sexta-feira, 3 de abril de 2015

285.5

5 – São precisas ainda mais algumas palavras. A primeira é sobre o silêncio. Para mim próprio – também aqui somos todos diferentes – eu relevo o silêncio, não só para poder trabalhar em melhores condições, mas sobretudo para entrar e ficar dentro de mim, por mais tempo e por mais vezes. Posso assim conhecer-me melhor, e, descendo ou subindo a um nível de silêncio mais íntimo, posso ligar-me a todos e a tudo. Não pode chamar-se a isto isolamento, mas sim, porventura, uma das mais belas formas de estar em comunhão. O afastamento físico ou corporal intensifica uma presença mental.
            Claro que tudo isto já é espiritualidade, sendo esta a segunda palavra necessária. Quando falo de espiritualidade, não falo necessariamente de religiosidade. Sei que há muitos descrentes dotados de uma espiritualidade intensa, com o que se demonstra que, muito embora a religiosidade seja geralmente uma forma de espiritualidade, esta é, nas pessoas que a praticam, de uma forma ou outra, uma realidade muito mais ampla ou abrangente. Espiritualidade liga-se a transcendência: é por aquela que, na nossa pequenez, nos ligamos àquilo que nos transcende.
            A terceira palavra é para relevar a importância do exercício físico, precisamente nesta altura em que as competências corporais vão começando a falhar. E quando o exercício físico também se destina a apaziguar e confortar a mente, como acontece com o ioga, então isso é ouro sobre o azul.
Acrescento mais uma palavra, não necessária mas talvez útil, sobre os lares de idosos. Na minha perspectiva e de acordo com a minha experiência, se bem que eles exerçam um certo poder socializador que no meu caso foi benéfico, eles serão só uma solução de recurso, precisamente para quando o idoso não possa continuar no seu ambiente habitual. A paisagem humana que eles patenteiam não é sempre agradável, e por vezes é deprimente. Além disso, há muitos ruídos nocturnos que não consentem um sono sossegado, assim como o passadio também é bem diverso do habitual. E já que falámos de morte e de espiritualidade, os lares de idosos terão de tratar também espiritualmente a morte dos utentes quando ela acontecer, se não quiserem tornar-se armazéns de velhos, à espera da sua hora.
            Ainda ouso, enfim, deixar-vos uma advertência. Aos gerontes da Antiga Grécia e de outras remotas paragens, quando eles eram chamados a falar nas assembleias do povo, prestava-se-lhes toda a atenção e levavam-se muito a sério as suas palavras sábias. Mas aqui, neste caso, a advertência é: Não dêem muita importância às palavras que vos deixo. Dêem, sim, àquelas que brotarem do vosso coração e da vossa razão. Consta que os antigos judeus ansiavam por uma era messiânica em que o seu Deus lhes daria um novo coração para se ligarem mais profundamente à vida, conhecendo-a e amando-a com o corpo e com a mente. Mas é claro que Deus só nos dará esse novo coração se, e na medida, em que o formos empreendendo para nós mesmos.
E pronto, meus amigos, cesso de vos fatigar, se não de vos aborrecer. Tenho saudades das minhas cegonhas, e por isso, numa breve fugida, ainda vou para elas. Vou ver se as contemplo ainda, talvez rasando as águas lisas do lago, talvez pairando altas no céu quase esquecidas da terra, logo caindo quase a pique até travarem o voo e saltarem para o ninho, se ajuntando à restante família já aninhada, quem sabe se já com novas vidas aladas. Muito obrigado.

Para o Augusto, dois Antónios e o João … amigos do coração


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