quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

197 - Saudação ao Sol

Andamos ligados à vida por um laço
que, a cada instante ou passo,
pode deslaçar ou partir

Daí que, para os sustentarmos os dois,
ao laço e à vida, com alguma segurança,
tenhamos de atentar nos quatro fios
em que se fundam e entrançam esses dois tecidos,
ou seja, o ar a água a terra
e a benigna e amena maciez da luz

Estendamos então, no chão liso,
junto a este pequeno lago tranquilo,
os santuários breves das nossas esteiras
e façamos a meia saudação ao sol:
de pé costas direitas braços levantados,
ou dobrando e deixando cair braços e cabeça,
alongando contraindo e sempre respirando,
exercitemos o corpo e relaxemos a mente

Sintamos o vigor e a energia no corpo
e sobretudo saibamos que, no limite, nem somos
os virtuais pensamentos da nossa mente,
pelo que não será bom, para nós,
envolver-nos, sem mais, nessa quase alheia rede

Feliz do homem que olha de fora, friamente,
para o frémito desse estranho novelo,
e que tem a consciência de que é nada,
nesta conformidade, agindo e reagindo

De si consciência que floresce do seu corpo,
a qual o aceita e também ouve e cuida
com esta invocação ao sol, bebendo a luz

Semelhantemente às gaivotas que, essas, paradas,
entre o mar e a terra, na areia, e voltadas para o sol
não carecem de exercício … só contemplam


sábado, 21 de dezembro de 2013

196 - O Festim da Luz


No incipiente fulgor da manhã, o pai da luz
afasta com a mão o manto de névoa a cobrir o bosque,
estende-o na orla na erva junto à ribeira
e põe-se ali a acordar toda a gente:

Sobrevoa primeiro as altas frondes das árvores
e toca-lhes ao de leve, para vibrarem à luz,
embrenha-se depois nelas, descendo poisando,
todos enchendo, os recantos, de luz

“Olá, meu melro, ainda estás dormindo?
aí te faço, neste momento, amarelo o teu bico,
vá, põe-te a voar e a cantar, na nítida beleza da manhã!

E tu, minha rola turca, cansada
dessa longa viagem, e por isso,
ainda, debaixo de asa a cabecita, descansando:
queres que eu te aqueça o peito e o rabito?
vá, já há muito não ouço o teu arrulhar de ternura

E vós, ó pegas, pegas de popa, aos pares,
delicio-me com estar ao pé de vós
pois, se não fora, como avultaria o contraste
das cores, a contemplar, do vosso manto?

Olá, meu grilo, vá, toca a sair da tua toca!”
“Ainda não é tempo, meu sol,
primeiro terás de avivar o teu lume
e de me deixar dormir o meu sono longo!”
“Então, ao menos, da minha luz,
aceita o meu morno clarão, aí dentro, agora,
pois eu e a irmã lua gostamos muito do teu cantar!”

Mas quando chegou ao chão, já o pai da luz se comovia
olhando-se luzindo no macio musgo verde:
tanta beleza, na cúmplice conjugação da terra com o céu!

sábado, 14 de dezembro de 2013

195.3-4 - Jesus e Francisco

         3 – Se esse Jesus de outrora vivesse também hoje, e, mesmo que só vagamente, conhecesse as maldades do nosso mundo, ele teria redobradas razões para condenar a retaliação e propor o amor aos inimigos, como única via para se parar com a violência dentro e fora de nós.
         Mas será que, não retaliando e amando os inimigos é possível acabar mesmo a violência? É, e não se vê melhor caminho. Mas há aí alguém que seja capaz de não retaliar e de amar os inimigos? Claro que há! Além deste Jesus, há ou houve outros exemplos na história humana: Nelson Mandela é prova disso mesmo.
         Mas quanto a negócios de dinheiro, Jesus, que outrora fora doce no trato para com todos e só uma vez se lhe levantou a tampa - precisamente para escorraçar do templo de Deus os vendilhões -, haveria agora de andar habitualmente de chicote na mão, pois que tinha muito que fazer com ele. Haveria, por exemplo, de dar valentes chicotadas na base das altas colunas da sede do BPN, fazendo-lhes tremer os fustes e os capitéis, e toda a massa arquitectónica desse templo de nefandas negociatas. Haveria de esconjurar os procedimentos das agências de rating e demais símbolos desse execrando liberalismo financeiro que está destruindo a humanidade.
         Outrora, Jesus expulsou do templo de Deus os negociantes de bois e de rolas, e também os que, já então, trocavam dinheiro com usura. Mas agora, a esta global escala financeira em que vivemos, ele teria era de expulsar do templo da humanidade – do templo onde se deve cultivar só a humanidade – todos esses vendilhões financeiros que a delapidam, a profanam e matam. E a par dessas cortantes chicotadas, haveria de clamar aos criminosos que o dinheiro é o sangue para servir e irradiar pelas nações, e que ninguém pode negociar com esse sangue, pelo menos com usura. Ainda gritar a toda a gente que o poder financeiro terá de se submeter sempre ao poder político democrático, que só este pode ser controlado pelo povo (ver textos 73 e 123)

         4 – Não vem esse Jesus agora, mas veio Francisco, que o segue e representa aqui na Terra.
         Diz Francisco: “Temos de dizer não a uma economia da exclusão e da iniquidade, porque esta economia mata”; “Grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem horizontes, sem saída” porque “se considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que se pode usar e deitar fora”; não é verdade que a liberdade de mercado “provoque por si mesma uma maior igualdade e inclusão social”, porque ela supõe “uma confiança néscia e ingénua na bondade de quem detém o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico imperante”; é urgente “uma mudança de atitude enérgica por parte dos dirigentes políticos. O dinheiro deve servir e não governar” (citações de “A Alegria do Evangelho”, extraídas do Expresso de 30.11-13).
         Isto é, tal como Jesus no seu tempo, também Francisco, agora de uma forma mais explícita e ampla, faz a mesma acusação aos agiotas deste tempo. Porque não só o dinheiro é o sangue das nações – com ele ninguém podendo por isso ser onzeneiro -, como também é o poder político democrático que deve ter a última palavra sobre ele. Sem também esquecer, muito embora, a rejeição da retaliação contra os criminosos e a proposta do amor aos inimigos. Só com a aplicação de todos estes princípios, poderá vencer-se a violência.

         O Jesus que Francisco jubilosamente segue, nos apresenta e representa, é o Jesus histórico mas também o Cristo-que-é-o-Jesus-da-fé. Acontece é que, mesmo para quem não crê ou simplesmente se interroga e duvida desse Cristo meta-histórico, a grandeza desse Jesus histórico não sairá diminuída. Pois então, não é na nitidez da nossa humana pequenez que a grandeza a que alguém pôde subir se poderá evidenciar melhor? Quando um vulto humano é nobre em valores de humanidade, ele dará nas vistas a qualquer outro ser humano sensível a essa nobreza! E se a maioria do povo reconhecer a grandeza desse vulto e abraçar os seus propósitos, haverá revolução, com certeza, mas não haverá violência.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

195.1-2 - Jesus e Francisco

         1 – Olá, amigas e amigos, ainda se lembram daquela figura histórica que formou para si um eu tão excelente e perfeito, como jamais alguém pôde conseguir? Vimos isso no texto 189, e claro, já estamos a perceber que se trata daquele Jesus histórico que nasceu em Nazaré, ensinou e fez discípulos, acabando por ser condenado à morte em Jerusalém, pregado numa cruz.
         Intuitivamente, ele foi formando e aperfeiçoando o seu eu, e, já naquele texto, nós vimos em que campos essa excelência foi sendo conseguida: ele foi um mestre sublime em razão das suas palavras, dos seus gestos acompanhados de palavras mas também sem elas, e finalmente em razão dos seus silêncios.
         Entre as palavras mais sublimes que com certeza proferiu – sabemo-lo bem -, figuram aquelas já citadas no referido texto, as quais se prendem com a rejeição do hábito da retaliação, ou seja, do “bates-me e logo levas”, e com a proposta do amor aos inimigos, estes dois preceitos confluindo para, se forem cumpridos, podermos vencer a violência entre (e dentro de) nós.
         Mas há ainda outras palavras suas, também sublimes, estas acompanhadas de rasgados e corajosos gestos, que não podemos deixar de aqui e agora referir.

2 – Tenho a Bíblia aberta no passo da Purificação do Templo
– primeiro narrado paralelamente pelos três evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas), mas depois também pelo evangelho atribuído a João –, passo em que se conta a expulsão dos vendilhões do templo operada por iniciativa e intervenção de Jesus. 
         Nos três primeiros evangelhos se conta então que, aproximando-se a Páscoa judaica mas também a sua morte, Jesus desceu a Jerusalém, foi recebido triunfalmente na cidade, logo depois entrando no templo, onde se deparou com o triste espectáculo da sua profanação. Sumamente irado com aquilo que aí via, “derrubou as mesas dos cambistas”, expulsou de lá todos os que estavam a vender e a comprar dinheiro e animais, enquanto ia gritando a todos que, de uma casa que devia servir só para oração, eles estavam a fazer um “covil de ladrões”.
Quanto ao evangelho atribuído a João, se só aí se encontra o significativo pormenor de Jesus ter feito um “chicote de cordas” para expulsar animais e vendilhões, também é o único a não relacionar este acontecimento com a muito próxima condenação de Jesus à morte. Porque, para os três sinópticos, parece claro que tal atitude de Jesus, cheia de autoridade e veemência acusadora, foi causa motiva e próxima para tal condenação. Por seu lado, por começar antes da história humana e terminar fora da mesma história, e ainda por não se preocupar com o encadeamento interno dos factos narrados, o evangelho de João não releva para este último assunto.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

194 - Meditação


Quando, à hora do crepúsculo,
reunidas pelo estímulo dos chocalhos,
as indistintas ovelhas do rebanho
regressam ao aconchegado aprisco,
assim eu, livre da materialidade do corpo,
feito só pura energia cósmica,
mergulho no divino universo

Certo é que o meu corpo é energia,
e então, num primeiríssimo olhar,
parte indistinta seria
da unidade da energia cósmica.
Há porém um minúsculo senão
que se opõe a esta indistinção:
o verbo divino da energia
se fizera carne em mim,
da qual floresceu um eu,
distinto daquela imensidão

Mas agora, nesta noite iluminada,
 (já as ovelhas indistintas no aprisco)
mergulho e navego, também como indistinto,
no oceano da energia universal:
cessa o ansioso tagarelar do pensamento egóico
e nascem o agora sem espaço nem tempo,
o vazio e o silêncio, a consciência só de ser,
a alegria a paz a harmonia a intuição,
também as visualizações criadoras,
a fremente sensação de estar vivo
...

Já anda de novo o rebanho na colina,
a erva e o orvalho tosando, da manhã;
quanto a mim, verbo divino de energia,
avultando de novo a minha carne,
de novo me floresce, recriado, o eu

O sorriso de uma criança
O rumor da água num regato
uma ave a cantar, uma flor
o rebanho subindo pelo verde da colina

um universo novo está à minha espera

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

193 - Almo Silêncio

O silêncio é como
 cera lisa
branda e dócil
onde sulcos
se abrem
 de sons,
não muitos,
levemente:

O som do arrulhar da rola,
do rouxinol suspenso
da beleza da manhã,
alguns pingos de som
de harpa, não mais,
o chilreio de uma criança.

Vêm depois a brisa leve
e a morna água da luz
delir bem esses sulcos,
outra vez deixando
lisa a cera
do silêncio

Porque nada mais pode
ferir o silêncio:
alma mãe
 da vida
o silêncio




Nota: Este texto tem afinidades com os textos 100, 103 e 138, e dedica-se especialmente a uma turma de ioga, incluindo, é claro, a Paula Duarte, uma professora sábia.

sábado, 23 de novembro de 2013

192.4-6 - Seis Rosas dos Jardins de Adónis

4 – Bento de Espinosa, polidor de lentes, filho de família judaica foragida do Portugal católico para a Holanda, diz que o nosso espírito é o conjunto das nossas ideias – confusas e imperfeitas quase todas por serem temporais, mas também algumas cristalinas, perfeitas e portanto eternas. E nós acrescentamos que o florir dessas ideias ou o iluminar dessas luzes, que é a actividade de pensar, também já é espírito.
Mas todas essas ideias, que são flores ou luzes, como também a actividade de pensar, tudo será temporal e nada eterno. A não ser que tudo seja eterno, sim, mas só com a eternidade de um dia, como as “rosas dos jardins de Adónis”, de Fernando Pessoa - Ricardo Reis, para as quais a luz é eterna porque “nascem nascido já o Sol, e acabam / antes que Apolo deixe / o seu curso visível”.

5 – Nós somos realmente dotados de espírito, o qual é a realidade espiritual que produz o pensamento. Mas os pensamentos são só pensamentos, os quais portanto, enquanto tais, só existem como abstracções. Portanto, mesmo as “ideias eternas e imutáveis” não são mais que simples ideias, puras abstracções, como aliás são também os números e as figuras geométricas. Por isso é que a Matemática e a Geometria são ciências puras, pois lidam só com abstracções. Será também o caso da Metafísica, porque o ser, enquanto tal, só existirá realmente nas concretas realidades.

6 – Mas é claro que as ideias da Filosofia e sobremaneira da Metafísica, nas nossas mentes, podem ser devastadoramente poderosas. “Nada detém uma ideia quando chega a sua hora”, como alguém dizia. Os horrores perpetrados contra a humanidade por Estaline e por Hitler e pelos seus sanguinários salafrários, horrores perpetrados em nome de hediondos ideais, estão aí indelevelmente vivos, na sua descarnada crueldade contra crianças, mulheres e homens concretos e inocentes. Assim como, felizmente, também concebemos ideias e ideais poderosamente bons e belos, como é o de pensarmos uma boa justiça, uma justiça eficaz para julgar os crimes cometidos contra a humanidade, bem como outras poderosas ideias que nos conduzem a mais esferas de beleza e de bondade, a fim de que a humanidade floresça e se ilumine.

As ideias não são coisas, coisas do mundo da física, pois que, sendo do domínio da “meta-física”, elas estão para além daquela. Não são do mundo físico, mas dele nascem e a ele conduzem. Ideias e coisas boas e belas, de preferência.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

192.1-3 - Seis Rosas dos Jardins de Adónis


Olá, amigas e amigos! Hoje oferecem-se rosas, e são para quem as quiser colher. São poucas, é verdade, mas dão para muitos.

1 Nós, os humanos, temos a capacidade de conhecer: não podemos considerar-nos absolutamente cépticos, apesar das ilusões que por vezes nos pregam os sentidos. Pois então, se os outros animais conhecem o suficiente para saberem governar a sua vida, nós não havíamos de conhecer e saber? Se assim não fosse, a evolução ter-nos-ia corrigido, seguindo outro caminho, o caminho certo para podermos conhecer e, assim, governarmos a nossa vida.

2 – Todo o animal, sobremaneira o humano, tem uma grande curiosidade em saber. O que é natural, pois se trata de conhecer suficientemente bem o mundo em que vive, o seu habitat. A evolução apetrechou-o dessa curiosidade necessária. Quanto ao homem, porém, a religião, logo desde o pecado original por se ter comido da árvore da ciência e do saber, luta contra essa congénita curiosidade, propondo a crença e limitando a ciência.


3 – Cobrimos de aura, de mito e de mistério as coisas, para darmos campo ao desejo, à imaginação e ao sonho. Chamam a isso mistério, ao qual se pode aderir pela fé. Esta será por exemplo a posição de João Maia, escrevendo sobre o pensador Alain (ver Enciclopédia Verbo). É também a posição de Pascal, de Kant e de Kung: para darem lugar à fé, interrompem o labor da razão. É o desejo a prevalecer sobre a razão.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

190 - Para Além do Limiar das Palavras

É doce passear agora pelos campos,
com os diospiros fulgurando ao sol
na mãe quase despida de folhagens;
os ouriços dos castanheiros se abrindo
para nos darem as filhas prometidas;
os vergéis húmidos pelas primeiras chuvas,
ávidos das habituais sementes …

Mas depois, já no abrigo aconchegado
de casa, pela tardinha, a delícia é outra:
em profundas e lentas expirações,
 descendo a gostosas apneias, me liberto
do que em mim é nocivo ou superflui,
me tornando em “consciência de ser”
num agora sem espaço nem tempo

No oceano da energia do universo,
úbere oceano, aí então navego
 solto, sem barco, como que indistinto,
aí navego e mergulho

No princípio de tudo e do tempo,
no limiar das palavras
e no agora que elas nos induzem,
bem mais fecundo  do que elas,
é sempre o verbo primordial,
o verbo da energia universal



sábado, 9 de novembro de 2013

189. 3-4 - A Excelência de um Eu

3 – Falando de pessoas com um eu exemplar, o mesmo autor escreve: “As pessoas que brilharam no seu eu desenvolveram-no intuitivamente: Buda, Confúcio, Espinosa (…) Mas há uma pessoa em particular que analisei e me deixou embasbacado. O seu eu era tão fascinante que escolheu uma das piores espécie de alunos para ensinar as funções mais complexas da inteligência”. E como sobreviesse ao mestre uma inopinada e iminente aproximação da morte, “com os alunos tão mal preparados, era-lhe impossível ensinar por palavras funções tão complexas”. Assim, e “para assombro da psicologia e da ciência de educação moderna, quando as suas palavras seriam estéreis, ele transformou-se numa metáfora viva e bombástica”. Como nessa altura, nesse inolvidável “Lava Pés, nunca o silêncio gritou tão alto e gerou em tão pouco tempo os mais nobres raciocínios complexos, abstractos e indutivos; nunca o amor deixou o eco das palavras e se materializou para alcançar pessoas que não conheciam a arte de amar”.
         Mas em alturas mais calmas da sua vida – dizemos agora nós -, o mesmo mestre Jesus, com palavras que por certo foram mesmo por ele proferidas, soube firmemente condenar a retaliação e propor o amor aos inimigos (Mt, 5 e textos 59 e 184), isto é, superar a antiga e tão de hoje “lei de talião”, a lei do “olho por olho e dente por dente”, e também propor “o amor aos inimigos”, coisa bem mais difícil do que o amor a quem nos ama.
         Que se saiba, nunca ninguém tinha ensinado tais doutrinas, essas pedras de escândalo sobretudo para as sociedades bem pensantes e poderes deste mundo, isso constituindo, como é evidente, prova insofismável de que tais doutrinas são autênticas e próprias desse Jesus, assim constituído como grande mestre da humanidade. Na verdade, não retaliar e também amar os inimigos é a única (impossível?) maneira de pararmos a violência, tanto ao nível individual, no relacionamento de cada um consigo e com os outros, como também entre as nações do mundo.
         E se, em alguma ocasião, tivermos de optar entre ser agredido ou ser o agressor – oxalá nunca aconteça – bem melhor será para nós ser agredido, porque não há nada que pague a paz da alma, a paz do nosso eu bem formado.

         4 – Mas Cluny faz questão de dizer que não fala de Jesus, do lado de dentro de uma religião, mas simplesmente do lado da história humana e na perspectiva de um psicólogo e psicoterapeuta.
         De facto, esse mestre está ou pode estar presente na história humana e na nossa memória pelas palavras como as que enunciaram a quebra da retaliação e o amor aos inimigos; pelos gestos sem palavras como o do Lava Pés; pelo pão e pelo vinho que os humanos podem comer e beber em memória dele; também pelas palavras ardentes e pelos vigorosos gestos que expulsaram os vendilhões do templo da humanidade, tão actuais entre nós nestes dias tão tristes. Presente ainda pela cruz e pela morte, não porque por elas nos tenha salvo, mas por elas serem sinal daquilo que as causou - aqui sim, a salvação -, a saber, os seus gestos e palavras de amor, como os que atrás enunciámos. Na verdade, não é o sofrimento e a morte que salvam, mas aquilo que se quer fazer e faz mesmo, por amor, ainda que, para tanto, seja preciso sofrer e até morrer numa cruz.
         Assim, se Jesus salvou a humanidade, isso foi por lhe ter ensinado, por surpreendentes atitudes, gestos, palavras e silêncios, como ela se poderá salvar a si própria. Porque nem Deus lhe poderá fazer aquilo que a ela mesma compete fazer.
Lembremos ainda que, se esse mestre amou assim tão profundamente a humanidade, é porque também profundamente a soube conhecer … por conhecimento de amor (texto 187).


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

189. 1-2 - A Excelência de um Eu

1 - Olá, amigas e amigos! O eu mental do ser humano é a realidade mais fascinante que os humanos desde sempre já encontraram, ou melhor, já vislumbraram no Universo. A realidade mais fascinante, mas também a mais complexa. E no entanto, o eu de cada um é só uma realidade mental, resumindo-se basicamente a um frágil feixe de percepções de experiências que foram acontecendo e que, ligadas pela memória, (eu) posso dizer que aconteceram comigo, assim me constituindo.
         Tão importante é ele que, no que toca ao aperfeiçoamento espiritual dos humanos, uns dizem que o temos de apagar, de o ir apagando, e outros de o ir constituindo e aperfeiçoando. É o que já referimos no texto 177, onde também explicitámos a nossa humilde opinião: afirmá-lo e aperfeiçoá-lo - sim, senhor -, mas, a espaços, também o sabermos esquecer para abraçarmos o mundo, para sermos só esse mesmo abraço. Sim, durante alguns momentos, quantas vezes quisermos, sermos só esse abraço ao mundo, essa consciência amorosa do universo.
         Na realidade, o eu não é uma “coisa-em-si”, no sentido de nele haver um miolo ou substância metafisicamente a nós inacessível, mas tão só aquilo que dele nos vai aparecendo – e pouco ainda é - começando pela sua base: a mais ou menos unificada memória de percepções que posso chamar minhas, conforme já acenámos em vários textos (169, 171, 173, 180).
         Andamos à procura de riquezas e de jóias no universo, olhando para fora, para o macrocosmos, e não temos olhado para a jóia quase divina que se esconde no mais íntimo de nós! Jóia, sim, a mais bela e melhor do mundo, se o eu for bem constituído e formado. Mas também ao contrário, se ele for mal constituído e deformado, ele redundará naquilo que de mais horrendo existe.

         2 - Quem escreveu de uma forma profunda e sublime sobre como construir e aperfeiçoar o nosso eu foi Augusto Cury, em A Fascinante Construção do Eu.
         Entre o muito que o autor diz sobre o assunto, consideremos aqui a forma como o eu deve reagir com quem lhe faz ou fez mal, sabendo nós, de antemão, que muitas vezes o pior inimigo do eu é ele próprio. E então, o autor diz que, em todos os casos, “desviar o pensamento ou tentar distrair-se para superar conflitos e traumas pessoais é a pérola das técnicas populares”. Mas isso muitas vezes não resulta, acrescenta ele, e até pode recalcar mais o problema porque “o registo na memória não depende do eu, e tudo o que evitamos ansiosamente será intensamente arquivado”.

         Em relação aos outros – no caso da calúnia ou de outro mal que por eles nos possa ser causado – Cluny diz que não podemos “pautar as nossas relações pelo binómio bateu-levou”. E sobre este assunto, na nossa relação connosco mesmos e com os outros, ele aconselha nunca tentarmos apagar os nossos arquivos mentais, porque tentar apagar é afundar o sulco negativo já existente na mente.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

188 - Elogio da Vida

Há o líquido e lento
marulhar da água
num recanto marinho
entre areias e rochas
e os pés de uma criança

Há a luminosa estrela
entrando numa gruta
marinha, pela cúpula,
se banhando e mergulhando
nas azuladas águas de cristal

Baila o barco nas águas
elas bailantes na alta gruta
até às paredes onde crescem
sombras líquidas réstias de sol
a morna luz de ouro da tarde
em demanda de búzios e de estrelas
de conchas se abrindo em pérolas
profundas brilhantes
no liso fundo de areia

Alternando com o sol, fria e bela
vem a lua nocturna
juntar-se ao líquido baile
toalha de leite a ondear
na gruta brandamente,
sombras raiadas de láctea luz
nas paredes, bailando com o silêncio

Líquida beleza
diurna nocturna
tanta
em ambiente marinho
 berço morno da vida



Nota: Este texto foi escrito em memória de meus pais: Manuel Agostinho e Maria da Glória.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

187 - Conhecer - Amar - Conhecer pelo Amor

Quando era menino-bebé
- disso tenho (absoluta) certeza –
pelava-me pelo colo de minha mãe
sobretudo do seu lado do coração
batida imemorial bem minha conhecida

E quando ainda menino
- eu andava na primária
era na terceira classe -
também soube com certeza
o professor gostar de mim:
um livrinho guardo ainda
pele mestre oferecido

Vieram ainda, vida fora
mais algumas (absolutas) certezas
mas agora, certezas há muito poucas
mas sim só probabilidades
sobretudo interrogações e dúvidas
esse pão que afinal nos deve alimentar:

Como surgiu para nós esta espantosa dádiva da vida?
embora vida breve que nos habita neste planeta azul?
esse fogo dos deuses aquecendo-nos a nós, humanos?

Não conhecemos em absoluto a realidade dos seres
com este nosso pensamento não real mas só virtual,
mas isso leva-nos a sair de nós, da nossa solidão
e a irmos ao encontro deles, de nós e dos outros;
isso leva-nos ao amor, o qual é por sua vez
o nosso melhor e mais profundo conhecimento



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

186 - Um Búzio Singular


Para quem um dia vive, ou viveu,
mesmo que só por um dia,
a sua vida é eterna!
pelo menos, de algum modo,
dura por todo o tempo do universo

Trazido pelas ondas, na praia,
encontrei um búzio esplêndido,
escultura muito antiga toda em pedra,
cuja história só o sábio tempo conta:
primeiro, por muitos anos viveu
o molusco em sua casinha;
depois, na vazia casinha e por um largo espaço,
nesse torneadinho molde,
foram caindo e endurecendo sedimentos;
e então, já não sendo necessária
para proteger nada nem ninguém,
a casinha molde desaparece,
ficando só a triunfante escultura.
Mas o tempo ainda sabe que esta história
não começa nem acaba assim:
ela se alonga muito para trás
e se estende muito para diante.

Assim nós, também, como o búzio:
elementos físicos mas também simbólicos,
vindos de perto e de longe,
que recolhemos e de que nos apropriamos,
realidades lendas mitos de nós constituintes
e que depois passamos para o futuro
numa cadeia interminável neste universo sem fim.

Assim nós, também, como o búzio,
como o búzio, pelo menos,

ainda que não sejamos os reis da criação.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

185 - Branca Solidão

Quando nós somos abandonados pelos amigos
ou nos abandonamos a nós mesmos
desalentados na vida,
isso é sempre uma negra solidão, mas

Haverá também uma solidão branca?
íntima treva que se abre à luz?
realmente, o ser humano vive em solidão,
não só em relação aos outros seres humanos,
como também dentro de si, no seu eu mental

Pois que, nos dois casos, o ser humano, só conhecendo
através de pensamento não real mas virtual,
nunca pode chegar à verdadeira realidade dos seres:
a realidade dos outros e a realidade de si mesmo!

Até porque tal realidade é a subjectiva realidade
do eu de cada um, esse ente aéreo e fluido,
muito embora ela habitualmente transvase
para a concreta realidade do seu corpo

É mesmo esse corpo, com abraços e beijos e mais,
e com a verbalização do pensamento virtual,
que estabelece a ponte entre os humanos,
assim atenuando a sua existencial solidão

Há assim a solidão que separa cada eu, dos outros,
mas também a solidão que separa cada eu, de si mesmo,
já que os pensamentos que nos auto-configuram
só nos dão aproximações da verdade:
a minha solidão interna advém de o meu eu ser real,
mas a consciência de mim ser só virtual

Ainda assim, nesse meu suposto eu,
nessa minha condição de só quase saber quem sou,
eu posso a sós olhar-me e até falar-me
sobre o mundo sobre os outros sobre mim,
atender também ao subdiálogo entre
os reais desejos do coração
e os virtuais pensamentos da mente,
falar comigo sobre como me desenvolver e reciclar,
sobre o meu corpo que tudo isto me faculta

Também sobre esta tão estupenda maravilha mental
que nós somos, no universo,
ainda que com a íntima e existencial solidão
que nos move para mais perto dos outros e de nós!
                               

Nota: Por este texto, devo informações a Augusto Cury, em A Fascinante Construção do Eu. Obrigado 

domingo, 6 de outubro de 2013

184.3-5 - Um Deus não de mortos mas de Vivos

3 – Mas tal trabalho de desmitificação iniciado por Bultmann devia continuar. E foi mesmo essa tal menina, outrora hóspede e também aluna do professor, uma das pessoas que continuaram essa missão.
Quando essa menina de 17 anos ainda estava na casa deste seu mestre, ela recebeu uma carta do seu pároco a avisá-la do seguinte: “Querida Uta, o professor Bultmann não acredita na ressurreição. Não te deixes influenciar por ele”. E então, pouco tempo depois, à hora frugal da refeição, ela quis tirar esse assunto a limpo: “Senhor professor, é verdade que o senhor não acredita na ressurreição”? E logo ele, em tom amistoso, respondeu: “Uta, tu ainda não podes entender isso bem”!
Mas agora, já depois de Uta RanKe-Heinemann ter estudado teologia em Oxford, Bona, Basileia e Oxford, se ter convertido ao cristianismo católico e lhe ter sido entregue, embora não por muito tempo, a cátedra de “Novo Testamento e História da Igreja Antiga”, em Essen, é agora ela que escreve uma carta ao seu antigo amigo e professor Bultmann, insistindo na mesma pergunta, ou seja, se ele acreditava mesmo na ressurreição dos mortos. Eis então a sua resposta amável, também enviada por carta: “Se Deus é o que sempre vem, então a nossa fé é a fé no Deus que vem a nós na nossa morte”.

4 – De facto, no seu ensino e testemunho, também Uta insiste na realidade da ressurreição. Mas, muito embora para ela a ressurreição em si mesma não seja um mito, a autora considera que ela deve ser entendida de maneira nova, afinal expurgada de algumas lendas que ainda a envolvem e perduram. E depois cita a bela passagem de Mc12,18 e seguintes, onde ela vê, como autênticas, as palavras que se atribuem a Jesus. Vieram ter com ele os saduceus, que não acreditavam na ressurreição, e, sobre o assunto, puseram-lhe uma questão complicada e ardilosa. Mas Jesus, sem se impressionar, responde-lhes nas calmas e sem problemas: “ … E acerca de os mortos ressuscitarem, não lestes no livro de Moisés, no episódio da sarça, como Deus lhe falou, dizendo: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? Não é um Deus de mortos, mas de vivos. Andais muito enganados”.

5 – Sem aqui intentarmos avaliar o argumento de Bultmann a favor da ressurreição, aliás logo condicionado à partida, nem aqui falarmos de outros sentidos que estas palavras de Jesus podem ter, não nos passe despercebido o pormenor de Uta, a fim de convictamente afirmar a ressurreição, invocar a passagem de um encontro de Jesus com os saduceus, portanto do Jesus histórico, e não qualquer passagem das tradicionais aparições pós-pascais do Cristo ressuscitado.
Não obstante, a quem hoje de novo fizer a mesma pergunta que Uta fez a Bultmann, também se lhe poderá responder perguntando: Porque é que está a fazer essa pergunta? Explicitemos e até desdobremos a pergunta, para que o assunto se torne mais claro: O que é que em nós nos move a fazermos essa pergunta: o desejo e o coração, ou simplesmente a neutra curiosidade mental? Não somos, radicalmente, parte interessada no assunto? E aqui, na sua intimidade, só cada um de nós poderá responder.

Nota: No que toca a este texto, com excepção do ponto cinco, devo informações a Uta Ranke-Heinemann, extraídas do seu livro No y Amén (edição espanhola).


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

184.1-2 Um Deus não de Mortos mas de Vivos

1 – Olá, amigas e amigos! No tempo em que a Europa tresandava de horrores por causa dos nazis (1939-45), o mestre Rudolfo Bultmann (1884-1976), com a concordância da família onde já havia duas filhas, hospedava em sua casa uma menina a quem passou a dar explicações sobre Platão: a discípula traduzia os textos exercitando-se na língua, e ele explicava-lhe o maravilhoso mundo das ideias platónicas. Do facto de sua mãe já ter sido aluna de Bultmann, numa faculdade cristã evangélica, decorria a amizade que reciprocamente se tinham. E como, naquele perturbado ano de 44, ela não tinha onde pôr em segurança a filha para continuar os estudos, pediu-lhe que temporariamente a recebesse em sua casa, onde veio a residir até ao fim da guerra.
A esse tempo, Bultmann já se tinha tornado famoso pelo seu trabalho de desmitificação dos textos bíblicos, nomeadamente dos evangelhos, a ponto de, por via disso, já ser maltratado pelas comunidades religiosas, que assim viam desfigurada a mensagem bíblica conforme a tinham recebido e desejavam que continuasse a ser.
Foi sempre assim em toda a história da humanidade: quando esta suspeita de em si própria ter aparecido um Messias, logo nele começando a depositar as suas esperanças, não tarda muito que, para o engrandecer – quanto maior ele for, maiores e mais fundadas podem ser as esperanças –, ela lhe pegue ou o revista de lendas e de mitos. Bem sabemos que são lendas e mitos, mas é a isso que a multidão se agarra, não só por essas coisas lhe serem e servirem de mui bom sabor, como também por entender que, só com elas, pode ganhar força salvadora o seu Messias. Tinha pois o professor, de facto, muito terreno para limpar. 

2 – Nesse seu trabalho de desmitificação dos evangelhos, sobressai o que se reporta à tentativa de encontrar as genuínas palavras proferidas por Jesus. Isto é: de toda a doutrina, de todas as palavras que os evangelhos atribuem a Jesus, qual é, quais são as que, realmente, com suficiente certeza, se podem a ele atribuir? (ver aqui texto 59)
Sem agora explicitarmos as razões que o levaram às suas conclusões – e para darmos exemplos -, ele atribui com segurança a Jesus duas passagens do Sermão da Montanha. Em Mt 5,39-41, Jesus diz: “Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas”. Quase logo a seguir, em Mt 5, 43-48, Jesus diz “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa havereis de ter? Não fazem já isto os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos com é perfeito o vosso Pai celeste”.

De acordo com Bultmann, portanto, são de atribuir com certeza a Jesus as palavras acabadas de citar, extraídas do seu Sermão da Montanha.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

183 - O Sono do Bebé

Olá, amigas e amigos! Quando o bebé ia cumprir o seu primeiro aniversário, o tio Júlio fez chegar às mãos da mamã, dentro de um envelope, uns bilhetes não muitos de um tal BCE, a que fez juntar um cartãozinho com um pequeno texto. É assim o seu teor:

Olha, mamã, neste dia dos meus anos – é ainda só um, mas hão-de vir a ser muitos – o tio Júlio mandou-me uns papéis, ainda não sei bem para quê. Guarda-os. Podem ser úteis para alguma coisa. Agora, quero dormir.
Ainda não sei assinar com o meu nome. Tens de me ensinar, ou as manas, ou o papá. Agora, já estou a dormir. Nem sei como é que estas últimas palavras aqui aparecem escritas, comigo já a dormir.
Mas agora que já não durmo outra vez mas só dormito, estou a ver como vai ser bom ver tantas coisas na vida, umas giras mas outras talvez não! Estou muito curioso. Agora, vai mais uma soneca, para compensar estas falhas.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

182 - O Grande Desígnio

Há o desígnio, diz-se, ou a ínsita intenção,
de o mundo produzir o ser humano,
e mesmo existir primariamente para ele

Para quê, então, os dinossauros e outros animais gigantes,
mas também as importunas moscas e melgas,
e ainda, é claro, a insidiosa serpente,
todas tanto, as três, incomodando os humanos?

Não seria mais convincente ter aparecido,
em primeiro lugar,
não sujeita a tanta demora evolutiva,
a criatura humana?

E agora, porque não hão-de vir a existir
outros estádios de evolução,
para além do ser humano?

Porque é que, quando a pujança juvenil
nos vai abandonando,
logo damos em ser invadidos
por bichinhos destruidores?

E quanto ao vasto universo,
do qual o nosso mundo é um pontinho minúsculo,
todo ele existe também para o ser humano?
ou será a vida um produto acidental no universo,
e fortuita “esta mistura de vícios e virtudes”?

“Podem demonstrar-se as boas intenções do universo”,
pela razão de termos aparecido, embora tão tardiamente?
Pode alguém vangloriar-se destas suas criaturas?
Um mundo de rouxinóis e rolas,
ou de abelhas doces e diligentes formigas,
ou mesmo de cigarras soprando a sua buzina ao sol,
não seria muito menos violento e destruidor,
muito mais belo que este nosso mundo humano?

Não podíamos ser um pouquinho mais modestos
e menos presumidos,
em vez de nos pensarmos o topo e a razão do universo,
nós os habitantes, pequeninos e frágeis,
deste minúsculo cantinho nessa imensidão?
Seres insignificantes, e tantas vezes mesquinhos, como somos?


Texto inspirado em Science et Religion, de Bertrand Russell

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

181 - No Pino da Calma

Quando à hora da sesta, altura ardente,
as árvores, para refrescarem,
até a sua sombra engolem,
ainda assim, elas protegem
com a sombra de dentro
as suas subterrâneas raízes

Assim elas, doutas,

nos ensinem

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

180 - O Canto das Cigarras

Caminho por esta vereda
entre pedras
 cardos à volta e urzes
antigos pinheiros altos
rolas e cigarras
aquela casa velha abandonada

Caminho por esta vereda
entre pedras
mas pedras e vereda
e a restante circunstância
comigo vão
ficam comigo
de mim fazendo parte

Como os cardos e as pedras
realidades físicas
meu eu não é
pois ele é tão só mental
Mas aquelas realidades físicas
para mim também só são
o que delas me aparece
nas minhas percepções
assim comigo ficando

Realidade mental eu sou
só um feixe de percepções
unidas  pela memória
umas vão outras subsistem
num corpo que é como as pedras
uma realidade física
como também o percepciono

Mas agora é a hora não esqueçamos
em que as cigarras cantam:
assim lá longe as ouçamos
para não incomodarem
e tão só nos servirem de prazer