terça-feira, 26 de maio de 2015

299.2-3

2 - Há passos e pegadas na areia da praia, mas também há passos e pegadas na areia do tempo, areia esta mais seca e movediça que todas as outras. De onde vêm e para onde vão as pegadas do espírito da humanidade? Mas ainda que as pegadas do passado não estivessem um tanto erodidas pelo agreste vento do tempo mas se mantivessem incontaminadas e nítidas por força da tradição e da tradicional autoridade, por esta mesma força, porque potenciadora de falácias, tais pegadas nunca podiam ter para nós a inconcussa consistência de definitivos guias espirituais!
Por outro lado, porém, do futuro é que nada sabemos! Por isso, sem seguro legado do passado e sem nada se saber do futuro, só haverá para nós o caminho de irmos tacteando, livremente na medida do possível, algures entre a fatal necessidade e o fortuito acaso. Porque o nosso melhor guia somos sempre nós mesmos!

3 - Entrevi há tempos, na televisão, o epílogo de um drama romântico centrado num casal de velhinhos, acabados de sair do hospital, aí internados uns dias antes por motivos de urgência. “Até onde achas que o nosso amor pode levar-nos?”, pergunta ela. Ao que ele responde: “Acho que o amor pode levar-nos onde quisermos”! E no entanto … o amor é amor e não razão, a razão fria, que em princípio nada tem a ver com o mundo do coração, com seus afectos e anseios. O amor alimenta-se assim, até ao fim, destas tão acarinhadas utopias!
Mas sem dúvida que o amor pode levar-nos, e muito bem, até ao fim. É mesmo a melhor maneira de irmos. No caso dos dois velhinhos, vão o coração e a razão de mãos dadas, os dois dos dois, em estreita e amistosa cumplicidade. Pois, quando a razão está perante mundos a ela inacessíveis, não será razoável ela entregar-se ao coração? Nestes casos, razoavelmente, o amor é mesmo a melhor maneira de estarmos e de irmos.


Nota: Nos números 1 e 2 deste texto, constam diversas noções devidas a Hannah Arendt, em A Vida do Espírito.

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