientistas ateus) pode ser um acto de fé e a descoberta de novos níveis de complexidade e propriedades emergentes levam a experiências profundamente espirituais”.

domingo, 19 de julho de 2015

314 - Sinais Brancos

Que sinais brancos hei-de deixar neste papel
branco, para te gerares entusiasmo,

isto é, para mergulhares no teu deus?

quinta-feira, 16 de julho de 2015

313 - Puzzle

Absorta no seu puzzle de golfinhos,
é a vida como um brinquedo

de que a menina se não cansa

domingo, 12 de julho de 2015

312 - Devida Atenção

O olor do alecrim, do tomilho e hortelã
estão todos por aí, para nós:

quem lhes dá a devida atenção?

quinta-feira, 9 de julho de 2015

311 - Milagre

Neste momento, está nascendo para mim o mundo:
a luz desce do céu, e, estremecendo,
também a exuberante natureza nasce:
um gatinho aparece silencioso e lento
e as buliçosas aves cantam nos beirais.
                                   
Todos os seres são novos para mim
porque também eu acabo de nascer:
tudo anda, tudo flui,
fora do tempo,
no agora,

simplesmente no agora

domingo, 5 de julho de 2015

310 - Merecida Recompensa

Quem leva uma vida eticamente vivida,
é porque passa a vida a fazer o bem:

aquilo que é ético recompensa-se a si mesmo

quinta-feira, 2 de julho de 2015

309 - O Rio Sagrado

O rio Ganges é o rio sagrado da Índia
e, sobremaneira por essa exacta razão,

é também um dos mais sujos do mundo

domingo, 28 de junho de 2015

308 - Múrmura Água

Alimentando a luxúria de altos canaviais,
há a múrmura água de um ribeiro lento:

é o mais lânguido e doce murmúrio do mundo

quarta-feira, 24 de junho de 2015

307.2-3 - A Transmigração das Almas

            2 - Segundo o cristianismo, a alma humana não está sujeita a esse longo ciclo de vidas, cada uma destas em seu corpo diferente, pois que, depois da morte do próprio corpo, tudo desemboca numa eternidade de salvação ou condenação. Mas quem navega na doutrina da transmigração das almas, acredita que elas terão de viver e viajar por vários corpos, condenadas que estão a percorrer todo o ciclo da vida. Pelo caminho, por meio de exercício e da ascese, terão de se ir descartando dos sucessivos corpos, terão de ir fugindo da vida, até desaparecerem no nada ou no universo. Aliás, para Buda, (ao contrário do cristianismo), uma das três grandes marcas da existência humana é a ausência de uma identidade permanente em nós, portanto sem uma alma ou substância pessoal (ver texto 213)).
         Se isto é assim na tradição oriental, bem diversa é a posição do ocidente em relação à nossa alma e à nossa vida. Os próprios estóicos, que tinham por lema moral absterem-se e aguentarem duramente todas as privações e sofrimentos corporais e mentais, eles suportavam tudo isso para salvar a sua vida, a sua única vida, e não para dela se irem desfazendo. Enquanto os estóicos amam a vida e por isso é que aceitam privações e sofrimentos, para os budistas a vida é o grande mal do qual é preciso sair o mais depressa que for possível, através das tais transmigrações.

         3 - É interessante notar que krishnamurti, instrutor espiritual de renome mundial nascido na Índia mas educado e depois sempre vivendo no ocidente – assim quase uma ponte entre os dois mundos -, dizia muitas vezes que “a vida humana é uma coisa muito estranha”. Será que o sentido desta frase terá em fundo a crença na transmigração das almas? Acreditaria ele em tal transmigração? Em resposta a estas perguntas, basta ouvi-lo a falar e a dizer: “A crença é a negação da Verdade; a crença impede a Verdade (…) porque a Verdade é o desconhecido, e acreditar ou não no desconhecido é uma simples projecção pessoal e portanto não é real” (em O Sentido da Liberdade, p. 192). Note-se, porém, que, segundo esta sua opinião, tanto acreditar na transmigração como não acreditar é projecção mental e não realidade.

Há ou não há, então, para nós, transmigração das almas? Atendendo ao que acima fica escrito sobre o assunto, consideramos perfeitamente justificada em termos racionais – já não é crença ou fé, portanto, mas razão – a opção pela não existência da transmigração das almas.

domingo, 21 de junho de 2015

307.1 (de 3) - A Transmigração das Almas

1 - Olá, amigas e amigos! Ainda há quem aceite a transmigração das almas. Antes de mais, porém, definamos os termos. Alma é toda a nossa vida mental, na qual até podemos distinguir propriamente a alma (como centro das paixões que do corpo a ela sobem) e o impassível espírito. Transmigração, por seu lado, significa que essa nossa alma - que é toda a nossa vida mental - habitará vários corpos que até podem não ser humanos, durante todo o seu longo ciclo de vida.

         Poderá então defender-se, de acordo com tal doutrina, que as almas andam por aí vagueando pelo universo, à espera de incarnar num primeiro ou num novo corpo? Não, porque nem sequer se pode pensar uma alma humana (uma vida mental), sem também se pensar no seu próprio e único corpo. Não se fazem corpos para almas, nem almas para corpos. Não há almas soltas e separadas do seu corpo. Para elas poderem subsistir vivas depois da morte (pelo menos do seu corpo), seria preciso que, de alguma forma para nós ainda desconhecida, elas continuassem ligadas ao seu próprio e único corpo. Porque o corpo não é, de todo, um mero receptáculo, uma barriga de aluguer para a alma. Pois que é do corpo, e de mais sítio nenhum, que brota a flor ou se acende a luz que é a nossa vida mental. Na verdade, o corpo - com seus sentidos, sangue, experiências e apetites -, é alimento da alma, seu cúmplice, seu dialogante parceiro tantas vezes acalorado a defender perante o espírito aquilo que deseja.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

306 - O Muito e o Pouco

Entre a morte assistida e a vida assistida até ao fim
vai muito e vai pouco, e o muito é que aqui
se respeita a vida até ao fim, pois ela nos transcende


domingo, 14 de junho de 2015

305 - A Urgência do Tempo

Os anciãos não vão, mas estão, em seu agora:
e os jovens não fazem também o mesmo

quando estão em aporias intransponíveis?

quinta-feira, 11 de junho de 2015

304 - Fora, é um Sopro

O amor, esse valor dos valores entre os humanos,
só é real no amante ou nos amantes:

fora deles, é um sopro

domingo, 7 de junho de 2015

303 - Só

Depois de muitos tratamentos agressivos, todos vãos,
ela pediu só cuidados paliativos, a que o médico anuiu,

também ele irmão na mesma humanidade mortal

quinta-feira, 4 de junho de 2015

302 - O Sentido da Vida

A razão para viver, ou o sentido da vida
está em sabermos transcender-nos:

mesmo a cuidar duma planta ou dum gatinho

domingo, 31 de maio de 2015

301 - Duas Fomes

A fome a que os anafados ricos aspiram,
para terem uma vida mais longa,

matava a dos pobres para viverem com dignidade

quinta-feira, 28 de maio de 2015

300 - Tão somente uma coisa

- A que é preciso darmos atenção
para encontrarmos o caminho da vida?

- Basta darmos atenção à atenção

terça-feira, 26 de maio de 2015

299.2-3

2 - Há passos e pegadas na areia da praia, mas também há passos e pegadas na areia do tempo, areia esta mais seca e movediça que todas as outras. De onde vêm e para onde vão as pegadas do espírito da humanidade? Mas ainda que as pegadas do passado não estivessem um tanto erodidas pelo agreste vento do tempo mas se mantivessem incontaminadas e nítidas por força da tradição e da tradicional autoridade, por esta mesma força, porque potenciadora de falácias, tais pegadas nunca podiam ter para nós a inconcussa consistência de definitivos guias espirituais!
Por outro lado, porém, do futuro é que nada sabemos! Por isso, sem seguro legado do passado e sem nada se saber do futuro, só haverá para nós o caminho de irmos tacteando, livremente na medida do possível, algures entre a fatal necessidade e o fortuito acaso. Porque o nosso melhor guia somos sempre nós mesmos!

3 - Entrevi há tempos, na televisão, o epílogo de um drama romântico centrado num casal de velhinhos, acabados de sair do hospital, aí internados uns dias antes por motivos de urgência. “Até onde achas que o nosso amor pode levar-nos?”, pergunta ela. Ao que ele responde: “Acho que o amor pode levar-nos onde quisermos”! E no entanto … o amor é amor e não razão, a razão fria, que em princípio nada tem a ver com o mundo do coração, com seus afectos e anseios. O amor alimenta-se assim, até ao fim, destas tão acarinhadas utopias!
Mas sem dúvida que o amor pode levar-nos, e muito bem, até ao fim. É mesmo a melhor maneira de irmos. No caso dos dois velhinhos, vão o coração e a razão de mãos dadas, os dois dos dois, em estreita e amistosa cumplicidade. Pois, quando a razão está perante mundos a ela inacessíveis, não será razoável ela entregar-se ao coração? Nestes casos, razoavelmente, o amor é mesmo a melhor maneira de estarmos e de irmos.


Nota: Nos números 1 e 2 deste texto, constam diversas noções devidas a Hannah Arendt, em A Vida do Espírito.

domingo, 24 de maio de 2015

299.1 (de 3) - Passos e Pegadas

1- Olá! Está hoje um belo dia para caminhar na praia: o céu está limpo; o sol, nada agreste, espelha-se nas águas; o mar chão marulha quase até aos pés; e estes, soltos, ora poisam na fresca areia quando dura, ora têm de se afundar nela quando seca e branda. Por isso é que, neste segundo caso, se eu quiser imprimir aos pés um andamento mais rápido e decidido, é bom que suba mais um tanto na areia e aproveite as pegadas de outros pés já nela impressas, assim poupando esforços.
         Há a areia da praia, mas há também a areia do tempo, mais seca esta e movediça que todas as outras areias. Por isso, será útil imaginar e porventura experienciar algumas das pegadas que em muitos domínios a humanidade foi imprimindo na areia do tempo, sobretudo aquelas que se prendem com a sua libertação da fatal necessidade, na medida do possível.
         Ficam então aqui alguns passos e pegadas que a humanidade foi dando e esculpindo na areia do tempo, no processo dessa libertação:
         Houve primeiro, por um lado, a experiência do “homem em sociedade”, do “homem em cidade”, ou seja, o “homem cidadão” ou “homem livre”, mas também a experiência do “homem escravo”. Como se sentiria um escravo em relação a um cidadão, e este em relação àquele?
Aconteceu depois e ainda acontece na humanidade, a experiência do “corpo solto”, mas com a “mente escrava”: escrava dos costumes sociais, das superstições, das ideologias, das instituições e até da autoridade de mestres. Um caso paradigmático deste passo – mente escrava de costumes sociais mas a querer libertar-se deles – foi o caso de Beethoven (1770-1827) que, sob a apertada dependência de um príncipe a fornecer-lhe as sopas a troco de lhe abrilhantar os serões do seu nobremente frequentado palácio, se libertou violentamente dessa situação, rematando-lhe por fim: “Príncipe, o que vós sois, sois por acaso de nascimento, mas o que eu sou devo-o a mim próprio. Príncipes, pode haver aos milhares, mas Beethoven há só um”. Se este artista vivesse a vida toda nessa dependência, ter-se-ia o seu génio libertado, a ponto de criar tão belas sinfonias como criou?
Veio a seguir a experiência do “corpo preso”, mas com a “mente livre”. Corpo preso em masmorras ou cadeias, porventura até à espera da morte, como ainda sucede a muitos e aconteceu por exemplo a Boécio (480-524 pC), que, em estado de inocência e antes de ser executado, escreveu na masmorra a sua Consolação da Filosofia.
Vieram também o “corpo e a mente soltos”, nessa libertinagem mental que redunda em escravidão para a mente e para o corpo. Lembram-se do nosso António Variações a cantar que “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”, não lembram?

Veio finalmente o passo do “corpo solto e habituado”, e com a “mente livre”. De facto, é quando o corpo está bem calhado em hábitos sadios, que o espírito se pode soltar em liberdade, dando largas à sua criativa actividade! O corpo não é para ser livre nem escravo, mas para ser habituado àquilo que o espírito, sentindo-o sempre atentamente, achar bom para ele. O espírito é que é feito para ser livre, e nunca de qualquer forma escravizado.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

298 - O Arco de um Abraço

Quanto mais caro é um produto, mais valioso?
Então … e esta benigna brisa no meu rosto

e o arco do abraço de uma criança?

297 - Um Órgão Precioso

Qual é, no nosso corpo, o órgão mais precioso:
os ouvidos, o coração, os olhos …?

Ou será o ombro, para amparar quem precisa?

quinta-feira, 14 de maio de 2015

296 - O Líquido Olor das Tílias

Corre agora, pela cidade plana,
O aéreo e líquido olor das tílias:
Quem pode, nesta vida turbulenta, senti-lo?


Cantanhede, 13 de Maio de 2015

domingo, 10 de maio de 2015

295 - Haja Saúde

Podem os remédios curar as doenças do corpo
e também aliviar as feridas da alma:

mas, da alma, só o amor é a saúde

quinta-feira, 7 de maio de 2015

294 - Toada em Tom Menor

Andamos, muitos, perdidos no mar, náufragos,
ou de pés não assentes na terra, mas bem no ar:

Ai cedros ai pinos, profundos no chão, sublimes no céu!

domingo, 3 de maio de 2015

293 - O Milagre da Vida

As árvores vestem-se de folhas e de flores, e depois,
de frutos. São elas que sabem como fazer,

ou só nós lhe pomos essa intenção?

quinta-feira, 30 de abril de 2015

292 - O Princípio e o Fim

Enfermeiras e médicos, em concertado labor,
ajudam o bebé a nascer:

e quem ajuda um velhinho só e triste, a morrer?

domingo, 26 de abril de 2015

291.3 - O Mundo em que Vivemos

         3 – Esta última hipótese poderá aplicar-se a Fernando Pessoa. Ele nunca aceitaria o teor dos textozinhos do ponto/2, sobremaneira as citações do primeiro. Mas daqui, nasce uma pergunta: então não é verdade que Pessoa está quase constantemente a impregnar os seus poemas de motivos religiosos, falando de deuses antigos, da Virgem-Mãe, desse Menino Deus - o Deus recente que fugiu do céu -, e de muito mais? Sim, é verdade, mas o poeta utiliza todo esse material simbolico-religioso, não por ser crente e para confessar a sua crença, mas para enriquecer os seus poemas, dando-lhes nomeadamente uma larga dimensão de transcendência.
            Lembremo-nos de que, para ele – e até numa perspectiva mais ampla e radical – “o poeta é um fingidor”, o qual, por sua própria natureza, é um criador de mundos virtuais e simbólicos, para além do mundo real das coisas na sua realidade nua.
         É claro que Pessoa, pela voz de Caeiro, não se cansa de dizer: “O mistério das coisas, onde está ele? /…/ Porque o único sentido oculto das coisas / é elas não terem sentido oculto nenhum”. Mas quando ele próprio está dizer que as coisas são só coisas e nada mais, não lhes estará já a acrescentar algo, que é precisamente isso de elas não serem mais nada? Diáfano véu, sim, e finíssimo, a cobri-las, mas ainda assim véu.
      “Tristes de nós que trazemos a alma vestida”, continua ele. E se a trazemos assim, vestida da nossa subjectividade, como poderemos ver as coisas do mundo, na sua realidade nua? Como podem os nossos olhos, assim tintos, assim cúmplices, contemplar o mundo original? Por isto é que este reino é das crianças e de mais quem não tenha os olhos tintos e turvos, para poder ver o mundo na sua realidade pura.




sábado, 25 de abril de 2015

291.2 - O Mundo em que Vivemos

         
2 - Àqueles quatro textozinhos já publicados, acrescentemos ainda, agora, mais dois pequenos textos, extraídos da obra Deus Ainda Tem futuro?. O primeiro constitui-se de uma citação de Paulo, quando diz que “Deus será tudo em todas as coisas”, e também de uma outra, extraída do Evangelho de Tomé, onde se põe Jesus a dizer: “Eu sou o universo: o universo surgiu de mim e chegou até mim. Parti um tronco e ali estou eu, levantai uma pedra e ali me encontrareis” (p. 230).
         O segundo pequeno texto é um poema de Hakuin (1685-1768), mestre do budismo Zen: “Todos os viventes são / originariamente budas. / Como a água e o gelo. / Não há gelo sem água. / Mas não nos damos conta. / Buscamos na lonjura o que temos à mão. / Que pena ver a gente extraviada / buscando longe a Verdade / que mora no seu interior / como quem se queixa de sede / enquanto nada num lago!” (p. 179).

         São dois textos paradigmáticos de como o intenso mundo simbólico dos humanos não só cobre o mundo real, como penetra e se entranha até ao âmago das coisas, porventura quase as anulando mas também sublimando: por um lado, as coisas nada menos e nada mais serão que Deus, o qual também se encontra por toda a parte no interior dos madeiros, dentro das pedras se as partirmos e, ao lado delas, se escavarmos; por outro lado, porque já somos originariamente iluminados, além de gelo também somos água, água viva com que podemos dessedentar-nos, e até nela nadar e perder-nos nesse meio divino. No gelo e na água, portanto, nós estamos a ver-nos a nós mesmos, porque, de algum modo, também somos água e gelo, o que também faz com que água e gelo sejam mais que gelo e água. Em suma, quem tem fé, vê as coisas assim, mas para quem a não tem, as coisas são simplesmente coisas, e nós, perante elas, delas distintos.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

291 (1 de 3) - O Mundo em que Vivemos

1 - Depois da publicação dos últimos quatro textozinhos, ficam duas perguntas, a que, depois delas, agora se procura responder: afinal, nós conhecemos realmente o mundo em que vivemos? E, se sim, que mundo será esse?
Sim, conhecemos o mundo, mas, cada um de nós conhece-o de uma forma individual e distinta. Sim porque, apesar de podermos alcançar a verdade, que, como dissemos, é a face das realidades do mundo em nós, cada um conhece o mundo à sua maneira, a qual portanto é diversa das muitas maneiras com que os outros o conhecem, também sempre e só à sua maneira, ou maneiras, pois que também estas vão mudando ou até coexistindo ao longo da vida de cada um.

       Há um argumento irrefutável para dizermos que nós vamos conhecendo razoavelmente o mundo. Se a natureza não nos tivesse equipado com as faculdades necessárias para conhecermos o mundo em que vivemos e assim podermos governar a nossa vida, a mesma natureza, sabiamente, ter-nos-ia feito evoluir noutra direcção para tal conseguirmos.

domingo, 19 de abril de 2015

290 - O Dentro das Coisas

Lá está o mestre a ver das coisas o dentro,
que é elas não terem dentro nenhum,
por serem só e simplesmente coisas


quinta-feira, 16 de abril de 2015

289 - Realidades e Símbolos

Ao objectivo mundo, nas suas realidades nuas,
nós entranhamos-lhes símbolos:

cada um de nós, os seus

domingo, 12 de abril de 2015

288 - A Realidade do Mundo

O mundo existe, sim, mas não o de cada um!
Ainda assim, vamo-nos entendendo,

e entendendo que o mundo existe mesmo

quinta-feira, 9 de abril de 2015

287 - Verdade e Realidade

Se eu justificar as minhas crenças sobre o mundo,
conhecerei a realidade das suas coisas:
a verdade é a face da realidade, em mim


domingo, 5 de abril de 2015

286 - Além de

Não é o sofrimento que nos salva,
mas o modo como o evitamos ou suportamos;

além de o amor

sexta-feira, 3 de abril de 2015

285.5

5 – São precisas ainda mais algumas palavras. A primeira é sobre o silêncio. Para mim próprio – também aqui somos todos diferentes – eu relevo o silêncio, não só para poder trabalhar em melhores condições, mas sobretudo para entrar e ficar dentro de mim, por mais tempo e por mais vezes. Posso assim conhecer-me melhor, e, descendo ou subindo a um nível de silêncio mais íntimo, posso ligar-me a todos e a tudo. Não pode chamar-se a isto isolamento, mas sim, porventura, uma das mais belas formas de estar em comunhão. O afastamento físico ou corporal intensifica uma presença mental.
            Claro que tudo isto já é espiritualidade, sendo esta a segunda palavra necessária. Quando falo de espiritualidade, não falo necessariamente de religiosidade. Sei que há muitos descrentes dotados de uma espiritualidade intensa, com o que se demonstra que, muito embora a religiosidade seja geralmente uma forma de espiritualidade, esta é, nas pessoas que a praticam, de uma forma ou outra, uma realidade muito mais ampla ou abrangente. Espiritualidade liga-se a transcendência: é por aquela que, na nossa pequenez, nos ligamos àquilo que nos transcende.
            A terceira palavra é para relevar a importância do exercício físico, precisamente nesta altura em que as competências corporais vão começando a falhar. E quando o exercício físico também se destina a apaziguar e confortar a mente, como acontece com o ioga, então isso é ouro sobre o azul.
Acrescento mais uma palavra, não necessária mas talvez útil, sobre os lares de idosos. Na minha perspectiva e de acordo com a minha experiência, se bem que eles exerçam um certo poder socializador que no meu caso foi benéfico, eles serão só uma solução de recurso, precisamente para quando o idoso não possa continuar no seu ambiente habitual. A paisagem humana que eles patenteiam não é sempre agradável, e por vezes é deprimente. Além disso, há muitos ruídos nocturnos que não consentem um sono sossegado, assim como o passadio também é bem diverso do habitual. E já que falámos de morte e de espiritualidade, os lares de idosos terão de tratar também espiritualmente a morte dos utentes quando ela acontecer, se não quiserem tornar-se armazéns de velhos, à espera da sua hora.
            Ainda ouso, enfim, deixar-vos uma advertência. Aos gerontes da Antiga Grécia e de outras remotas paragens, quando eles eram chamados a falar nas assembleias do povo, prestava-se-lhes toda a atenção e levavam-se muito a sério as suas palavras sábias. Mas aqui, neste caso, a advertência é: Não dêem muita importância às palavras que vos deixo. Dêem, sim, àquelas que brotarem do vosso coração e da vossa razão. Consta que os antigos judeus ansiavam por uma era messiânica em que o seu Deus lhes daria um novo coração para se ligarem mais profundamente à vida, conhecendo-a e amando-a com o corpo e com a mente. Mas é claro que Deus só nos dará esse novo coração se, e na medida, em que o formos empreendendo para nós mesmos.
E pronto, meus amigos, cesso de vos fatigar, se não de vos aborrecer. Tenho saudades das minhas cegonhas, e por isso, numa breve fugida, ainda vou para elas. Vou ver se as contemplo ainda, talvez rasando as águas lisas do lago, talvez pairando altas no céu quase esquecidas da terra, logo caindo quase a pique até travarem o voo e saltarem para o ninho, se ajuntando à restante família já aninhada, quem sabe se já com novas vidas aladas. Muito obrigado.

Para o Augusto, dois Antónios e o João … amigos do coração


terça-feira, 31 de março de 2015

285.4

4 – A vida não nos deve nada, vem-nos sempre gratuitamente: assim como nos veio e ainda continua a vir, assim nos pode abandonar num ai. E por isso, se ainda temos vida, como temos, se ela ainda nos habita mesmo que já possuídos por alguma doença, festejemo-la com dignidade, bebamos desse vinho ... até cair!
Temos medo da morte? Porquê termos medo de uma coisa desconhecida? Ele é mesmo medo da realidade que será a morte em cada um de nós, ou ele é só uma elaboração do nosso eu mental, que, agarrado à vida como está, não quer morrer? O que custa não é morrer, nem muito menos estar morto. O que custa é o sofrimento a que geralmente estamos sujeitos até lá chegarmos. Se nada me importa não ter existido antes de nascer, porque me hei-de importar com o depois da morte?
 Talvez nos custe admitir que a nossa morte faz parte da nossa vida, ou então que a nossa vida é como uma doença crónica que nos acompanha desde o berço até à tumba. Mas, se o admitirmos, como parece razoável, não só sentiremos que o sofrimento causado pelas dores é menor, como também que a alegria de estar vivo é mais pura e mais intensa.

Além de tudo isto, este mundo em que vivo já há bastantes anos, foi-se transformando num mundo desinteressante, desinteressante e baço, baço e perigoso. Liberdade? Liberdade de expressão? Sim, claro, liberdade. Mas liberdade inteligente e por isso contida, liberdade começando por ser exercida dentro de nós – não sejamos nós escravos de nós mesmos –, liberdade que floresça para produzir o mais saboroso fruto que podemos ter na vida, o fruto do amor.

segunda-feira, 30 de março de 2015

285.3

3 - Havia pois, nessa altura, no lar, e para além de muitos meninos e meninas velhinhos, “três meninas ainda tenrinhas”, já acima citadas, as quais ainda lá continuam a trabalhar, se bem que agora já um tanto durázias. E então, uma vez, quando as apanhei juntas, desfechei-lhes uma pergunta em desafio: “Olhem lá, e se nós abríssemos um blog em que contássemos desta nossa vida aqui dentro”? Uma reunião bastou para tudo ficar decidido. O blog levaria o título de “O Clube dos Poetas Vivos” e teria como subtítulo “O Fascínio pela Vida, pela Vida Breve que nos Possui neste Planeta Azul”. Elas chegaram mesmo a redigir acta para que constasse a decisão, mas depois, como elas fossem aos pardais e também aos seus ofícios na instituição, eu fiquei sozinho a lavrar os textos, seu lavrador permanecendo até à data presente.
Somos os quatro (elas e eu) ainda vivos e, na altura, entendemos que éramos ou poderíamos ser ao menos latamente poetas e instituir um clube com essa finalidade poética. Pois que, olhando bem a vida, esta vida breve que nos possui neste planeta azul, não é de nós ficarmos fascinados com tão significativa realidade? Sabem de onde vem a palavra “fascínio”? Ela provém precisamente do vocábulo latino “fascinum”, que, nessa língua mãe, significava falo. Precisamente, falo. Mas aqui, subindo a um novo patamar de sentido, ele era então e é agora, para nós, esse profundo encantamento pela vida que nos possui ou em que nós andamos metidos.
Quantas coisas há no mundo – no macro e microcosmos – a requerer o nosso deslumbramento, mesmo só perguntando e sem colhermos as respostas! Como será a vida, se é que ela existe, noutros planetas ou luas dessas inúmeras galáxias? Se o átomo fosse vivo como nós, como veria ele esta matéria extensa e mais ou menos dura que nos é tão familiar? E como é o mundo dos morcegos ou das cegonhas?

O blog de que estamos falando está cheio destas ressumbrantes perguntas. Se alguém se entregasse ao ciclópico trabalho de contar todas as perguntas aí formuladas, contaria com certeza centenas. No texto 18, por exemplo, imagina-se uma conversa com o meu amigo e colega Francisco (aí também chamado José), o qual já não está entre nós e era de todos conhecido. Aí se fala sobre profundos assuntos da nossa vida humana. E depois de imaginariamente lhe formular várias perguntas, termino assim o texto: “Por mim, caro Francisco, por mim, simplesmente sondo, simplesmente vou fazendo perguntas. E não me importo de passar o resto da vida assim, sondando e perguntando, pois não me faltam motivos de alegria para viver”.

domingo, 29 de março de 2015

285.2

2 - Na remota altura em que temporariamente estive num lar – não logo ao princípio mas um pouco mais para diante, - a enfermeirazinha, uma das três jovens já referidas, abeirou-se delicadamente de mim e disse mais ou menos isto: “O senhor João anda muito isolado: junta-se pouco aos outros residentes”. De facto, eu tinha já passado a desagregar-me do rebanho pastoreado pela psicóloga nas horas comunitárias, e a refugiar-me no meu quarto. É que, como começasse a ver vários utentes a passarem-se dos carretos, tive receio de também descarrilar e por isso mergulhei na leitura. Não na leitura de novelas leves ou semelhantes coisas que pedem pouca atenção e nenhuma elaboração mental, mas na leitura de livros de bons pensadores que um generoso amigo me enviava emprestados, os quais me obrigavam a pensar profundamente, e até algumas vezes a dizer para mim: “Eh pá, eu nunca tinha pensado nisto"! É uma grande felicidade alguém surpreender-se a dizer a si mesmo esta ou outra expressão semelhante. Elas são indício de uma descoberta que fazemos, muitas vezes até sobre nós mesmos, enfim sobre a nossa comum condição humana. Quem fala destas descobertas que fazemos com a ajuda de bons mestres, também pode por outro lado referir as perguntas e dúvidas que aí nos ficam sem resposta, talvez mais tarde encontrada ou simplesmente nunca.

Quando me contactou, a enfermeira pensava que eu me isolava no quarto, mas não. Aí, lendo o livro que estava à minha frente, eu estava mais acompanhado do que muitas vezes no salão com os outros utentes, se bem que fossem todos amorosos. Podemos sentir-nos isolados numa grande assembleia ou multidão, e muito bem acompanhados quando estamos sozinhos.