domingo, 24 de maio de 2015

299.1 (de 3) - Passos e Pegadas

1- Olá! Está hoje um belo dia para caminhar na praia: o céu está limpo; o sol, nada agreste, espelha-se nas águas; o mar chão marulha quase até aos pés; e estes, soltos, ora poisam na fresca areia quando dura, ora têm de se afundar nela quando seca e branda. Por isso é que, neste segundo caso, se eu quiser imprimir aos pés um andamento mais rápido e decidido, é bom que suba mais um tanto na areia e aproveite as pegadas de outros pés já nela impressas, assim poupando esforços.
         Há a areia da praia, mas há também a areia do tempo, mais seca esta e movediça que todas as outras areias. Por isso, será útil imaginar e porventura experienciar algumas das pegadas que em muitos domínios a humanidade foi imprimindo na areia do tempo, sobretudo aquelas que se prendem com a sua libertação da fatal necessidade, na medida do possível.
         Ficam então aqui alguns passos e pegadas que a humanidade foi dando e esculpindo na areia do tempo, no processo dessa libertação:
         Houve primeiro, por um lado, a experiência do “homem em sociedade”, do “homem em cidade”, ou seja, o “homem cidadão” ou “homem livre”, mas também a experiência do “homem escravo”. Como se sentiria um escravo em relação a um cidadão, e este em relação àquele?
Aconteceu depois e ainda acontece na humanidade, a experiência do “corpo solto”, mas com a “mente escrava”: escrava dos costumes sociais, das superstições, das ideologias, das instituições e até da autoridade de mestres. Um caso paradigmático deste passo – mente escrava de costumes sociais mas a querer libertar-se deles – foi o caso de Beethoven (1770-1827) que, sob a apertada dependência de um príncipe a fornecer-lhe as sopas a troco de lhe abrilhantar os serões do seu nobremente frequentado palácio, se libertou violentamente dessa situação, rematando-lhe por fim: “Príncipe, o que vós sois, sois por acaso de nascimento, mas o que eu sou devo-o a mim próprio. Príncipes, pode haver aos milhares, mas Beethoven há só um”. Se este artista vivesse a vida toda nessa dependência, ter-se-ia o seu génio libertado, a ponto de criar tão belas sinfonias como criou?
Veio a seguir a experiência do “corpo preso”, mas com a “mente livre”. Corpo preso em masmorras ou cadeias, porventura até à espera da morte, como ainda sucede a muitos e aconteceu por exemplo a Boécio (480-524 pC), que, em estado de inocência e antes de ser executado, escreveu na masmorra a sua Consolação da Filosofia.
Vieram também o “corpo e a mente soltos”, nessa libertinagem mental que redunda em escravidão para a mente e para o corpo. Lembram-se do nosso António Variações a cantar que “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”, não lembram?

Veio finalmente o passo do “corpo solto e habituado”, e com a “mente livre”. De facto, é quando o corpo está bem calhado em hábitos sadios, que o espírito se pode soltar em liberdade, dando largas à sua criativa actividade! O corpo não é para ser livre nem escravo, mas para ser habituado àquilo que o espírito, sentindo-o sempre atentamente, achar bom para ele. O espírito é que é feito para ser livre, e nunca de qualquer forma escravizado.

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