sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

48 - Nove Passos para uma Opereta

Nove Passos para uma Opereta
1
Já não era a primeira vez que, ao atarraxar de manhã as botas nos pés, eu constatava que os atacadores se começavam a desventrar em mioleira branca, assim me anunciando que estariam prestes a ir à viola. De modo que, perante tão iminente perigo – não fossem as botas desprender-se dos pés num movimento brusco de passeio mais rápido e atingir a cabeça de alguém, quem sabe se até mesmo a de SarkoMerKel pretensa nova edição do nosso andrógino original –, decidi guiar os meus passos pelo campo até à catedral de consumos, a fim de substituir por uns novos os referidos atilhos. Sucede é que, no meio de um nada pacífico oceano de mais de dois mil produtos e bens diversos, todos à minha espera, era impossível sem ajuda encontrar essa ninharia.
2
- Menina, olhe lá, eu já percorri com atenção todos os corredores do supermercado e não descubro aquilo que pretendo.
- Mas então, o que é que deseja?
- Já vasculhei todas as prateleiras de todos os corredores e não encontro o produto que pretendo.
- Mas que produto quer, diga lá!
- Procuro a felicidade!
- Ah, mas isso não temos! Talvez possa encontrar na farmácia.
- Na farmácia? Onde se vendem xaropes e comprimidos? Nem pensar! Já de lá trouxe muita obra, e vejo bem que lá não há o que pretendo.
- Olhe, o que mais lhe posso fazer é pedir à gerência que pesquise mercados onde se possa encontrar tal produto!
- Muito bem! Faça-me então esse muito grande favor.
3
Talvez possa a gerência encontrar tal produto, sim, vendo todas as ofertas que estão por aí ao dispor dos consumidores. Como a ciência e a técnica estão tão avançadas, e tendo ainda em conta que o que hoje é preciso são empresas empreendedoras que saibam inovar e dar lucros, talvez seja fácil encontrar quem produza ou queira em breve produzir o que pretendo. Talvez mesmo se possa encontrar isso no mercado de capitais, quem sabe! Não é ele um mercado omnipotente?
Na realidade, é mesmo esse produto que me interessa. Até porque, se tivermos de mudar de moeda, assim perdendo cerca de metade destas magríssimas economias que tenho, é muito bom investir agora, enquanto é tempo, num bem muito importante para mim, imaterial e não perecível bem, como é a felicidade! Vamos lá ver se consigo fazer negócio, o negócio da minha vida.
4
- Olá, menina, então já tem novidades para mim?
- Tenho, sim, mas são novidades tristes. A gerência contactou uma chusma de produtores, e em nenhum encontrou tal produto para vender.
- Mas isso parece impossível! Então os mercados não fazem sondagens à procura das necessidades do público, para depois criarem produtos a condizer e venderem e fazerem lucros?
- A gerência não encontrou nada disso no mercado, mas sugere vários produtos que aqui temos, e que até estão no cabaz de Natal!
- Ai é? Não me diga!
- Sim, olhe aqui este cabaz de Natal, que está a tão bom preço!
- Mas a menina acha que estes produtos são idênticos àquilo que pretendo?
- Por mim, realmente, eu não acho! Eu acho que eles até podem ajudar a sermos felizes, mas eles não são mesmo a felicidade!
- Justamente, é isso mesmo!
5
E eis que vejo caminhar para nós o gerente e mestre de cerimónias da catedral, o senhor que teve a gentileza de proceder a todas as pesquisas por mim solicitadas, trabalho afinal todo em vão e por isso nada rentável. Se bem que pareça quase impossível haver tanta gente à procura do mesmo produto que pretendo, e ele não se encontrar à venda nos mercados! O gerente chegou e a menina foi-se logo. Não pode haver momentos desperdiçados, como exigem os automatismos mercantis. O tempo é dinheiro, não é?
6
- Lamento, meu amigo, lamento não poder servi-lo. Nós temos aqui vários produtos para esta quadra festiva, brilhantemente enfeitados com as sagradas palavras de “Feliz Natal”, “Feliz Natal”, mas já vi que tudo isto não é propriamente aquilo que quer encontrar.
- Claro que não! Eu não quero só adjacências de embrulhos esplendidamente engalanados com essas palavras, e agora também não quero o seu embrulhado recheio. Eu quero a felicidade pura, tanto quanto possível com todos os ingredientes que a constituem, entende?
- Sim, sim, penso que entendo! Ainda assim, eu sugeria-lhe que desse uma olhadela ali àquela loja, a loja do ouro, onde poderá negociar. Não quer lá ir experimentar? Além disso, estamos à espera de uma máquina que vende, a troco das respectivas quantias, moedas estranhas de alto valor e também barras de ouro. Ela está por aí a rebentar, e isso pode fazer-lhe jeito, como bom investimento que deve ser.
- Mas esses negócios são um modo de investir ou de perder a outra metade das economias? Quem me garante o valor dessas moedas e dessas barras ou que simplesmente não são contrafacções? Onde as poderei ir depois vender, se tiver necessidade? Além de que - e isto é o principal -, nada disso me vai fornecer daquilo que pretendo, pois não?
7
E aqui estamos nós entalados neste tempo devorador, devorador do que temos e não temos, e já também do que somos. Quem pouco tem, pouco perderá, é certo, mas pode perder o pouco que é necessário à sua subsistência.
Mas quanto à felicidade, a felicidade mesmo, isso é um negócio tão íntimo tão íntimo que, afinal, nem é negócio: aquele que fabrica o produto é também aquele que o dá a si mesmo para gastar e com ele se deliciar, embora dele também outros possam usufruir! Será então o princípio de uma “economia do dom”, sem que aí metam bedelho intermediários gananciosos, como é o caso-limite do execrando mercado de capitais. É que o nosso íntimo bem-estar ninguém o produz por nós e também ninguém no-lo pode tirar! Íntimo bem-estar que, com um mínimo de condições físicas, claro está, constitui essa por todos tão ansiada felicidade. Entalados num tempo devorador do que temos e já também do que somos, é verdade, muito embora nunca possamos ser esbulhados do nosso espaço íntimo, o qual não nos devora mas liberta!
8
Ah, já me olvidava de dizer que, de volta pelo campo, trouxe no bolso uns laços novos para as botas, laços que, logo no primeiro encontro na catedral, a menina fez o favor de me indicar lá na prateleira extrema de uma alta nave. Estes laços novos nas botas também ajudam à felicidade, não é? Além de que, assim, com uns novos laços bem apertando as botas, aquela cabeça do/da SarkoMerkel, de um lado masculina e do outro feminina, não será atingida! Fico descansado. Mas para falar de tal figura humana, deve dizer-se “do” ou “da”, “o” ou “a”? É que a nossa querida língua, língua doce e leve, nem sequer está preparada para estas originalidades aberrantes!
9
Mas ainda uma outra coisa vai esquecendo, importante coisa! Então, se aquilo é uma catedral - com naves e acólitos e mestre de cerimónias e celebrantes consumidores, catedral de consumo e de todo um mundo descartável em que vivemos e até muitas vezes nós somos e fazemos ser - então, onde está aí o “santo dos santos”, o sagrado, o sagrado recôndito ou o recôndito do sagrado? Não existirá nesta catedral o sagrado? Deve existir! Mas onde? Estará ele na caixa registadora? O sagrado será mesmo o dinheiro? Dinheiro, meio escondido e meio aparecendo, mais na caixa que nos bolsos? Estará com certeza no dinheiro, sim, se acaso o considerarmos como sendo o sangue das nações, a todos os humanos chegando sem usuras. Porque a usura, no nosso mundo, é uma das maldades mais abomináveis que se podem perpetrar contra os outros seres humanos, tendo portanto as nações de ser implacáveis contra ela! O sagrado estará no dinheiro, sim, se ele for o sangue a irrigar e a alimentar, sem constrangimentos, a vida de todos os humanos. Com o sangue não se pode negociar, pelo menos com usura. Ele deve existir só para alimentar e salvar vidas.
Mas é claro que fora da catedral – vê-se agora muito bem – há um outro sacrário, o sacrário do nosso espaço íntimo como acima já dissemos, onde pode nascer e avultar a felicidade, para o que, evidentemente, para seu alimento, também é preciso algum desse sagrado dinheiro.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 47

- Porque se dá a este texto o título de “Natal”?
- Que seres nascem? Nascem e aparecem só os outros seres, ou nasço também eu juntamente com eles? Posso eu, a espaços, nascer sem todos eles?
- Porque somos a hospedaria do mundo?

sábado, 24 de dezembro de 2011

47 - Natal

Natal
Olá! Sobretudo neste tempo de generalizada fuga para a trepidante vida da cidade, o campo, já quase abandonado, é para nós um lugar de bênçãos. Por isso, faz-nos muito bem regressar de quando em vez ao campo, mas melhor ainda é aqui viver. Aqui, no ar lavado, em ligação com a terra e com os ciclos da natureza, na inter-ajuda humana, com uma alimentação mais saudável, sentimo-nos confortados e mais facilmente encontramos e vivemos a nossa humanidade.
Numa tarde soalheira, na orla de um bosque, em vereda de chão plano e liso para não tropeçarmos, andemos para lá e para cá, no meio da natureza. É natural que ao começarmos a andar pensemos na nossa vida, em encontros e conversas com pessoas, nos nossos problemas e também projectos. Mas depois, deixando tudo isso e também o pensar (7, 42), ouçamos só os sons da natureza: mas é ouvi-los só e sem mais nada, isto é, não é ouvir o som e simultaneamente pensar que ele vem do alto dos pinheiros, ou vem de muito longe ou de mais perto, ou que se trata do cantar de uma rola ou de um melro, ou simplesmente são os ramos de uma árvore embatendo em outras. Nada de congeminar pensamentos, mas simples e somente ouvir os sons. E quando não houver sons para ouvir … ficar só a ouvir o silêncio. A ouvir o silêncio … e a respirar o ar puro e morno da tarde, continuando a andar ou parando, no meio da natureza.
Será que somos silêncio, isto é, que somos consciência de sermos silêncio? A consciência que a nossa humanidade nos concede não assenta no silêncio?

Se não tivermos problemas de locomoção e de equilíbrio, e estivermos seguros do local e de onde pomos os pés sobretudo em sítios de declives no terreno, embrenhemo-nos no bosque por carreiros estreitos, rodeados de arvoredo denso. Por aí, sentiremos maior riqueza de sons e também verdadeiros luxos para os olhos: fios e teias de aranha a “impedir-nos” a passagem, vermes a rastejar nos declives, multicores borboletas levantando de esconderijos, aves brincando de galho em galho ou correndo velozmente por entre os troncos das árvores …
Olhemos também para o ondeado do terreno, para os arbustos e para o tronco e a copa das árvores, mas sobretudo olhemos com vagar para as flores silvestres, e até mesmo apanhemos uma ou outra e façamos um belo ramo com elas. A natureza dá-no-las; ela as cria, não para nada e ficando por ali sozinhas eternamente (a sua eternidade pode durar não muito mais que um só dia), sem destinatários, mas para aparecerem a alguém. Não é porém, agora, hora para pensarmos. Da mente, agora, só queremos que ela ponha os sentidos abertos à natureza, em êxtase abertos para a vida.
Então, sintamos ainda o rumor do vento na caruma dos pinheiros e demos conta do odor da molhada manta vegetal que cobre a terra, também do odor das ervas e das flores. Toquemos mesmo no tronco de uma ou outra árvore, e até nos sentemos no chão encostados a um tronco, passando a sua vital energia para o nosso corpo. Orgia dos sentidos, mas sempre sem labor mental. Tudo com a demora e com o prazer possíveis.

Flores e tudo o mais, para aparecerem a alguém. Mas aparecerem a quem?
Do vazio e do silêncio, eu apareço a mim mesmo através do meu corpo. Eu sou consciência de mim mesmo, da minha mente e do meu corpo. A partir daqui, eu sou consciência da aranha ou a aranha consciencializada; consciência daquela rola além ou aquela rola consciencializada … Nós somos a hospedaria do mundo!
Diz-se que Jesus não nasceu na hospedaria porque não tinha lá lugar para nascer; mas nós somos a hospedaria onde nos nasce o mundo, do qual também faz parte esse menino Jesus, o das palavras contidas e sábias quando já crescido; hospedaria onde todos os dias nasce e vive o nosso mundo.
De mente vazia e limpa e repousado, só consciente, eu acolho o mundo; eu sou “taça vazia” sobre a mesa da vida, para acolher o mundo. Mais tarde, e quando necessário, acolhido o mundo, eu o pensarei com conceitos, com raciocínios e teorias. Mas de novo e a espaços – sempre que eu quiser e disso colha prazer –, eu poderei ser de novo só consciência, liberto de pensamentos e eu mental, também consciência de mim próprio e do mundo, em recíproca intimidade.

Nota Solta

Um país com futuro
Nós não andamos numa “jangada de Pedra” juntamente com a Espanha, perdidos no oceano. Nós estamos, sozinhos, radicados nesta ponta da Europa, mas somos uma muito importante placa giratória para todos os continentes!
A principal razão que nos moveu em demanda de descobertas no mar e para além do mar, foi a necessidade de alargar os nossos horizontes, já que não podíamos alargá-los para o leste continental. Desse lado, para nós, “nem bom vento nem bom casamento”. Só com o mar podíamos subsistir como povo independente. E alargando os horizontes para os lados do mar, descobrimos mundos de todos os continentes, onde deixámos língua e alguma civilização e cultura, para além da semente de novas vidas humanas, em miscigenação com as nativas.
A China, onde por muitos séculos estivemos, entrou agora no capital da EDP, estabelecendo-se assim uma duradoira e poderosa relação económica e financeira entre os dois países, cada um deles no seu diferente continente deste vasto mundo globalizado. Participamos na comunidade europeia, sim senhor, mas podemos relativizar essa ligação à Europa, onde se vê que há egoísmos exacerbados e nos têm por um minguado e pobre país do sul e de madraços.Com o interesse que a China manifestou por nós, em razão do valor da empresa e talvez mais por sermos essa placa giratória para se chegar a todo o mundo mas sobretudo aos três continentes do Atlântico, nós podemos merecer melhor consideração de alemães e de americanos e das suas fatídicas agências mercantis.
Mas para além da estratégica posição que temos, neste mundo globalizado, nós temos uma das maiores áreas marítimas do mundo, e para mais muito rica de vida e de minério. Mas sem capitais e sozinhos, não podemos fazer essa exploração. Ora, também para isto, a China pode ser um nosso poderoso parceiro, como também nós podemos ser para ela.
Bem fez o governo em chamar a si todo o processo da referida privatização, sem intermediários, assim nos furtando à extracção de avultada maquia por parte dos poderosos lobbies financeiros, para além de assim dar uma boa sapatada nesses mercados.
Integrados embora nesta Europazinha indecisa e desavinda consigo mesma, nós não somos um país periférico; nós estamos é no centro do mundo! Quer dizer: poderemos ter futuro.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 46

- Em solidão, o íntimo diálogo, a sós, do pensamento;
- O íntimo diálogo do pensar, fora do tempo, mas também o pensar mergulhado no tempo;
- A respiração, como uma actividade do pensar mergulhado no corpo;
- Respirar conscientemente é estar na casinha do corpo; alheio às outras realidades do mundo;
- Respiração consciente – a melhor meditação;
- O falar das redes sociais e o íntimo falar connosco mesmos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

46 - Uma Prenda

Em solidão, é quando eu posso estar mais acompanhado porque é então que eu me posso encontrar e estar comigo mesmo. O mais íntimo diálogo comigo mesmo é aquele em que eu penso e me vejo a pensar, ou seja, quando penso e tenho consciência de que estou a pensar e do que estou pensando, mesmo auxiliado pelo pensar de outros pensadores. Este viver, esta actividade é o que há de mais espiritual, de mais etéreo, que dá um imenso gozo a quem gosta de se entregar a essa actividade, e conduz até a que esse alguém se esqueça de que está neste mundo material, se esqueça do tempo, se esqueça do seu corpo.
Mas ainda em solidão, eu posso produzir um segundo íntimo diálogo a sós comigo mesmo, mas agora já conscientemente mergulhado no tempo! Isso sucede quando eu, disso tendo consciência, penso e falo mentalmente com o meu self, o meu eu que está no tempo, na história; com o eu que sofre vicissitudes, que nasceu e há-de morrer, que tem instintos, emoções, coração, sonhos … Naquele mais íntimo e primeiro diálogo, os dois interlocutores, como que fora do tempo, entendem-se um com o outro necessariamente, mas aqui, neste segundo caso, nem sempre os dois chegam a um recíproco entendimento.
Neste segundo contexto, nesta actividade do meu pensar em que, num dos interlocutores, avulta o meu corpo, uma das actividades mais deliciosas e salutares é o exercício da respiração, respiração abdominal que é a mais profunda, aquela que os bebés nos ensinam a fazer. Respiração que, nos seus dois movimentos de inspiração e expiração, tanto pode compreender todo o corpo em conjunto como pode focalizar-se ou incidir num só órgão ou região do corpo. Inspirar é trazer a vida, a saúde para o corpo; expirar é expelir o mal-estar, o stress, a doença.
Além de que esta respiração, assim consciente, é o melhor meio de não estarmos distraídos, de não andarmos a vadiar por longes com a nossa imaginação, de estarmos na casinha do nosso corpo. Quanto possível, “mente sã em corpo são”, como já se dizia na antiguidade latina, e também agora nós podemos dizer.
Além de que, ainda, esta respiração, assim feita, é a nossa melhor e primeira meditação! Com efeito, que melhor meditação haverá do que estarmos conscientes da vida a inundar-nos e a renovar-nos?
As aéreas redes sociais, que por aí pululam sobretudo por motivos mercantis, põem as pessoas a falar umas com as outras, sim senhor; mas, que podem as pessoas dizer entre si, nessas redes sociais, se não se habituam a falar intimamente consigo mesmas, com toda a riqueza de humanidade que isso nos oferece? Que substância poderão elas comunicar, se não têm o hábito de estar sós, nessa activa e benfazeja solidão, como acima está descrita?
Este texto é uma prendinha para as meninas e meninos já de avançada idade e residentes no lar onde estive, como também para a sua jovem e dedicada animadora, a de todos querida Ana Filipa. Uma prendinha envolta em papel de luxo, coroado com um lacinho vermelho. Façam favor! Tenho muito gosto!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 45

Mordedelas & Companhia:
- A nossa experiência de mordeduras ou ferroadas;
- De como nos nascem as ideias de bom, de mau e de indiferente;
- As regras ou princípios de conduta social e íntima;
- A outra mordedela ou ferroada, que é o remorso;
- A culpa e o remorso, nascidos da transgressão de regras ou princípios morais;
- A culpa e o remorso saudáveis, mas também a culpa e o remorso que envenenam a vida;
- O que a religião tem a ver com a culpa e o remorso, e com a dor e o prazer;
- Dor, sim, mas só ao serviço do prazer;
- Que prazer então: o sempiterno mas descarnado prazer que a religião promete para depois desta vida, ou este prazer de carne e espírito que vamos tendo aqui nas nossas mãos?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

45 - Mordedelas & Companhia



Enquanto o artista me andou a branquear as paredes da casa, tudo bem, mas quando ele saltou para o telhado a fim de pintar os flancos da esguia chaminé, lá no ar, então aí é que foi o cabo dos trabalhos!
Nesse dia, como já nos anteriores, o homem tinha almoçado no pátio, sentado a uma tosca mesa onde, enquanto comia, é natural que levantasse os olhos para um canto do telhado onde havia um ninho vivo de estimação! Eu respeitava as suas habitantes, e elas, em troca, também não me incomodavam. Porém, ele, não procedeu assim! Em vez de estimação e respeitinho, foi-se a uma aguçada e imprudente vara de marmeleiro…e esforricou o ninho todo!
Vai daí que, quando nessa tarde o homem começava a afagar com o pincel os flancos da chaminé, elas cercaram-lhe o corpo todo, ele reagiu em saltos e em danças no telhado – coitadas das telhas e de mim, como depois se averiguou e aconteceu – e o remédio foi ele desistir da incumbência, descendo de supetão todo picado de ferroadas, mordido intensamente pelas vespas!

Gosto muito de passear pelos campos: por estradas, por veredas, por carreiros. Pelos caminhos, no chão, estou sempre a encontrar pedrinhas, minúsculas pedrinhas, a que geralmente sou indiferente. Mas nem sempre é assim! Porque às vezes uma ou outra se entala entre a planta dos pés e a sandália e me começa a incomodar à brava, então eu tenho de dizer que aquela pedrinha, naquele caso, é uma coisa muito má para mim! E agora, se uma delas fosse, imaginem bem, fosse o “rubi” da cantiga do Rui Veloso, assim sendo uma pedrinha muito boa e valiosa, então eu tinha de a devolver ao Rui para ele oferecer – não intacto mas de novo inteirinho como em folha – o “anel de rubi” à menina! A pedrinha preciosa era então uma coisa muito boa para mim e para eles, além de ser ou vir a ser também de muita estimação para eles os dois!
E assim nascem o bom e o mau, o bem e o mal para estes seres mortais que somos nós (12). Aquilo que, para mim, não adrega de ser bom nem mau, isso é-me simplesmente indiferente, muito embora no futuro possa virar mau ou bom.

“Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, ou melhor e positivamente, “faz aos outros aquilo que gostarias que eles te fizessem” é a regra de oiro, muitas vezes experienciada e comprovada, para discernirmos entre o que é bom ou mau em contexto social, bem como para orientar mesmo essa convivência entre os humanos. Sobretudo em assuntos de profunda humanidade, em que estão em jogo os fundamentais direitos e deveres das pessoas, entre os quais vem à cabeça o sagrado direito à vida, e o dever de ela ser preservada. Mas há também princípios muito importantes que nós formulamos só para nós mesmos, a fim de regularmos com inteireza a nossa vida interior e privada. Em todo o caso, porém, quer em termos sociais quer em termos da nossa vida privada, eles são sempre princípios ou regras ditados, directa ou indirectamente, pela nossa consciência. De maneira que proceder de forma contrária ao que a minha consciência me dita ou ditou, em relação aos outros mas também a mim mesmo, isso é afrontar o sagrado que há neles e em mim, é perder de algum modo a dignidade e a honra, é ser desonrado e desonesto.

E assim nasce, por transgressão de regras ou princípios fundamentais de conduta, a culpa e o remorso.
Há portanto, além daquelas mordedelas provocadas pelas vespas, as mordedelas ou remorsos que nós sentimos na nossa consciência moral, remorsos que andam sempre juntos com a culpa, se é que eles não são as duas faces da mesma realidade. As mordedelas provocadas pelas vespas pertencem ao nosso mundo material, pois que mordem o corpo; a mordedela do remorso prende-se com o nosso mundo simbólico, e morde-nos na consciência. Não é porém, este último, um morder vulgar, um morder anódino. Pela sua etimologia, o vocábulo “remorso” aponta para o produto que fica depois de se ser mordido muitas vezes, e mordido intensamente.
É muito saudável sentirmos, na consciência, a culpa e o remorso. Pois então, no íntimo diálogo travado no nosso espírito, não há-de sentir-se culpado um dos intervenientes nem terá remorsos, se o outro interveniente não passar de um salafrário que não faz caso da honra e da dignidade pessoais?

Mas uma coisa é a culpa e o remorso que, embora reais e intensos, são vencíveis e ultrapassáveis e por isso temporários – afinal coisas boas que acontecem na nossa vida por termos fina sensibilidade aos valores que um dia por desgraça nós ofendemos –, e outra bem diversa é o sentimento ou complexo de culpa e o remorso duradoiros, e por isso poderosamente doentios, que se prolongam pela vida fora, mesmo depois de concluirmos que eles, na sua raiz, resultaram de “maldades” – assim mesmo consideradas pelo nosso moral código de infância – que hoje em adultos consideramos não terem qualquer fundamento racional. E no entanto, mesmo assim, esse enraizado sentimento de culpa e os remorsos continuam fazendo o seu caminho … envenenando a vida!
Considerando o sentimento de culpa, Bertrand Russell escreve: “Se nos tivéssemos desembaraçado do ascetismo (nunca fazer aquilo que só dá prazer), o homem virtuoso ideal seria o que gozasse todas as belas coisas da vida, sempre que não houvesse más consequências a sobreporem-se ao prazer”.

Também a religião tem muito a ver com este assunto da culpa, do remorso e do prazer. Pois não assenta ela, afinal, desde os seus alvores bíblicos – com aquele nunca bem esclarecido pecado original e aquela expulsão do paraíso –, num profundo e generalizado sentimento de culpa e consequente e também generalizado remorso a prolongarem-se em vaga de fundo para toda a humanidade, até à vinda de uma salvação que lhe venha de fora? E uma vez vinda essa salvação, não é ainda a persistente culpa e o persistente remorso que nos levam – a nós que continuamos a nada de bom poder fazer sozinhos – a impetrar incessantemente essa ajuda externa?
Por outro lado, não assenta ainda a religião, na negação do prazer? A tal salvação da Humanidade não foi operada pela dor e pelo sofrimento? Não é pela dor e pelo sofrimento que seremos salvos?
De forma bem diversa, porém, ao que acontece na religião, não deverá estar a dor, quando ela houver, ao serviço do prazer? Porque a dor, a dor em si mesma, ela é má para mim! Lembro-me muito bem da dor provocada pela tal pedrinha entalada entre o meu pé e a sandália, e por isso pedrinha má! Mas para alcançarmos os prazeres, sobretudo os mais difíceis e melhores, temos muitas vezes de passar por muitas dores!
Porque o prazer - nesta nossa vida humana em que há corpo e mente e só assim pode ser humana - é que é valor para mim! Prazer físico, mas também e por igual - ou até mais - prazer mental. Uma bela taça de morangos para consolar o paladar e a barrriguinha; uma envolvente obra literária com que me fascino e transcendo; um concerto de violino ou de piano, macio fio de ternura enrolando para dentro para o sossego da inquieta alma ou pingos de som caindo no vazio e no silêncio; um curso de estudos muito caro e longo e trabalhoso que me preparou para uma boa profissão; o amor de uma mulher ou de um homem para uma vida boa em família … Mas para colhermos estes ou outros prazeres, sobretudo os mais importantes e sublimes, temos de sofrer muita dor!
Não é verdade que, para a religião, a dor é que salva … e o prometido prazer vem só na outra vida? Mas que prazer será esse, para este ser humano feito de húmus ou terra, mas então já sem corpo e também sem alma, mas só espírito? Pois não é a nossa alma só a ressonância das paixões, a morada só das paixões que do corpo a ela sobem? E se desse vindouro e sempiterno gozo fizer parte o amor, como terá de fazer, como poderá o ser humano amar sem corpo nem alma, mas tão só com o descarnado, e frio, e impassível espírito? Mas como poderá subsistir esta preciosa luz sem a lâmpada do corpo, ou esta delicada flor sem o húmus da terra que é o corpo, para mais em estado intemporal, de todo desconhecido e diverso de tudo o que sói sermos? Podemos tornar-nos naquilo que nunca experienciámos, mas de modo a continuarmos a reconhecer-nos a nós mesmos? Ou algo diverso nascerá do que de facto morreu, outra vez do vazio e do silêncio?

Pistas de Leitura do Texto 44

- Surfando no Oceano da palavra poética:
- O poema lírico é uma sala de segredos;
- É também um bonito papagaio a voar no céu, mas sempre preso à terra;
- Os belos sentidos das palavras no poema, e a sua ligação a realidades terrestres;
- Um belo poema de Eugénio, e em que consiste o seu encanto.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

44 - Surfando no Oceano da Palavra Poética

Num blog denominado de “O Clube dos Poetas Vivos”, não se entende que nele não falemos formalmente sobre a palavra poética, nem muito menos que não nos deliciemos com esse sublime prazer da poesia. Por isso, aqui começam algumas palavras formais sobre poesia, mas também se apresentam alguns poemas para apreciar e fruir.

Na aérea ou líquida sala de segredos em que o lírico poema pulsa e respira, - ele é mesmo essa sala de segredos -, as palavras podem abrir-se-nos caleidoscopicamente numa pluralidade de sentidos figurados ou poéticos, os quais porém nunca se nos desvendam de forma aleatória. Na verdade, tais sentidos figurados têm de ser sempre relacionáveis e cotejados com o sentido primeiro ou vulgar ou denotativo das mesmas palavras, o qual as remete para as respectivas realidades mundanas assim significadas e conhecidas. O poema vive sempre nessa sala de segredos, mas sem esta contínua ligação das suas palavras ao mundo exterior e objectivo, ele não seria possível nem podia subsistir e ser compreendido. Aliás, se o aéreo significado habitual das palavras não estivesse sempre relacionado com realidades mundanas, não seria mesmo possível entendermo-nos uns aos outros através de palavras, nesta prosaica vida do nosso dia-a-dia!
O poema é um bonito papagaio de papel a voar no céu, sim senhor, mas para poder voar no céu, ele tem de estar preso à terra. Parece que anda solto no céu, mas não anda. Sem estar ligado à pedra da terrena realidade mundana, o sempre alado poema perder-se-ia no ar, levado pelo vento. É sempre a partir da terrena realidade que ele se levanta, e só nessa relação ele pode subsistir e dele podemos usufruir.

Para Eugénio, o bem-nascido poeta, é na memória que está a semente da palavra poética, que o sonho depois fará germinar e nascer. Palavra que desvela o poeta aos outros seres da Terra, sobremaneira aos humanos, sendo que a fina-flor do seu canto é o amor. Canto sempre encantatoriamente feito de ritmo, eufonias, musicalidade e palavras, nele ressoando múltiplos sentidos.
Transcrevamos aqui um desses seus belos textos, a que deu o nome de “RETRATO”: “No teu rosto começa a madrugada. / Luz abrindo, / de rosa em rosa, / transparente e molhada. // Melodia / distante mas segura; / irrompendo da terra, / quente, redonda, madura. // Mar imenso, / praia deserta, horizontal e calma. / Sabor agreste. / Rosto da minha alma.”
Neste poema, o poeta convoca realidades da Natureza para assumirem sentidos poéticos, e com eles e elas fazer o retrato de um Tu que amou no passado, (portanto um amor perdido), mas retrato com o qual também o Eu do poeta se identifica e confunde.
Bem sabemos o que são “rosto”, “madrugada”, “luz”, “rosa”, “melodia”, “terra”, “mar”, “praia”, tudo realidades objectivas, todas fora do Eu poético e do Tu retratado, excepto “rosto”. Mas também “rosto”, (como aliás todas as outras palavras acabadas de referir), tem aqui um sentido segundo ou poético, pois ele é, nos dois casos, o “rosto” da “alma”. E só conhecendo o sentido habitual de todas essas palavras, a remeter para realidades objectivas e concretas aqui convocadas pelo poeta, nós podemos chegar aos sentidos que o poeta quer imprimir no seu texto. Cada receptor chegará à sua maneira, certamente, pois cada um tem a sua própria vivência das referidas realidades.

O notável encanto deste canto lírico está sobremaneira nos alados sentidos que, em última instância, se desprendem de objectividades por nós conhecidas e nomeadas, primorosamente escolhidas e convocadas pelo Eu poético, para com elas (realidades) e eles (alados sentidos) desenhar um “retrato”, alados e abertos sentidos ainda vestidos e sublimados de eufonias, musicalidade e ritmo.
Se o “retrato” do Tu amado (que afinal também é o do Eu poético) é feito com traços de objectividades da Terra, então é porque a subjectividade do poeta demiurgicamente as transfigura e recria através das palavras que habitualmente as nomeiam, assim lhes impondo novos e mais belos sentidos.
E então, o Eu poético desvenda-se-nos num retratado Tu que já só foi e não será, através da matéria verbal que remete para realidades significadas e agora transfiguradas, tudo constituindo um muito belo e saudoso canto de amor.

domingo, 27 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 43

Surfando no oceano das palavras:
- Na praia, a benignidade do mundo;
- Surfando no mar e ouvindo a melopeia sinfónica de Xerazade;
- Dois atrevimentos: um lema e um desafio;
- O melhor remédio contra a opressão do mercado de capitais e um dos mais eficazes alimentos para restabelecer e firmar a nossa comum humanidade.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

43 -Surfando no Oceano das Palavras

Surfando no oceano das palavras

Olá!
Ando agora de novo por esta praia, pés mergulhando nas águas vivas e mansas, ouvidos e olhos inebriando com o branco marulhar das ondas. A maciez, a frescura, o ar lavado, o murmúrio, a distância nítida do horizonte, o azul do mar e do céu, tudo isto, toda esta benignidade do mundo que o meu corpo acolhe apazigua-me a alma e ressoa-me no espírito.
Lembro-me muito bem como se hoje fosse, nós os três também nesta mesma praia, Alfa e Ómega comigo. Eles fazendo surf no mar – já mestre nesse ofício ele, e ela promissora aprendiz –, e eu, em enxuta areia passeando na praia. Ele, Ómega, o Grande, qual deus Neptuno, de pé e de braços abertos, sobre a crista das ondas imperando nos mares; ela, não longe dele, menina Alfa na prancha deitadinha, regalando-se no berço ondulante que o Oceano lhe oferece, assim feito benigno por acção do seu deus! Ele, em mundo circular, bem pertinho de Alfa, e por ela olhando; ela, menina e princípio de todos os elementos com que se nomeiam os seres que aparecem neste mundo, menina e mãe do seu nome e de tudo e do nome dele também. Então, em realidade, os dois surfando no mar e eu passeando em seco na praia. Hoje, em realidade passeando eu sozinho na areia dura da praia, mas em sonho vogando em mar manso no macio barco de Sindbad, embalado na melopeia da “Suite Sinfónica Xerazade” de Rimski – KorsaKov…

Que se há-de dizer mais, nesta actual circunstância, depois de esse encontro ter acontecido? Simplesmente duas coisas atrevidas, que não sei se mas aceitam, mas mesmo assim as digo. A primeira é a modos que um lema a poder guiar-vos, caros jovens, durante a vossa vida de estudantes, em ordem à vossa futura entrada no mercado de trabalho, nestes tempos difíceis. Com efeito, para os jovens estudantes, como é o vosso caso, parece que o grande lema pessoal a curto prazo se pode sintetizar no seguinte: Os melhores alunos têm sempre emprego garantido. Foi o caso da Inês Andrade (notícia da Antena 1, em 21 de Setembro) que, formada aqui com 19 valores em piano, está tocando em Nova Iorque.
O segundo atrevimento, dos dois o mais arriscado, é pôr-vos perante um desafio, o qual leva a uma revolução global urgente e necessária. Segundo penso, o vosso grande desafio, como cidadãos e cidadãs deste país, pode sintetizar-se no seguinte: Tal como não se negoceia com o sangue - sangue que vai para e está nos bancos de sangue e nos hospitais para decisivo alimento das nossas vidas em risco -, assim também não se pode negociar (pelo menos com usura ou especulação) com o dinheiro, pois que o dinheiro é o sangue das nações, em ordem a que as pessoas possam produzir bens e possam comprá-los, para poderem viver. Os políticos das nações têm de ser capazes de regular - temos de lhes exigir que regulem - as finanças das nações, tirando-as das avaras mãos desses especuladores de sangue. Para isso os elegemos; para isso pagamos os nossos impostos. Este é o grande desafio, esta a grande revolução mental que os jovens terão de protagonizar no seu país! Jovens lúcidos, conscientes, autónomos, responsáveis, exigentes, activos e excelentes, excelentes no trabalho e na vida.
Tudo isto afinal para eles, em primeiro lugar, mas também para que a Europa não morra. Não a perigosamente bela namoradinha de Zeus, por este deus encontrada na praia, mas sim esta Europa exangue e antiga que, ainda assim, é a nossa casa comum.




sábado, 19 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 42

O nada que eu sou:
- Eu sou o “eu mental”, ou simplesmente “sou nada”?
- Ser nada” é “ser consciência de ser nada”?
- O “ser consciente”, sem “teorias”, de Alberto Caeiro;
- Krishnamurti: “feliz é o homem que é nada”;
- Sócrates: o ensino sem conteúdos, ou o “pôr a pensar”;
- Platão: o ensino com conteúdos ou ensino de teorias, e portanto a valorização do “eu mental”.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

42 - O Nada que eu Sou

Olá!
Segundo a sabedoria oriental e não só (15), quando eu vejo-vejo uma flor, eu vejo mesmo uma flor, e não o conceito de flor objectivado numa flor. Com este e outros conceitos é que começa e depois se desenvolve, com mais conceitos e preconceitos e ideologias, o meu “eu mental”! Rigorosamente, porém, eu não sou o “eu mental” que habitualmente trago comigo. Na fonte, eu não sou isso, e é para essa fonte e esse primeiro estado que devo caminhar. E ainda bem que não sou o “eu mental” porque, assim, sem qualquer mediador a interpor-se, eu estou em contacto directo e imediato com a flor.
Uma flor é uma flor, e eu … sou nada! Uma flor não pode ser nada, e eu não posso ser flor. E então, ser nada será mais ou menos do que ser flor? Nem mais nem menos, é diferente!
Quando digo sou nada, estou dizendo que sou consciência de ser nada. Mas eu só posso dizer que sou consciência de ser nada, começando por ser consciência num corpo, e a consciência de um corpo. A partir daí, eu sou a consciência da flor, ou a flor consciencializada. Eu sou a consciência do Universo ou o Universo consciencializado. (7)
Citemos Alberto Caeiro: “Dizes-me: tu és mais alguma cousa / Que uma pedra ou uma planta. / Dizes-me: sentes, pensas e sabes / Que pensas e sentes. / Então as pedras escrevem versos? / Então as plantas têm ideias sobre o mundo? // Sim: há diferença. / Mas não é a diferença que encontras; / Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas: / Só me obriga a ser consciente. // Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. / Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.” (Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, 271)

Agora, ouçamos Krishnamurti, que está coloquiando com uma jovem amiga: “A dignidade é algo muito raro. Um cargo ou uma posição de respeito dá «dignidade». É como vestir um casaco. O casaco, aquilo que se veste, dá «dignidade». Um título ou uma posição dão «dignidade». Mas se aos homens forem retiradas essas coisas, muito poucos ficarão com aquela qualidade de dignidade que vem com a liberdade interior de se ser nada. (…) A dignidade não pode ser possuída nem cultivada, e estarmos convencidos de que somos «respeitados» é estarmos centrados em nós mesmos, o que é algo insignificante, pequeno. Ser-se nada é estar-se livre dessa ideia. Ser – não dentro de um qualquer estado particular – é a verdadeira dignidade. (…) Feliz é o homem que é nada.” (Cartas a uma jovem amiga, ps 32 e 35)
Mas depois destas Cartas, por muitos anos e lugares em que conferenciou sobre assuntos de espiritualidade, Krishnamurti não se cansou de glosar o assunto em epígrafe – o nada que eu sou -, tal era a importância que lhe dava. Eis alguns desses comentários, que bem merecem ser citados:
“Se não tivéssemos qualquer crença (…) sentir-nos-íamos totalmente perdidos, não era? E não é esta aceitação da crença o disfarce desse medo – do medo de no fundo sermos nada, de sermos vazio? Afinal, uma chávena apenas tem utilidade se estiver vazia (…) Uma crença religiosa ou política impede, obviamente, a compreensão de nós mesmos.” (A Vida, p.61)
“Queremos possuir, porque sem a posse não existimos. As posses são muitas e variadas. (…). Sem as posses o “eu” não existe, o “eu” é a posse, a mobília, a virtude, o nome.” (ob.cit. p.82)
“A criação só pode ter lugar na negação, que não é o oposto do positivo. Ser nada não é a antítese de sermos alguma coisa.” (ob. cit. p.191)
“Não ser nada é o princípio da liberdade. Portanto, se vocês forem capazes de sentir, de investigar isto, descobrirão, à medida que vão tomando consciência, que não são livres, que estão amarrados a muitas coisas diferentes”. (ob. cit. p.384)
“Todos temos medo de “ser nada”, porque todos queremos ser alguma coisa”. (O Sentido da Liberdade, p.46)
(Em razão do nosso “eu”, nós estamos identificados com os rótulos): “a casa, o nome, a mobília, a conta bancária, as nossas opiniões, os nossos estímulos. Somos todas estas coisas – sendo cada uma delas designada por um nome. As coisas tornaram-se importantes, e também os nomes, os rótulos, e portanto o centro é a palavra.” (Mas) “se não há nenhuma palavra, nenhum rótulo, não há centro, não é verdade? Há uma dissolução, um vazio – não o vazio do medo, que é uma coisa completamente diferente. Há um sentir que somos nada. (…) Deixa de haver centro a partir do qual actuamos” (ob.cit. p.236).
Enfim, embora não implicando que eu inutilize os conteúdos científicos e práticos da mente, do que eu preciso é da revolução de me sentir e ser o vazio total (A Vida, p.322).

Atendamos ainda ao caso do ateniense Sócrates, o qual foi acusado pelo tribunal da cidade de ter corrompido a juventude, e por isso condenado à morte. Mas Sócrates negou sempre esse crime: nunca desviara dos bons caminhos a juventude! E tinha toda a razão porque, na realidade, Sócrates não ensinava nada, ou melhor, o seu ensino não tinha conteúdos. Perante o tribunal, e quanto aos jovens, Sócrates negou sempre a pés juntos que os tivesse feito maus, mas também nunca afirmou que os tivesse feito bons! Portanto, Sócrates, aos jovens, nem os fez maus nem bons, mas simplesmente os pôs a pensar! O que a seguir viria – fazerem-se bons ou maus – já não era com ele, mas com eles e com as circunstâncias em que viveriam.
Com Platão, porém, as coisas já não foram assim. Este discípulo de Sócrates já intentava ensinar conteúdos, já tinha teorias sobre as coisas e sobre a vida e sobre o sentido que ele julgava ela ter, como se vê bem, por exemplo, no mito da caverna. Neste mundo, nós somos sombras, nós estamos presos na caverna do corpo, muito embora, de quando em vez, vislumbremos lampejos da verdadeira e luminosa realidade que fomos antes, no hiperurânio, e onde havemos de ser de novo. Ora, disto, que é uma teoria, eu já posso dizer que para mim é uma coisa boa ou má, que é razoável ou não.
Se tirarmos a Platão todas as suas teorias, ficaríamos simplesmente com o ensino de Sócrates? Não ficaríamos com certeza porque, a Platão, não interessava directa e formalmente a actividade do pensar, como interessava ao seu mestre, mas a teoria veiculada por tal actividade.
Mas o mais importante, de facto, é pormo-nos a pensar e habituarmo-nos a pensar, como fazia Sócrates; é sentirmos a perplexidade da vida e sabermos lidar com ela; é sabermos governar-nos, assim deixando de ser imbecis. É termos consciência, ou melhor, é sermos conscientes, ou consciência, como nos diz Caeiro, e afinal também Krishnamurti.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 41

O livro “LIVRO” de J. L. Peixoto:
- O prazer espiritual;
- Livro em ideia, que passa de mão em mão; depois tornado “Livro”, por narração de Livro;
- “Livro” produto e Livro personagem, em relação ao autor;
- A presença e o trabalho do leitor, a caminho do prazer;
- A pontuação, as incertezas do narrador, a imposição de nomes, a ternura e a repulsa, a arte de narrar e a beleza de escrita, a ironia, o sagrado;
- “Livro” e leitor, reciprocamente transformados;
- “Livro” e leitor, perante a morte;
- A morte, uma negra realidade ou uma realidade branca?
- O gozo do prazer de ler “Livro”.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

41 - Sobre "LIVRO" de José Luís Peixoto

Olá, meninas e meninos!
Estou sentado à mesa onde faço as minhas leituras, das quais recolho e fruo espiritual prazer. Este prazer – que por vezes me inunda de alegria ou pena ou carinho ou repulsa e também comoção – é ele em mim motivado pelo espírito ou pela alma? Por certo que é pelo espírito (activo e impassível) e não pela alma (passiva e passível de todas as paixões), não é verdade? Motiva-o o espírito, mas a alma, vindo-lhe do espírito mas também de todo o corpo, é que o sente! É um prazer tão ou mais intenso como aquele que com a minha alma eu sinto quando, a outra mesa sentado, eu estou alimentando o meu corpo e o meu cérebro, ou deitado estou na cama, não dormindo mas depois ao acordar, sossegado, repousado, outra vez carregado de energia.
Na minha mesa de leituras, tenho hoje aqui à frente, de um José, um livro. Já por aqui passaram por este blog outros Josés. Um, com quem, calmamente, troquei brancas palavras sobre a morte; outro, também escritor, com quem estive numa gostosa e longa cavaqueira sobre um livro seu; e depois ainda um outro que, sendo embora Francisco, também podia chamar-se José, falando nós os dois, de uma forma sentida, sobre a actual descrença em Deus.
Tenho então agora à minha frente, nesta mesa de leituras … um livro de um José. Mas esta coisa assim indeterminada (de um livro e de um José) não pode estar aqui à minha frente! Digamos então que este (um livro de um José) é, bem determinadamente, o livro Livro do José Luís Peixoto: o livro que se intitula Livro.
Por meio de um primeiro narrador não personagem, o autor da narrativa começou por idealizar o livro, que fez passar de mão em mão. Quem primeiro apareceu com o livro foi uma mãe solteira, de má fama, que o depositou nas mãos do seu filho de seis anos. Mas depois, como ela tivesse de emigrar e o filho fosse ainda uma criança que pensava mais em pássaros do que em livros, ela entregou os dois ao cuidado de um pedreiro. Quando o rapaz se fez adolescente, o pedreiro pôs outra vez o livro nas mãos do rapaz, que, por sua vez, para firmar o namoro que tinha com uma menina, o passou para as mãos dela. Só que esta rapariga, tal como aquela outra mulher – mulher sem nome e de má fama – também teve de emigrar sozinha para França, levando o livro consigo. Aí, em Paris, por meio de um segundo nível de leitura do livro, conheceu um foragido português revolucionário e devorador de livros, e casou com ele. Nasceu então Livro, personagem e segundo narrador, o qual se identifica com o livro. Ele narra e também escreve o livro, ele é o livro, e o livro é ele, Livro.
Mas Livro, conversando com o leitor, sempre dentro da narrativa, diz-lhe que este nunca saberá tudo acerca dele. Ora, em princípio, um leitor pode saber tudo sobre um narrador personagem, sempre que ele ocorra, pois esse narrador esgota-se no próprio texto que vai narrando e neste caso também escrevendo, sendo só e tudo o que aí sobre ele se pode observar. Mas se Livro, personagem e narrador, diz ao leitor que nunca poderá saber tudo acerca dele, então é porque, neste caso, ele não se esgota na imaginada narrativa, tal é a sua quase-identificação com o autor. Não se esgotar na narrativa é a condição negativa para a existência da tal quase-identificação com o autor. Mas agora, positivamente, há pelo menos mais duas importantes semelhanças entre os dois, pois que ambos, autor e Livro, falam e escrevem em português e têm a mesma idade, já que ambos nasceram em 1974. Livro diz que tem 36 anos, e o autor – ficamos a sabê-lo por fora da narrativa e só pela orelha esquerda da capa do livro em papel – tem também a mesma idade!
É claro que também existem diferenças entre os dois. A primeira e principal de que todas as outras derivam, é que o autor é um ser real, e Livro é só e simplesmente imaginado, literariamente imaginado pelo autor, que lhe dá por exemplo a ciência que deve possuir para fazer a exacta narração de tudo e só daquilo de que o autor o incumbe. Mas é também o autor que lhe quer imprimir essa profunda semelhança e quase-identificação com ele mesmo, de tal maneira José, o autor, se revê nessa figura narradora e naquilo que ela narra. Livro produto e Livro personagem narradora transformaram-se no autor, e o autor transformou-se neles.

Não adormeçam, meninas e meninos, não adormeçam nem virem os olhos e as mãos para outras leituras ou outras coisas a fazer! Vejam se conseguem levar esta tormentosa leitura até ao fim, porque podem colher algum prazer com ela. Olhem que o José autor de textos está ali a ouvir e a ler este outro texto com toda a atenção, vê-se muito bem!
Ao contrário dos romances tradicionais, que são claros e acabados, produtos prontos para o leitor consumir, esta narrativa nem é clara nem acabada. Ela convoca constantemente o leitor a ter o seu trabalho de interpretação do que vai lendo à superfície textual. À primeira vista, parece até que o texto está desfocado, assim exigindo redobrada atenção ao leitor, que só encontrará a sua nitidez e clareza, fora e acima da lógica e pensamento tradicionais. É certo que o discurso literário, pela sua linguagem figurada, está sempre acima e fora do discurso denotativo de um ensaio. Mas nesta obra as palavras, que não são muitas – os diálogos, por exemplo, são feitos mais de silêncios que de palavras -, elas assumem aqui um peso invulgar, pelo arrojo e riqueza imagística que comportam. E em virtude desta riqueza e densidade das palavras, o leitor é instado a parar para as acolher, as relacionar com outras, as entender e, finalmente, as saborear em toda essa sua amplitude significante. Porque nesta narrativa, se pararmos nas palavras e as olharmos com atenção e ternura, nós vamos encontrar uma fresca nitidez de significação e sentido, para a qual notoriamente contribui – não podemos esquecer – uma muito cuidada pontuação do texto.
Para que a aérea rede simbólica das actuais narrativas literárias possa, para nós, ser objecto de conhecimento e ter sentido, é sempre preciso que elas estejam agarradas à terra, ancoradas a pedra ou pedras não movediças. Ora, uma destas âncoras, no vertente caso desta narrativa, é precisamente a pontuação. Tão meticulosa e precisa e importante é ela que, daquele encontro secreto de uma mulher e de um homem por detrás da fonte nova, ao cair da noite de um arraial na vila, resultou que uma preciosa vírgula é que foi fazendo caminho para o ventre da mulher! Mas…a quem pertencerá de facto esta vírgula, da qual irá nascer o tal bebé denominado Livro? Virá mesmo do homem que se encontrou com aquela mulher?
Por outro lado, Livro narrador confessa estar possuído de muitas incertezas. E, quanto a saber o que é a verdade, “Sim, já sei. O que é a verdade? Sim, já sei, não sei”. Pois é, meu caro Livro, pois é, caríssimo José, também eu sei que não sei o que ela é, a não ser que ela seja a fiel e silenciosa companheira do que é muito provável, sempre tenteada e confirmada e outra vez posta em causa e sempre o mesmo por aí fora. Aquela personagem caída no barranco morreu ou não morreu? Aquela velha, morta no caixão e decompondo-se sob a terra está morta ou está viva?
Há um costume entre nós, seres humanos, que me parece certo: é impormos nome às coisas e às pessoas. Elas aparecem-nos, e nós impomos-lhes nome. Com ele, elas saem do anonimato da inexistência e entram a existir. Em relação a nós, com isso, nós desalienamos o mundo. No caso de um texto literário, o autor pensa-as e, com pensá-las, nomeia-as primeiro com o verbo mental, mas depois, habitualmente, também lhes atribui um nome de palavra(s). Nesta narrativa, porém, três personagens existem, pelo menos, que não têm nome de palavras. A primeira é aquela mulher em cujas mãos o livro nos aparece pela primeira vez; a segunda é aquele homem portador do pesado malote, esquecido na estação de Austerlitz; a terceira é de novo uma mulher, uma portuguesa velhinha de oitenta e muitos anos, que morreu na estrada, abalroada pelo carro conduzido por Livro. Ou serão estas duas mulheres, uma só mulher? Se só uma são, então a mulher que introduziu o livro na narrativa, o qual depois foi personificado em Livro, é quem cessa de existir por via do acidente causado por Livro com o seu carro, quase no fim da narrativa. Certamente que, para o autor, elas têm um nome mental, embora não o tenham de palavras. E se o autor as quis deixar assim, será porventura para que cada um dos leitores lhes possa atribuir, só com seu verbo mental, um nome ou nomes para cada uma das duas, ou três!
Ao longo da narrativa, uma branca onda de ternura envolve muitas personagens, entre as quais os simples e diminuídos mentais e também o povo anónimo deserdado do bem-estar económico e social; mas também se levanta uma vaga negra que repele uma religião instalada e mancomunada com uma política prepotente e ensimesmada, paradas no tempo, quistos sebáceos e parasitas de um povo pobre e esquecido, negra vaga que afasta também revolucionários de pacotilha que fogem do país, também parasitas das famílias, intratáveis intelectualóides que passam uma vida indolente e inútil a remoer inutilidades ideológicas e ressentimentos por dores não sofridas e com desprezo por quem as sofre.
Não esquecer também aquelas quase inexcedíveis arte de narrar e beleza de escrita: o encadeamento dos diálogos na narração, quase todos feitos só de silêncios ou pouco mais; o pitoresco de um passo em que os pides prendem um bêbedo; a contenção e o peso das palavras; a riqueza vocabular; as formas inusitadas e muito belas de dizer; as figuras literárias e muitos outros passos da narrativa a ressumarem de ironia, tudo isto a exigir-nos demora, para de tudo colhermos prazer e podermos usufruir.
De facto, uma fina e profunda ironia alastra e corrói enraizadas ideias e ideologias e também instituições nelas inspiradas e construídas e depois quase eternizadas. A ideia do romance certinho, linear, acabado, pronto a consumir; as ideias de uma lógica e de uma ontologia com as suas verdades inconcussas; as ideias e ideologias de uma política e de uma religião conluiadas uma com a outra e manipulando o povo, como foi o caso da construção do posto da guarda na vila, que depois nunca teve agentes mas foi antro de prostituição. Há também a não comparência do presidente do conselho na inauguração da nova fonte porque cada uma das duas pessoas a quem competia fazer o convite à referida figura pensou que a outra já o tinha feito e por isso não o fez, ninguém depois explicando ao povo o motivo dessa ausência. Há ainda o caso de o Sermão do Encontro, na procissão dos Passos, não ser atendido por qualquer dos fiéis presentes, e outrossim, como já se referiu, a presença de um intratável e fanático revolucionário encalhado em ideias mortas, que de todo não podia ser o pai de Livro.
Mas, se este intratável rato de biblioteca não podia ser o pai de Livro, e também já acima se duvidou que tivesse sido uma outra figura masculina que se encontrou secretamente com uma mulher atrás do fontenário da vila ao cerrar de uma noite festiva, quem terá sido então o seu pai? E, já agora, quem terá sido a sua verdadeira mamã? Nós sabemos que uma vírgula, a qual é sempre um elemento literário, aqui se fez sémen para gerar nova vida no ventre de uma mulher. Será então esta mulher a verdadeira mãe de Livro? Quem são verdadeiramente os pais de Livro? Não pensem os meninos e as meninas que eu vou desvendar aqui e agora este delicioso imbróglio! Tão-somente lhes deixarei três chaves para poderem decifrar o enigma. É a primeira a “verosimilhança”: numa narrativa, é natural que qualquer personagem nasça de um pai e de uma mãe, por forma e por meios semelhantes àqueles que acontecem na vida real entre os seres humanos; a segunda, de alguma forma relacionada com a primeira, é aquela que se encontra na expressão “barriga de aluguer”; a terceira, última e decisiva chave, é a própria “inspiração literária do autor”, a qual nos indicará quem são os verdadeiros pais de Livro! Nada mais agora sobre este assunto se adianta, mas quem quiser fazer perguntas faça favor de comentar este texto, que talvez … que talvez se consiga responder!
Há ainda na narrativa, bem evidente, um profundo e longo sulco de sagrado, que é o sagrado que se encontra no ser humano. Ele nota-se logo nas firmes e consistentes palavras escolhidas e na correspondente filigrana de sentidos que delas irradiam: lembremos de passagem que o ser humano, além de congenitamente ser húmus e terra, é também ser de palavras e de intemporais pensamentos. Patente ainda está o sagrado nos ternos traços com que são desenhadas muitas das personagens, sobremaneira aquelas que vão sendo as portadoras do livro, até chegar e incluir o Livro mesmo. Patente nessa ternura e naquilo que nas personagens a solicita. Claro que tal sagrado é um sagrado intra-mundano, já que o que vem da religião instituída, por intermédio do padre, o sagrado de fora do mundo, é sempre e liminarmente rechaçado.

Caro autor de Livro, caros meninos e meninas desde jovens a maduras e maduros e a todos os velhinhos que ainda têm a cabeça com luz, (já que as crianças, essas, estão muito atentas é a ver os seus bonecos, deixá-las estar, e os adolescentes elas e eles andam aos pardais, deixá-los andar também)! Como leitores, com um pé, pelo espírito que somos, nós somos circulares e eternos como Livro. Mas com o outro pé, que assenta na objectiva realidade mundana, também somos húmus, também somos esterco, também somos morte. Lembras-te, José, lembras-te daquele pesado malote que uma das personagens por ti criadas deixou abandonado na estação de Austerlitz? Mas como foste tu que inventaste essa personagem, também foste tu que, de alguma forma, o abandonaste! Em contraponto com a morte, a realíssima morte, estarmos dentro da obra literária e estarmos dentro da vida – vida mortal, já se vê -, podem mesmo quase identificar-se: “Por enquanto, aproveitemos, ainda estamos aqui”, diz-nos Livro terminando a narrativa.
Já sentiste com certeza, caro José, sentiste que, quando temos viva consciência de que somos mortais, isto é, quando notamos que a morte é nossa inseparável companheira, então, a nossa vida, vida mortal, assume uma outra densidade, tem mais sumo e brilho! E então, porque não partes daquele abandonado malote em Austerlitz para um novo e também muito belo voo literário? Transformada essa nova obra em nós, e nós transformados nessa obra nova, a nossa real vida mortal não será ela também transformada? Digo isto, autor José: Só seremos radicalmente felizes nesta nossa vida mortal se, continuadamente, fizermos contraponto da nossa vida … com a nossa morte. E o texto literário pode ajudar muito nisso. Não se trata de produzir um texto de psicologia positiva, não, mas de nos centrarmos literariamente naquilo que somos e como somos, e de literariamente se desenhar uma luz racional e emocional que oriente o ser humano, na limitada e aberta vida que o possui. Não poderemos, quanto a esta negra realidade da morte, transformá-la em realidade branca?
Que bom é estar vivo para poder usufruir do prazer da leitura e releituras deste livro Livro – com prazer começámos e com prazer terminamos -, sempre descobrindo novos e gostosos pormenores. Estar, como leitor, com um pé dentro do imaginário mundo da narrativa, e o outro pé assente na sua realidade mundana, o leitor se transformando nela, e ela nele se transformando! Um abraço muito sentido para o José.

domingo, 6 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 40

40 – Paulo e Cristianismo ou simplesmente Jesus?
- Paulo fundador da religião cristã;
- Comparação entre a doutrina de Paulo e a pregação de Jesus;
- Fundamental, em Paulo, a ressurreição de Cristo, por ela também dar possibilidade à nossa;
- Algumas perguntas a Paulo;
- Solução natural para o conflito interior de Paulo;
- Num clima de decadência espiritual, as correntes místicas e o cristianismo;
- Há uma faculdade da vontade?
- O que é ser cristão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

40 - Paulo e Cristianismo ou simplemente Jesus

Paulo e Cristianismo ou simplesmente Jesus?

Sem dúvida que foi Paulo de Tarso quem fundou a religião cristã (24). De acordo com ele, o cristianismo é um sistema de doutrina segundo a qual seremos salvos do pecado pela fé na graça do Cristo crucificado e ressuscitado, que também nos levará depois à ressurreição e à vida eterna. Esta doutrina não deriva directamente do Jesus histórico, ou seja, daquilo que Jesus pregou e fez durante a sua vida pública perante os doze apóstolos - doutrina que Paulo até nem conhecia pelo menos em pormenor e nunca conhecida vivencialmente -, mas assenta sobremaneira na clarividência da sua vida interior até então agitada por insolúveis aporias mas agora repentinamente consideradas solucionáveis, acontecida precisamente quando lhe relampejou na estrada de Damasco a visão do Cristo ressuscitado, cuja graça será a sua salvação e a de toda a Humanidade.
É com o pano de fundo da Lei mosaica, na Carta aos Romanos e particularmente no capítulo 7, que Paulo lança as traves mestras do seu sistema. “Eu não conheci o pecado, senão por meio da Lei”, escreve Paulo em 7.7; “Sem Lei, o pecado é coisa morta”, diz em 7.8, mas com a Lei, “o pecado ganha vida” (7.9), “porque a Lei desperta as paixões que agem nos nossos membros”(7.5). Em suma, como com a Lei há sempre pecado, “pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é que faço”(7.15), então só a graça o pode salvar daquele tormentoso conflito interior, a graça de quem lhe apareceu na estrada de Damasco, o Cristo morto mas agora segundo ele ressuscitado.

A pregação e a doutrina de Paulo são muito diversas da pregação de Jesus. Nos três pontos e na conclusão que seguem, vê-se bem essa diferença. Primeiro ponto – Enquanto Paulo diz que a vontade é impotente para cumprir a Lei, Jesus aconselha o cumprimento da Lei, mas fazendo-a sempre transbordar de amor, isto é, “cumpre a Lei e vende tudo o que tiveres e distribui-o pelos pobres” (Lc 18,22). Ou então, em vez do simplesmente legal “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, o amoroso “faz aos outros aquilo que tu queres que te façam”. Segundo ponto – Para Paulo, porque somos impotentes para cumprir a Lei, só podemos ser salvos do pecado pela graça do Cristo ressuscitado; mas para Jesus, o caminho da vida é simplesmente o amor. Terceiro ponto – Segundo Paulo, a salvação definitiva está na vitória sobre a morte, ou seja, na imortalidade individual e na ressurreição. Por isso é que a modelar ressurreição de Jesus é para si fundamental. Quanto a Jesus, ele clama simplesmente que “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 7.21). E quando lhe perguntam o que se deve fazer para alcançar a vida eterna, ele manda simplesmente cumprir a Lei e dar tudo o que se tem aos pobres (Lc 10.25 e 18.22). A ressurreição não estará, portanto, pelo menos de forma explícita, no horizonte da pregação de Jesus (23). Assim, a conclusão é óbvia: enquanto Paulo pretendeu organizar um sistema doutrinário de salvação que servisse para resolver o seu tormentoso conflito interior, e depois também divulgá-lo para servir a muitas outras pessoas, Jesus nunca intentou, formalmente, propor qualquer sistema de doutrina salvífica. Apenas e simplesmente fazia bem às pessoas e pregava o amor.

É fundamental de facto, para Paulo, a ressurreição de Cristo, porque “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã também a vossa fé” (Primeira Carta aos Coríntios 15,14). “E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (15,19). “Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morrem” (15.20)! Assim, Paulo, aquele rigorista fariseu repentinamente convertido a Cristo; de perseguidor passando repentinamente para apóstolo; voluntarista impotente para cumprir a Lei, repentinamente caído nos braços da fé na graça do Cristo ressuscitado, foi sem dúvida o grande anunciador da ressurreição do Cristo, e da nossa, depois, com a de Cristo.
Na mesma Carta aos Coríntios, elencando as várias aparições do Ressuscitado, Paulo inclui também aquela sua, aquele relâmpago na estrada de Damasco, a última de todas elas: “Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto” (15.8). Mas, se a aparição com que foi prendado foi a última, o seu relato de todas elas foi o primeiro a aparecer publicado - entre 53 e 57 -, muito antes dos relatos dos evangelhos, que só surgiram de 70 em diante. Daí a importância e a urgência e a necessidade que Paulo concedia a esse anúncio.

Mas aquelas citações do capítulo 7 da Carta aos Romanos, acima referidas, suscitam-nos muitas perguntas, entre as quais as que seguem. Não será a razão, da qual nunca se fala, a nossa faculdade de conhecermos? Não será por ela, antes de mais, que conhecemos o que é bom e o que é mau e portanto também o que é pecado? E toda a lei não é já e sempre uma “ordenação da razão”, em ordem ao bem comum? É certo que a Lei de que aqui se fala é supostamente uma lei divina, mas, mesmo que assim seja, ela não terá de ser razoável à luz da mente humana? Pode Deus impor aos humanos preceitos irracionais ou arracionais? Em suma, não será a luz da nossa razão o nosso primeiríssimo legislador e também a nossa primeiríssima lei?
Ao dizer que só conhece o pecado por meio da Lei, Paulo anula a razão humana, pondo assim só a Lei à frente dos seus olhos, uma lei impositiva, reificada e divina, que em vão solicita o querer de uma vontade que afinal é impotente para a cumprir! Como “quer o que não faz e faz o que não quer”, Paulo sente-se perplexo, e com razão se lamenta e exclama e pergunta: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte” (7.24)? Nesta perplexidade, ele não tem outro remédio ou salvação senão entregar-se ou cair impotente no regaço da fé, fé na graça: “Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso” (7.25)!
Só que aquele seu tormentoso conflito interior poderá resolver-se muito bem se o entendermos como sendo o normal conflito entre a razão e o instinto, sendo que o tal querer, isto é, a tal vontade, não será outra coisa senão o imperativo ou a determinação da razão, maior ou menor, suficiente ou ineficaz para fazer o que deve ser feito, tendo sempre presente que está dialogando com as forças do instinto. Com a razão eu vejo claramente o que devo fazer, isto é, eu quero isso mesmo, estou determinado a isso, sendo essa a força da minha vontade inteligente ou da minha inteligência determinada. Só que umas vezes consigo realizar esse intento e outras não, em virtude de eu viver num corpo de instintos que realmente “pertence à morte”, sim senhor, mas também bendito corpo porque ele é que me faculta, entre o mais, a luz da razão para me poder guiar! Para os gregos antigos, não existia a faculdade da vontade.

No florescente tempo da Antiguidade Clássica, com os luminosos gregos Sócrates e Aristóteles e a robusta República Romana, não havia consciência de termos e usarmos uma faculdade do querer ou da vontade. A razão inteligente e o vigor dos instintos iam-se entendendo sozinhos, e sentia-se prazer em viver na Terra: além da razão e do instinto, para poderem actuar concertadamente ou não, apenas eram precisos os músculos. Só no contexto de um mundo espiritualmente decadente, na vigência do Império Romano que incluía a Grécia Antiga vencida e do pulular inquieto das correntes místicas orientais que o minavam com o sentido num seguro Além onde se pudesse encontrar um refúgio perene para finalmente descansar continuando a viver, só então começou a despertar a vontade de fazer alguma coisa para aceder a esse estado de salvação. Em parêntesis se diga que tais correntes místicas, talvez mais que nunca, ainda hoje estão vivas nestes nossos tempo e mundo ultra-decadentes.
Mas foi sobretudo com o cristianismo de Paulo, a prometer a salvação nitidamente individual e a vida eterna, que a veemência do drama íntimo de um querer impotente para realizar obra que merecesse a eternidade, se começou a pôr de forma cruel, impotente vontade que depois trouxe guerras de dissidência ainda não sarada entre os cristãos. É certo que entre os clássicos gregos também houve um Platão, a gostar menos da Terra que do Céu! Mas logo o seu discípulo Aristóteles, de pés bem assentes na Terra, o esqueceu, pese embora mais tarde a Cristandade, de forma bem sintomática, o ter distinguido com a auréola de “divus”, o “divino Platão”, como gostosa e gratamente lhe tem chamado.
Na cultura do mundo ocidental, a partir dos começos do cristianismo, tem havido um grande excesso de presença da “vontade”, desde o simples querer fazer da vida individual um projecto ou uma missão a realizar ou a cumprir, até ao hediondo querer exterminador de um povo inteiro no Holocausto. O próprio Paulo, não podendo fazer obra para se salvar, a sua obra para se salvar foi cair impotente nos braços da graça do Salvador! No entanto, tal “vontade”, talvez se esfume no ar, porque, nuns casos ela não será senão o imperativo determinado da razão; noutros, ela será simplesmente a voz do sonho ou coração ou instinto; noutros ainda, ela será o caldeamento, muitas vezes indefinido, de ingredientes desses dois nossos mundos de base, em recíproca cumplicidade. Ficam-nos então só a voz da razão e a voz do corpo, a braços com o prazer e a dor, o bem e o mal. Em todos os casos, porém, a razão, neste animal racional que somos nós, é que deve comandar ou regular a vida do animal que também somos.
Na sua obra A Vida do Espírito, Volume II – Querer, Hannah Arendt, que me inspirou este texto, tem palavras certas para sintetizar a mensagem cristã, nesse contexto de aporias mentais, becos sem saída sofridos pelos povos onde se implantou e expandiu. Diz ela: “Tu que acreditaste que os homens morrem mas que o mundo durará para sempre, precisas apenas de dar meia volta, em direcção a uma fé em que o mundo chega a um fim mas tu terás a vida eterna. Então, é claro, a questão da “rectidão”, a saber, de ser digno dessa vida eterna, toma uma importância completamente nova e pessoal”.
Aporias ou becos sem saída existenciais também hoje nós os temos, nesta ultra-decadente aldeia global: os mesmos que aquando do surgir do Cristianismo, mas outros ainda mais cruéis, todos eles gerando dramas pungentes, se não irreparáveis tragédias. Quem nos salvará: a graça ou a inteligência determinada dos humanos em fazer disto uma Terra habitável, justa e pacífica, onde nos possamos deliciar com esta vida breve, neste planeta ainda azul? Ao menos, uma Terra justa e pacífica, segundo a lei, e ainda preservada e limpa como pede uma boa educação ambiental! Mesmo que nela infelizmente não haja, praticada por Jesus, a abundância do amor.

domingo, 30 de outubro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 39

39 - Carta para a amiguinha Joana:
- A importância do nome;
- Os três tipos de escolas: as escolas habituais, a família e a sociedade; a escola da nossa cabecinha, tantas vezes tão pouco frequentada;
- A importância da nossa cabecinha: estarmos atentos à vida e sermos trabalhadores, responsáveis e exigentes;
- Carta para a Joana, mas também para mim e para toda a gente.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

39 - Carta à Amiguinha Joana

Carta para a Joana, ao cuidado da mãe Luísa:
Querida amiguinha Joana, escrevo e envio-te esta carta ao cuidado dos teus pais, porque penso ser a melhor maneira de ela te chegar. E como ela te irá chegar às mãos no dia dos teus anos, facilmente adivinharás que é por essa razão que te escrevo.
Com a imposição do nome “Joana”, por escolha dos teus pais, tu fizeste há sete anos a tua primordial aparição no mundo, onde te apresentaste para viver ao lado e com os outros seres já existentes no mundo. Nós costumamos dar nome aos seres para os reconhecermos como existentes no nosso mundo. Antes, não existias; depois, saíste do nada e nasceste, mas foi com o nome que apareceste ao mundo. “Estão a ver aqui? Esta é a Joana, que acaba de nascer. É bonita, não é”? Apareceste primeiro à tua família e padrinhos; aos amigos só da tua família depois, porque tu ainda não tinhas os teus amigos; também, num círculo mais alargado, foste aparecendo às pessoas conhecidas e que conheciam a tua família, e bem assim às amiguinhas e amiguinhos que foste fazendo desde bebé; e enfim a toda a sociedade. É claro que também apareceste aos dois cãezitos muito peludos e sobretudo ao papagaio que já existiam na casa dos teus avós, e ainda às árvores que a gente vê por aí e a todos os outros seres que há na Terra, mas de todos esses não falaremos agora em virtude de serem muitos e até alguns deles, como as lagartixas e as cobras, te meterem muito medo! Joana é, portanto, e desde que nasceste, o teu nome.
Cumpres assim hoje – dia 28 de Outubro de 2011 – os teus sete anitos de vida. E então, o papagaio já te deu os parabéns? Sim? Disse-te palavras bonitas? Ou fez-te só uma negaça com o bico e a cabeça e não te disse nada? Pois, tu nunca lhe dás alpista nem lhe limpas a gaiola nem o levas a banho!
O maroto do papagaio não te disse nada … mas tu lembras-te muito bem daquilo que dissemos numa luminosa manhã, os dois passeando no quintal da minha casa, de mãos dadas e entre as árvores, a tua “avó nova” Maria tratando do almoço na cozinha. Falavas tu então dos teus colegas e amiguinhos de escola, e eu, ouvindo, falava-te também da escola, ou melhor, dizia-te que há três tipos de escolas, diferentes mas complementares, que nós vamos frequentando e onde aprendemos para a vida.
No primeiro tipo de escolas, que é o daquela em que andas agora e o de outras mais exigentes em que hás-de andar depois, tu aprendes a ler e a contar e terás muitas outras disciplinas. O segundo tipo de escolas, que hás-de frequentar toda a vida, é a família e a sociedade em que vives e onde vais trabalhar e viver, sempre aprendendo mais coisas. O terceiro tipo de escola que também deverás frequentar toda a vida - de todas as escolas a mais importante e talvez a menos frequentada - é uma escola tão pequenina tão pequenina … que afinal só lá cabe a tua cabecita porque ela própria se reduz à tua cabecita, com a qual tu pensas e vais elaborando a tua pessoal opinião sobre o mundo e a vida! Pela nossa cabeça nos devemos guiar, mas para isso temos de a ir formando com bons mestres, e o mestre mais importante virá sempre a ser cada um para si próprio.
Vês, Joana, o papagaio não te ligou, não te deu os parabéns, mas agora também não tem uma carta como tu estás a ter! “Uf, mas uma carta tão grande, tio João, e ainda por cima não a percebo muito bem”! Mas ouve, Joana, tu podes pedir explicação aos teus professores e aos teus pais, a outros familiares e também a mim, daquilo que ainda não percebes; e depois, nota bem, ela é para a ires lendo e percebendo toda, sim, mas só ao longo de toda a tua vida! E se, agora com sete, tu chegares aos teus setenta ou muito mais anos saudáveis com ela toda lida e percebida e bem cumprida, ela deixará de ser comprida para ser só cumprida!
Desde pequenitos, comandados pela nossa cabecita, nós devemos andar atentos à vida, sermos responsáveis, trabalhadores e também exigentes: exigentes primeiro connosco mesmos, mas depois também com os outros. Sobretudo, e em suma, não podemos ser imbecis, mas sim e sempre autónomos. Por isto é que esta carta, que foi escrita para ti mas também para mim, podia ter sido escrita para toda a gente.
A toda a gente podes mostrar esta carta: a toda a tua família, aos teus professores e colegas de escola e a outros teus amigos e conhecidos, para todos a lerem e explicarem uns aos outros. E agora vais festejar os teus anos, isto é, lanchar e brincar com os teus amiguinhos. Com um beijo grande de parabéns, do teu amigo tio João.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 38

38 – Olá, mamã:
- Pistas de leitura para um texto de criança? Não são habitualmente esses textos, textos de puro cristal?

38 - Olá, mamã

Olá, mamã!
Olha, mamã, aquele tio João dos Carritos, o que foi professor, disse que me ia escrever uma carta pelo dia dos meus anos! Eu estive há tempos em casa dele com a avó Maria, a avó nova, e foi lá que ele me prometeu escrever a tal carta. Tenho-me esquecido de te dizer isto, e hoje, quando me trouxeste de manhã para a escola, tornei a esquecer-me. Mas, como o dia dos meus anos já vem perto – são sete anos, não são? – eu não posso adiar mais esta notícia e por isso te escrevo agora, neste intervalo da manhã.
Hoje, na aula, nós já fizemos muitas coisas: já lemos um texto muito bonito, estudámos a tabuada dos nove e fizemos contas. As minhas contas estavam todas certas, e a professora ficou muito contente comigo e eu também. Parece que vou ser muito boa para contas. E também para ler e escrever!
Mas vamos outra vez a essa carta do tio João. Ele disse-me que me mandava a carta através do computador e que a publicava num blog, no próprio dia dos meus anos. Por isso, nesse dia – é dia 28, não é? – nesse dia à tardinha, depois do lanche com os meus amigos e com vocês, havemos de ir vê-la ao nosso computador, porque ela já lá deve estar. Ó mamã, o que é um blog? Tens de me explicar isso bem.
Mas eu já estou a pensar que, lá na carta, vão aparecer coisas que eu ainda não entendo bem. Eu digo isto porque ele, às vezes, diz palavras um bocado difíceis que eu ainda não percebo muito bem. Eu já vi isso, quando lá estive em casa dele. Mas a mamã e o papá vão ajudar-me a entendê-la toda. E até os meus professores me irão ajudar, e também ele, o tio João, que eu já vi que gosta de falar comigo.
Pronto, mamã, a notícia está dada. Agora, ainda vou brincar um pouco com os meus companheiros, no recreio. Temos um jogo novo muito bonito que eu ainda vou jogar.
Um beijinho grande para ti, da Joana.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 37

37 – No Templo de Apolo:
- No pórtico, as três palavrinhas sábias que devem fundar a vida dos indivíduos e da Europa;
- Os políticos da Europa ouvirão hoje o deus?
- A ganância dos mercados, a conversa catadeira das redes sociais e a educação alimentar;
- Autónomos e senhores de nós mesmos;
- Salvará hoje a Europa o espírito europeu que a deu à luz?

terça-feira, 18 de outubro de 2011

37 - No Templo de Apolo

No pórtico do antigo templo dedicado a Apolo, na terra dos gregos, estavam inscritas duas ou três palavrinhas sábias – gnothi s´auton - que eles, os gregos, atribuíram a esse deus para este as dizer depois, como palavra divina e portanto fundamental e fundante, a todos os habitantes dessa terra. A velha Europa nasce aí nessas terras, nessa cultura e nesses mitos. Nasce aí o que há de mais sagrado e fundante para a Europa, nasce aí o espírito europeu, o qual alastrou depois para grande parte da Humanidade, sendo ainda dessa substância que a Europa e a Humanidade se podem e devem continuar a alimentar (13.3). Nessa forma ou fórmula fundante, nesse “conhece-te a ti mesmo”, não só está a base de toda a nossa conduta, como também aí se espelha a sublimidade do ser humano, a nobreza da sua natureza, nesta Europa e neste universo em que estamos.
Depois, os cristãos destruíram esse templo por acharem necessário expurgar o local dessa crença pagã, mas hoje, se Apolo de novo nos falar, à Europa e ao mundo, “urbi et orbi”- não mais que só essas mesmas duas palavras e meia porque o deus só fala quanto preciso, mesmo que o tenha de repetir muitas vezes -, e se os velhos ouvidos da Europa não estiverem de todo e miseravelmente moucos, como irá esta reagir? Porque Apolo não fala para os mercados financeiros, não senhor, ele sabe muito bem que, em lugar de ouvidos e olhos e razão, esses monstros só têm barriga e ambição. Ele falará, sim, para os políticos, se o quiserem ouvir, que se candidataram para servir a coisa pública, para tanto escolhidos pelos cidadãos. Ele falará também ao ouvido do cidadão atento, não só para este exigir dos políticos o cumprimento de promessas de bem comum, mas também para que cada pessoa saiba regular a sua vida em todas as suas dimensões: social, familiar e pessoal, sem esquecer a intimidade de cada um.

Por iniludível ganância dos mercados, os bancos andaram até há pouco tempo a aliciar as pessoas ao crédito fácil. Pessoa amiga contou-me a história triste de um cartão de crédito nunca usado para tal, que uma entidade bancária tão empenhadamente lhe oferecera: “Tome, meu amigo, agora já pode ter umas férias de sonho num desses paraísos naturais que ainda os há por aí! Goze agora e pague só depois! E se quiser, também pode ir pensando na moradia de todos os seus sonhos e no carro da sua primeira eleição”! Mas a pessoa não fez caso; aquilo tudo não eram necessidades que tivesse, e por isso libertou-se do cartão, indo entregá-lo ao banco, a umas bocas abertas de espanto. Mas agora, os bancos aferrolham-se a sete chaves, não concedendo crédito a ninguém! Até há pouco, eles criaram vícios; agora não satisfazem as necessidades mais prementes, nem falando já nas que criaram com tais vícios.
Mal abrimos o computador, e sobremaneira quando acedemos à Net, logo somos sitiados pelo vespeiro das redes sociais: “Olha que a Felisberta já aceitou ser tua amiga!” Pois sim, pois sim. “Então tu não aceitas ser amigo dela também?” Pois não, pois não! Porque é que hão-de ser os outros a decidir por nós sobre as nossas paixões – falo de todas elas, naturalmente -, e não os nossos olhos e ouvidos e juízo a escolherem?
Quando compro iogurtes nas catedrais de consumo – dois mil e tal produtos diversos estão lá à minha espera para me consolarem a barriguinha e muito mais -, eu quero iogurtes naturais e não iogurtes contaminados de sabores. Porque é que em algumas marcas dos ditos foram rareando os naturais até de todo desaparecerem, ficando só os com sabores, cada vez mais refinados e impossíveis de tragar? É certo que há sabores naturais que, por exemplo, precisam de uma pitada de açúcar, mas também não é preciso que este seja refinado! Aliás, não se tornam sempre mais caros os produtos, com a sua crescente manipulação? Os sabores que directamente a Natureza nos oferece não são em princípio os mais saudáveis e por isso os melhores? Porque é que não se educam as crianças a comerem por exemplo o delicioso pão integral, mas com todos os ingredientes da farinha como costumava sair do grão, das mós de uma azenha, e agora pode ainda sair das empresas de moagem? Porque é que nos afastamos tanto dessa nossa mãe comum? O desenvolvimento tecnológico é incompatível com a nossa ligação à terra?

Em todos os casos, e na medida do possível, para que é que temos olhos e ouvidos e razão? Não será para nos podermos orientar por nós mesmos? São os outros que nos impõem a sua canga, concedendo créditos para nos afogarmos em dívidas, impingindo companhias para conversas inúteis, como se sem sentidos fôssemos e mentecaptos também? Concedo que às vezes, nessas redes sociais, se acendem luzes, se desatam até aporias de angústias, se podem criar saudáveis amizades, sim senhor, mas isto não é regra mas excepção! As pessoas mergulham nessa conversa catadeira à semelhança do que fazem os macacos em revista à cabeça uns dos outros, e deixam de falar consigo mesmas na intimidade do seu espírito, também não conseguindo, por tagarelarem tanto, saborear o valor da palavra e das palavras, e sobretudo do silêncio.
Temos de ser senhores de nós mesmos, para o que é indispensável auto-conhecer-nos, com nos manda Apolo. Sabermos como somos feitos e como nos sentimos nas diversas situações, para nos podermos orientar a nós mesmos. Somos nós mesmos o nosso primeiro e mais decisivo mestre, também o primeiro médico e padre e dietista e advogado e gestor das nossas contas e moedinhas. Às vezes, precisamos de mestre e médico e padre e outros mais porque, preguiçosamente, não estamos para nos auto-conhecer. Mas para tudo isto, para subirmos a essa nobreza que é a nossa humanidade comum, em autonomia e liberdade tanto quanto possível, precisamos muito de nos conhecer e de saber das nossas aspirações, capacidades e também limitações, estas existindo não só por motivos internos, como também por sermos seres sociais. O deus pagão Apolo assim nos manda! Também fazia muito bem à Europa ouvir de novo essa sábia lição de Apolo, porque a lição não é só para cada um dos europeus, todos eles co-criadores da Europa: aquilo que a fundou será agora aquilo mesmo que a não deixará ir ao fundo. Quem dera!

domingo, 16 de outubro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 36

36 – Homem, Lobo do Homem:
- Muitos galos na capoeira;
- Homem, lobo do homem?
- Uma possível concórdia.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

36 - Homem Lobo do Homem

Neste aprazível espaço, no campo, de manhã muito cedo, ouve-se o galo da vizinha; a seguir um outro mais distante; outro e outros depois e mais além; e todos em concerto bem afinado e sem maestro. Mas depois, lá pelas sete, via rádio, dão em ouvir-se os galos de Espanha, amigos do Rocinante; os galos da Gália, também chamados “galos”; finalmente os galos da Germânia, a quem Camões chamou com muita propriedade e ainda hoje chamaria “gado soberbo”. Quem é o maestro desta multidão de aves, que tão desafinadamente estão cantando?
Já o galo Thomas Hobbes, há muito tempo, lá do seu poleiro num brumoso reino do Norte, cantou que “o homem é lobo do homem”, “homo homini lupus” nessa linguagem enxuta, sem grinaldas, que era de usança nesse tempo. Mas hoje, com muito mais lobos a haver e tão mais perto uns dos outros e com dentes tão afiados e famintos, que dirá e fará o tal homem-lobo de e a todos os outros homens? É que ele não poderá dizer dos outros o que diz do galo da vizinha: “o que ele precisa é de arroz”!
Como se conseguirá a “con-córd-ia” entre todas estas tribos, sobretudo entre aquelas que trazem no fundo do bolso das calças ou da saia a mesma moedinha do euro? Não podemos ser muito exigentes, não senhor, mas será que não conseguiremos, ao nível das emoções que sobem da barriguinha, ou seja, dos interesses particulares, e ao nível dos “-ismos” de todas as ideologias que povoam o espírito dos indivíduos e começando pelos nacionalismos, uma basilar mas urgentemente necessária plataforma de entendimento? E assim nos podermos deliciar com esta vida breve que nos possui, a todos por igual, neste planeta azul? Quem dera!

sábado, 8 de outubro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 35

Conversa sem tempo com Luís Miguel Cintra:
- Os assuntos de uma entrevista: o princípio lógico de todo o conteúdo e o seu desenvolvimento em sete pontos:
- Teatralidade ou incarnação emocional de um texto;
- Luís Miguel emocionado ou filósofo?
- À fé religiosa, não será essencial a emoção e o afecto?
- Filosofar leva sempre ao cultivo da fé, ou também pode levar a perdê-la?
- Será Deus, o Deus real, só um produto do nosso pensamento, ou essa questão não se põe porque só precisamos de um mito?
- Descartados do Jesus histórico, e depois considerando Deus e Cristo e a religião como meros produtos do pensamento e da linguagem, não redunda tudo isso em mera subjectividade?
- Podemos continuar a entender-nos com a linguagem, ou ela é só um jogo de espelhos ou casulo que a voltem para dentro, sem que ela aponte para realidades objectivas a si externas?
- O quê, cairmos nós também nos excessos de Wittgenstein sobre a linguagem?
- A divinização humana produz-se a partir de um deus que se faz homem, ou de homem que se faz deus?

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

35 - Conversa sem Tempo com Luís Miguel Cintra

Caro Luís Miguel, tenho seguido, embora de longe, o seu percurso de homem de teatro e de humanidade, sempre só por algumas notícias que me vão chegando pelos jornais, também por ouvir na Antena 2 alguns poemas por si ditos, poemas líricos de Camões, por exemplo, que, tirados dos livros por meus olhos nunca me encantam como quando ouvidos nessa circunstância. No papel, os olhos acham-nos insípidos e frios; na sua locução, os ouvidos sentem o tempero e o calor das emoções, eles fazem-se também poemas do coração.
Até que me chegou há dias uma entrevista, por si concedida a um jornal (P2 de 9-9) por ocasião do lançamento de três discos de leituras suas, a qual me dá muito que pensar e que escrever, começando logo pelo destaque, em garrafais letras todas brancas em página toda preta, do assunto capital aí versado: “A APROXIMAÇÃO À FÉ, DE LUÍS MIGUEL CINTRA”. E porque a entrevista se apresenta um tanto desordenada, presa ainda à circunstância viva de depender directamente de uma conversa solta, tentarei ordenar logicamente os assuntos nela versados, para depois os comentar na medida do possível.
O Luís Miguel diz: “Hoje quero perceber tudo. Quero ser filósofo”. Este é o princípio lógico de tudo, vindo a seguir o seu desenvolvimento, em palavras suas:
1 – “Deus existirá ou não na capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. 2 – “Não sabemos se Cristo foi o que disseram. Interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. 3 – “Os fundadores da religião cristã são os discípulos de Jesus Cristo, e foram esses textos (do Novo Testamento) que inventaram a ideia de Deus”. 4 – “O que me agrada no Cristianismo é a ideia de que Deus se torna homem (…) A forma humana pôde, um dia, conter (a?) divindade. Isso para mim é fundamental porque diz que é do ser humano que parte a sua transcendência. É isso que se chama alma”. 5 – “A Igreja devia promover a apropriação individual de toda a mitologia cristã”. Porque 6 - “Uma coisa são os textos, e outra a sua interpretação, que deve ser individual”: a Igreja não pode considerar burras as pessoas. 7 – “O que a Igreja devia pensar é no que pode existir de comum em todas as pessoas que aderem à religião cristã”, cada uma delas tendo a sua particular interpretação.

Quase ao princípio da entrevista, o Luís Miguel diz que tem sido toda a vida dominado pelos afectos. Isso notou-o às escâncaras, quando um dia se surpreendeu a chorar em Espanha, no dia da Assunção, quando viu, no meio da multidão que se apinhava e aplaudia no templo, a estátua da Virgem subindo à alta cúpula central, ali entendida como o Céu.
Ficou acima dito que eu sinto profundamente um poema de Camões, não quando meus olhos o tiram do livro, mas quando ouço o Luís Miguel a dizê-lo. E agora, na entrevista, ele explica isso muito bem. Com efeito, a teatralidade, ou seja, a incarnação emocional e quente do frio espírito racional de um poema, quando é o caso, ou de uma peça de teatro que jazia morto no papel, para mais apresentado dessa forma viva a uma assembleia presente – a dizer não a um só indivíduo mas a vários ou muitos – é fogo que se pega em feno seco em tarde quente de verão, não é? O nosso mundo das emoções é bem diverso - e também mais profundo e por isso bem mais antigo e envolvente -, comparado com o nosso mundo racional, impassível e frio.
Portanto, ao contrário do que acontece com as emoções, é bem mais difícil o frio e impassível pensamento pegar-se de um a outro de nós, de forma descarnada, sem vir vestido da roupagem quente das emoções. Comparado consigo, Luís Miguel, eu nada sei de teatro, mas parece-me que um homem de teatro deve ser esse que veste emocionalmente o espírito de um texto, para o pegar a outros; reveste-o de corpo, para pegar aos corpos de outros indivíduos, assim podendo chegar ao espírito de cada um. É claro que a seguir, na intimidade do indivíduo e a propósito dessa novidade que lhe chega, dá-se o diálogo entre o corpo e o espírito, ente o coração e a razão, de que nestes toscos textos do blog já se tem falado (26, por exemplo). Diálogo importante e decisivo, sem dúvida, não apresentassem às vezes as emoções e o coração, à razão, aspirações inconvenientes ou impossíveis.

Tendo o Luís Miguel dito acima que tem sido toda a vida dominado pelos afectos, portanto muito afectivo e “leviano”, ele agora quer sair dessa predominância emocional e seguir outro caminho. Agora que está fazendo a sua “aproximação à fé”, ele quer “perceber tudo. Quer ser filósofo”. Mas, meu caro Luís Miguel, não será para a fé, fé religiosa, essencial o afecto? Não será ela, afinal, a voz do coração? No seu pico mais sublime, não será ela um ousado mergulho arracional no Outro? Arracional porque só afectivo? E não tem por outro lado acontecido muitas vezes que, ao contrário do seu caso, quando as pessoas também começam a pensar e a perceber, filosofando sobre as coisas da vida, vêm a perder essa fé religiosa? Falando estou dessa fé religiosa, e não de uma fé outra, a fé intra-mundana, a fé na vida, que esta é para elas essencial!
Versado que está, sucintamente, o princípio lógico de tudo o que foi dito na entrevista, vamos agora, de relance, olhar propriamente para os assuntos que o Luís Miguel foi apresentando. Diz, antes do mais, que a existência de Deus só depende da “capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. Diz depois, mais abaixo e em dois sítios, que foram os textos do Novo Testamento “que inventaram a ideia de Deus”. Mas, meu caro Luís Miguel, se o Deus é pura criação do nosso pensar humano e da nossa linguagem, se não é um ente objectivo diferente de nós, não é ele simplesmente um mito? Ou não será mesmo isto e só isto que dele se quer fazer, qual ninho seguro de afectos, sempre só subjectivo, onde se põem e guardam as mais profundas e sempre subjectivas aspirações?
Por outro lado, Luís Miguel diz, no ponto 2, que “não sabemos se Cristo foi o que disseram”, provavelmente confundindo Cristo com Jesus, e que portanto só “interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. Mas ninguém, digo agora eu, ninguém se pode descartar dessa figura histórica de Jesus! Ela está aí, na história; ela não pode ser anulada. Aliás, para todos os evangelistas, é fundamental essa mesma figura realmente histórica de Jesus, a quem passaram a atribuir todas as propriedades do Messias ou Cristo! Ele é aquele Jesus histórico que conviveu com eles, em quem agora acreditam ser ele mesmo o Messias ou o Cristo. Para os evangelistas e para os outros cristãos, Jesus Cristo é Jesus, por ser uma figura histórica; e é Cristo por ser objecto da sua fé (ver 23.1 e 23.2).

Segundo as concepções do Luís Miguel e já de não pouca gente, Deus, Cristo e religião, tudo isso depende só do pensamento humano e da linguagem, sem quaisquer correspondentes realidades objectivas, cabendo à Igreja simplesmente, como diz nos pontos 6 a 8, promover apropriações individuais dos textos e encontrar um denominador comum das individuais interpretações de todos os que aderem à religião. Tudo é portanto uma questão de subjectividades, qual jardim muito belo e florido mas jardim suspenso, do qual não interessa conhecer nem factos nem raízes históricas porque, segundo dizem, não se podem cabalmente conhecer e até nem existirão. Descartados do Jesus histórico, considerando Deus e Cristo e religião como meros produtos da linguagem … o que é que resta para a nossa querida linguagem, assim fechada em si mesma, assim posta em causa por deixar de poder apontar para factos e realidades, em que ela também assenta e com a qual costumamos relacionar-nos com o mundo? É possível ainda continuarmos a entender-nos uns aos outros com palavras? Não diz o Luís Miguel que o seu sermão de Vieira é basicamente só uma frase, à volta da qual se vão tecendo verbais círculos concêntricos cada vez mais alargados, para assim envolver os ouvintes e os aprisionar e “manipular” com tais “artifícios de pensamento e linguagem”? Envolvê-los, assim fora do tempo e do espaço, nessa teia de palavras ou casulo ou jogo de espelhos? Só lá dentro, então, é que há realidades, as realidades que são somente as palavras, feitas de sons ou de grafemas e de seus respectivos e aéreos significados? Elas não estão presas à pedra das realidades objectivas significadas para que fora delas apontam? Realidades estas que estão fora do tal casulo, ou teia, ou jogo de espelhos que só as palavras jogam ou tecem?

Pensemos agora em coisa mais prosaica, amigo Luís Miguel, pensemos que, cheios de fome como já devemos estar, vamos almoçar juntos ao restaurante. O empregado apressa-se a trazer-nos a ementa, mas vai logo recomendando, com vários pormenores favoráveis, que o prato do dia é um cabritinho assado com batatinhas, tudo assado a preceito num forno antigo de lenha; que ficaríamos muito bem servidos com esse divino prato! Poderíamos nós, então, dar por terminado aí o nosso almoço, nesse enclausurado jogo de favoráveis palavras? Ou não nos estava já a salivar a boca, antecipando o gozo de devorarmos essas deliciosas realidades gastronómicas, situadas bem fora da conversa? Também há aquela história do pastorzinho que iludiu alegremente o povoado gritando “Vem aí lobo, acudam!” e as pessoas acorreram em falso para o ajudar, mas depois, quando de verdade os lobos atacaram e ele de novo gritou, ninguém se viu a correr para ele e para o rebanho a fim de os ajudar! Não conviria então ao rapazinho saber que devia levar a sério o valor das palavras, apontando para objectividades?
Oportuno será também lembrar aqui aquela excessividade de Wittgenstein sobre a linguagem, a qual o levou, segundo o seu mestre Russel, a “agradecer a Deus (quem seria esse deus?) por o ter preservado da banal saúde mental”. Havemos então, também nós, de cair nesses excessos? Havemos de tornar-nos gagos e assim permanecer até aos trinta anos ou mais, por também vivermos numa família onde os actos muito pouco interessavam mesmo que se matassem uns aos outros, e só a linguagem importava, “a maneira de falar ou o facto de falar ou não” sobre os assuntos, como parece ter acontecido com ele?

Ah, mas com aquilo do pós-moderno cabritinho do almoço, tão-somente apetitoso e proveitoso por nossa imaginação, já me vou esquecendo do que disse o Luís Miguel, no ponto 4, sobre a nossa divinização e capacidade de transcendência. Para tal divinização, que levará também à desejada transcendência, haveria duas vias que se apresentam em sentidos opostos: a via do homem que se faz deus, ou a via do deus que se faz homem. Em qual das duas se coloca o Luís Miguel? A primeira é a via da audácia e do empreendedorismo e mesmo do excesso e da arrogância, tudo facilmente contagiável aos outros companheiros humanos; na segunda haveria o caso singular da descida do poder da divindade a um só ser humano, facilmente utilizável para firmar o poder de um imperador terreno e o alargamento e a coesão do seu império. Se isto for assim, em que caso, destes dois, se notará mais exemplarmente a transcendência, possível a todo o ser humano? Já reparou que a concepção da descida do Verbo divino à carne humana só aparece, ali quase intemporalmente colocada, no início do mais tardio dos quatro evangelhos? E que, provavelmente, se teria pensado antes na hipótese de aquele exemplar ser humano, Jesus, ter subido à divindade, assim arrastando outros humanos consigo?
Mas, se estamos enclausurados na linguagem; se esta não nos permite sair para o real que ela aponta; se afinal até o real apontado, ele mesmo se esfuma para só ficar ela e nós lá dentro a olhá-la e a analisá-la porque sim e porque não, então para que vale essa transcendência nossa em direcção a objectividades(?) ou realidades(?) mais sublimes, fora de nós, que não temos nem somos mas queríamos ser ou ter, ou ao menos partilhar, se tudo isso afinal é mera subjectividade e portanto pura ilusão?
Há quanto tempo, Luís Miguel, há quanto tempo aqui estamos conversando, muito mais falando eu por o Luís Miguel já ter falado na entrevista? Há muito? Há pouco? Para mim, foi nenhum! Foi uma conversa sem tempo! Emocionados com a vida, lúcidos e felizes quanto baste - tudo assim junto é que é bom -, seja de uma maneira ou de outra! Para si, Luís Miguel, um terno abraço do João.



segunda-feira, 3 de outubro de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 34

34 – Sobre o sagrado:
34.1 – O sagrado divino:
- Há dois tipos de sagrado?
- O sagrado, no seu jogo do “mostra e esconde”;
- O sagrado divino, na aparição de Emaús.
34.2 – O sagrado terreno:
- O sagrado na Natureza;
- O sagrado humano e o poder de uma cicatriz;
- O sagrado na pessoa humana e sobretudo no amor, onde se inclui o sexo;
- O jogo do amor é também o jogo do sagrado;
- A sede de transcendência abre-nos para o amor e o sagrado, para o sagrado amor;
- Quem completa este inacabado texto?

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

TEZTO 34.2



Entremos então na segunda parte do texto, para falarmos sobre o sagrado humano, se é que ele não é também divino.
Já alguém viu a Natureza a pôr as mãos numa pedra-calcária para dela fazer pedra-mármore, uma pedra muito mais dura e bonita? Já alguém reparou como, da lava incandescente de um vulcão, ela tanto faz granito como basalto? Nunca ninguém a viu a fazer estes milagres e, no entanto, ela opera-os!
Por diversas razões, eu gosto muito de passear pelas estradas e caminhos das aldeias. Uma das mais repousantes para mim, mas também impressivas, é precisamente olhar e perscrutar a nossa mãe Natureza, a ela estando atento e à minúcia dos seus gestos. E então, na estação dos botões e das flores, isso é o máximo! Os quintais, todos cultivados quase só por pessoas de avançada idade, estão primorosos. Também é muito agradável pôr os olhos nos baldios e em outros terrenos não cultivados, porque também aí a Natureza nos oferece mimos. Porque não é a Natureza que me força os olhos a olharem para si, a contemplar a sua beleza; os meus sedentos olhos é que vão à sua procura! Mas será que ela me vai revelar as suas mais profundas belezas?
Está aqui, neste quintal, uma latada de videiras. Muitos são os seus abrolhos, que todos ainda não abriram, mas em breve virão à luz. Não posso pretender vê-los todos a abrir, mas um ao menos gostaria de ver! Por isso, sobre este mesmo que está aqui, do braço desta videira que repousa sobre o muro - eu não vou mesmo esquecer-me –, sobre este é que eu vou estar de olho atento e vivo … para presenciar o milagre! Vou passar, então, todos os dias por aqui, talvez até mais de uma vez. Passo num dia, noutro e noutro, e tudo permanece idêntico, sem qualquer novidade. Mas é curioso e até intrigante porque muitos irmãos botões já abriram, mas o meu continua fechado e a dormir! Agora, vou até passar mais vezes, se isso me for possível, para o surpreender no seu nascer e abrir. Porém, num belo dia de manhã, ainda gotas de orvalho se viam meditando azuladas pelo ramo acima, o meu botão ainda por abrir … agora já estava aberto! Porque é que a Natureza gosta tanto de nos esconder as suas mais belas ternuras? Será por medo de as conspurcarmos, logo ao nascer, com um profano olhar? Porque o sagrado aconteceu, o sagrado mostrou-se … mas os meus olhos não viram essa aparição!

Lembro-me agora de uma conversa que tive com um amigo recente, na qual se vêem deliciosos passos de um seu enamoramento. A jovem estava a trabalhar sentada, com algumas mulheres à volta, e ele acocorou-se ao lado dela. Calhando falar-se de acidentes de trabalho, ela própria referiu que já tinha tido um, e que ainda se podia ver no seu corpo a remanescente cicatriz. E sem delongas, mas muito naturalmente, a menina baixou levemente o decote da camisola do lado do ombro esquerdo, o lado do coração, e mostrou a cicatriz. Só o rapazinho agora meu amigo a pôde ver, porque era ele quem estava mais perto dela. Ele ergueu-se sobre os joelhos, isso bastando para a poder contemplar, acocorando-se de novo ao lado da menina, e das outras pessoas presentes. O palavreado das mulheres que se seguiu a esta divina aparição levou-o a esquecer um tanto a feliz ocorrência, mas nunca mais se lhe apagou da memória.
Neste ponto da conversa com o meu amigo, nós rimo-nos os dois a bandeiras desfraldadas! Não nos rimos da menina, não senhor, pois que até foi generosa para ele. Rimo-nos por nós homens, perante o sexo oposto, nos comportarmos assim!
Enquanto durou aquele ajuntamento e o palavreado das mulheres vigorou, a força daquela aparição não se lhe fez sentir, mas depois, entrado à noite para o escuro silencioso do seu quarto, então é que ela aí o começou a possuir. Pela mão do desejo, a ebúrnea alvura da carne guiou-o, descendo, para o cume do seio, daí irradiando em outras direcções, mas sendo sempre só o sonho a comandar-lhe os movimentos imaginados…
Mas está ali um menino a abanar negativamente a cabeça e mostrando que quer intervir. “Pois diga lá, faz favor”. “Digo que parece impossível que o “sagrado”, sendo algo tão nobre, mesmo até mais sublime que a própria natureza humana, se possa aplicar a coisa tão baixa, como são as paixões”!
É muito interessante a sua posição, meu caro amigo, e ela até nos leva a aprofundar um pouco mais este assunto. Sabe que os gregos antigos tinham vários deuses para protegerem as nossas paixões, não sabe? Sendo assim, é porque esse povo as considerava como boas, como nobres e até talvez divinas! Sabe que Einstein tinha uma grande paixão pela música? Será assim baixeza tão grande gostar muito de cinema, ou de ver o mar, ou de trepar aos cumes nevados das montanhas, ou até, mais prosaicamente, de se perder por uns grelinhos de nabo com uma batatinha cozida, a acompanhar um peixinho grelhado no carvão? O que seria daqueles divinos poemas inspirados na sua Laura, se Petrarca não estivesse dela enamorado? E muitos dos mais belos poemas de Camões, sem as suas amadas mulheres, poderiam existir? A capacidade de se poder apaixonar, em suma, não será algo de sagrado no ser humano?

Entre nós, seres humanos, o jogo do amor – que se constitui das primeiras abordagens, do enamoramento, da paixão e do maduro amor – o jogo do amor é também o jogo do sagrado! É claro que, como somos feitos de paixões mas também de razão fria, da junção destes dois ingredientes resulta que tal jogo nem é calmo nem é pacífico, mas é antes anjo e demónio, é presença e ausência, sendo não raro esta a poder avivar aquela.
Aquilo do “mostra e esconde” (do corpo mas também da alma) é mais próprio dos três primeiros andamentos do jogo: o sagrado mostrou-se, está ali, existe, mas depois teve de esconder-se, para não se banalizar. Esta temporária ausência alimenta o sonho, e o sonho alimenta o desejo, e o desejo alimenta o sagrado. Ele irá por isso e depois desvelar-se de novo, de forma talvez mais generosa, mas sempre só (e não mais) de modo a que não se extinga a chama do desejo do sagrado. Será tudo isto, na sua raiz, um movimento irracional de paixão? Mas o próprio maduro amor, que eu posso ter por alguém, não é também sempre um ousado e arracional mergulho na sua intimidade, podendo portanto não ser correspondido? Pois que o amor, o sagrado, o divino amor que ofereço ao outro podem nele não suscitar idêntico impulso, podem não existir lá para vir ao meu encontro! Gostava muito que, em resposta ao meu impulso de amor, se desse sempre essa feliz aparição … mas não dá! Mas também pode acontecer que, onde já eu penso que não vai haver correspondência ao amor oferecido, ela me pode aparecer depois no cuidado ou no respeito que o outro passou a ter para comigo, activos predicados que sempre acompanham e portanto provam a existência de um verdadeiro amor. E então, a feliz e sagrada aparição está ai!

É preciso estarmos ou sermos seres com muita sede de transcendência, para podermos estar abertos ao amor e ao sagrado. Podemos simplesmente estar sequiosos de ver o deslumbramento da Natureza, que se abre em milagres perante os nossos olhos; ou sequiosos do regaço de uma mulher, ou de um musculoso braço masculino; ou ainda sedentos de um Deus que tarda em se nos revelar. Mas sermos seres com sede de transcendência é justamente aquilo que nós somos! A congénita carência ou incompletude do ser humano … todos nós a sentimos. Por isso, não podemos passar sem o amor e o sagrado, sem o sagrado amor!
É assim o ser humano um ser a quem o sagrado pode aparecer, até porque ele também o pode produzir. Agora, quanto ao sagrado e ao amor de Deus, também eles poderão aparecer-nos? Está ali um ser humano á minha frente, que eu vejo e ouço e toco, com quem me rio e choro e falo. Eu sei que, tal como eu, também ele será capaz de se transcender, capaz portanto de amor e de sagrado. O amor e o sagrado podem lá não estar, é verdade, mas sei que lá podem nascer e depois se me mostrarem! Mas o sagrado e o amor de Deus, o qual eu não vejo nem ouço nem posso tocar, existirão realmente para se me poderem mostrar? Eu sei que, se Deus existir, terá ele de ser sagrado Amor e Inteligência, pois que estas duas realidades se confundem e constituem o que existe de mais sublime (texto 14). Mas … mas … quer um menino ou menina, dos que mais assíduos são na leitura destes textos, completar este inacabado texto?