1- Olá! Está hoje
um belo dia para caminhar na praia: o céu está limpo; o sol, nada agreste,
espelha-se nas águas; o mar chão marulha quase até aos pés; e estes, soltos,
ora poisam na fresca areia quando dura, ora têm de se afundar nela quando seca
e branda. Por isso é que, neste segundo caso, se eu quiser imprimir aos pés um
andamento mais rápido e decidido, é bom que suba mais um tanto na areia e
aproveite as pegadas de outros pés já nela impressas, assim poupando esforços.
Há
a areia da praia, mas há também a areia do tempo, mais seca esta e movediça que
todas as outras areias. Por isso, será útil imaginar e porventura experienciar
algumas das pegadas que em muitos domínios a humanidade foi imprimindo na areia
do tempo, sobretudo aquelas que se
prendem com a sua libertação da fatal necessidade, na medida do possível.
Ficam
então aqui alguns passos e pegadas que a humanidade foi dando e esculpindo na
areia do tempo, no processo dessa libertação:
Houve
primeiro, por um lado, a experiência do “homem em sociedade”, do “homem em
cidade”, ou seja, o “homem cidadão” ou “homem livre”, mas também a experiência
do “homem escravo”. Como se sentiria um escravo em relação a um cidadão, e este
em relação àquele?
Aconteceu depois e
ainda acontece na humanidade, a experiência do “corpo solto”, mas com a “mente
escrava”: escrava dos costumes sociais, das superstições, das ideologias, das
instituições e até da autoridade de mestres. Um caso paradigmático deste passo
– mente escrava de costumes sociais mas a querer libertar-se deles – foi o caso
de Beethoven (1770-1827) que, sob a apertada dependência de um príncipe a
fornecer-lhe as sopas a troco de lhe abrilhantar os serões do seu nobremente
frequentado palácio, se libertou violentamente dessa situação, rematando-lhe
por fim: “Príncipe, o que vós sois, sois por acaso de nascimento, mas o que eu
sou devo-o a mim próprio. Príncipes, pode haver aos milhares, mas Beethoven há
só um”. Se este artista vivesse a vida toda nessa dependência, ter-se-ia o seu
génio libertado, a ponto de criar tão belas sinfonias como criou?
Veio a seguir a
experiência do “corpo preso”, mas com a “mente livre”. Corpo preso em masmorras
ou cadeias, porventura até à espera da morte, como ainda sucede a muitos e
aconteceu por exemplo a Boécio (480-524 pC), que, em estado de inocência e
antes de ser executado, escreveu na masmorra a sua Consolação da Filosofia.
Vieram também o
“corpo e a mente soltos”, nessa libertinagem mental que redunda em escravidão
para a mente e para o corpo. Lembram-se do nosso António Variações a cantar que
“quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”, não lembram?
Veio finalmente o
passo do “corpo solto e habituado”, e com a “mente livre”. De facto, é quando o
corpo está bem calhado em hábitos sadios, que o espírito se pode soltar em
liberdade, dando largas à sua criativa actividade! O corpo não é para ser livre
nem escravo, mas para ser habituado àquilo que o espírito, sentindo-o sempre
atentamente, achar bom para ele. O espírito é que é feito para ser livre, e
nunca de qualquer forma escravizado.
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