Nove Passos para uma Opereta
1
Já não era a primeira vez que, ao atarraxar de manhã as botas nos pés, eu constatava que os atacadores se começavam a desventrar em mioleira branca, assim me anunciando que estariam prestes a ir à viola. De modo que, perante tão iminente perigo – não fossem as botas desprender-se dos pés num movimento brusco de passeio mais rápido e atingir a cabeça de alguém, quem sabe se até mesmo a de SarkoMerKel pretensa nova edição do nosso andrógino original –, decidi guiar os meus passos pelo campo até à catedral de consumos, a fim de substituir por uns novos os referidos atilhos. Sucede é que, no meio de um nada pacífico oceano de mais de dois mil produtos e bens diversos, todos à minha espera, era impossível sem ajuda encontrar essa ninharia.
2
- Menina, olhe lá, eu já percorri com atenção todos os corredores do supermercado e não descubro aquilo que pretendo.
- Mas então, o que é que deseja?
- Já vasculhei todas as prateleiras de todos os corredores e não encontro o produto que pretendo.
- Mas que produto quer, diga lá!
- Procuro a felicidade!
- Ah, mas isso não temos! Talvez possa encontrar na farmácia.
- Na farmácia? Onde se vendem xaropes e comprimidos? Nem pensar! Já de lá trouxe muita obra, e vejo bem que lá não há o que pretendo.
- Olhe, o que mais lhe posso fazer é pedir à gerência que pesquise mercados onde se possa encontrar tal produto!
- Muito bem! Faça-me então esse muito grande favor.
3
Talvez possa a gerência encontrar tal produto, sim, vendo todas as ofertas que estão por aí ao dispor dos consumidores. Como a ciência e a técnica estão tão avançadas, e tendo ainda em conta que o que hoje é preciso são empresas empreendedoras que saibam inovar e dar lucros, talvez seja fácil encontrar quem produza ou queira em breve produzir o que pretendo. Talvez mesmo se possa encontrar isso no mercado de capitais, quem sabe! Não é ele um mercado omnipotente?
Na realidade, é mesmo esse produto que me interessa. Até porque, se tivermos de mudar de moeda, assim perdendo cerca de metade destas magríssimas economias que tenho, é muito bom investir agora, enquanto é tempo, num bem muito importante para mim, imaterial e não perecível bem, como é a felicidade! Vamos lá ver se consigo fazer negócio, o negócio da minha vida.
4
- Olá, menina, então já tem novidades para mim?
- Tenho, sim, mas são novidades tristes. A gerência contactou uma chusma de produtores, e em nenhum encontrou tal produto para vender.
- Mas isso parece impossível! Então os mercados não fazem sondagens à procura das necessidades do público, para depois criarem produtos a condizer e venderem e fazerem lucros?
- A gerência não encontrou nada disso no mercado, mas sugere vários produtos que aqui temos, e que até estão no cabaz de Natal!
- Ai é? Não me diga!
- Sim, olhe aqui este cabaz de Natal, que está a tão bom preço!
- Mas a menina acha que estes produtos são idênticos àquilo que pretendo?
- Por mim, realmente, eu não acho! Eu acho que eles até podem ajudar a sermos felizes, mas eles não são mesmo a felicidade!
- Justamente, é isso mesmo!
5
E eis que vejo caminhar para nós o gerente e mestre de cerimónias da catedral, o senhor que teve a gentileza de proceder a todas as pesquisas por mim solicitadas, trabalho afinal todo em vão e por isso nada rentável. Se bem que pareça quase impossível haver tanta gente à procura do mesmo produto que pretendo, e ele não se encontrar à venda nos mercados! O gerente chegou e a menina foi-se logo. Não pode haver momentos desperdiçados, como exigem os automatismos mercantis. O tempo é dinheiro, não é?
6
- Lamento, meu amigo, lamento não poder servi-lo. Nós temos aqui vários produtos para esta quadra festiva, brilhantemente enfeitados com as sagradas palavras de “Feliz Natal”, “Feliz Natal”, mas já vi que tudo isto não é propriamente aquilo que quer encontrar.
- Claro que não! Eu não quero só adjacências de embrulhos esplendidamente engalanados com essas palavras, e agora também não quero o seu embrulhado recheio. Eu quero a felicidade pura, tanto quanto possível com todos os ingredientes que a constituem, entende?
- Sim, sim, penso que entendo! Ainda assim, eu sugeria-lhe que desse uma olhadela ali àquela loja, a loja do ouro, onde poderá negociar. Não quer lá ir experimentar? Além disso, estamos à espera de uma máquina que vende, a troco das respectivas quantias, moedas estranhas de alto valor e também barras de ouro. Ela está por aí a rebentar, e isso pode fazer-lhe jeito, como bom investimento que deve ser.
- Mas esses negócios são um modo de investir ou de perder a outra metade das economias? Quem me garante o valor dessas moedas e dessas barras ou que simplesmente não são contrafacções? Onde as poderei ir depois vender, se tiver necessidade? Além de que - e isto é o principal -, nada disso me vai fornecer daquilo que pretendo, pois não?
7
E aqui estamos nós entalados neste tempo devorador, devorador do que temos e não temos, e já também do que somos. Quem pouco tem, pouco perderá, é certo, mas pode perder o pouco que é necessário à sua subsistência.
Mas quanto à felicidade, a felicidade mesmo, isso é um negócio tão íntimo tão íntimo que, afinal, nem é negócio: aquele que fabrica o produto é também aquele que o dá a si mesmo para gastar e com ele se deliciar, embora dele também outros possam usufruir! Será então o princípio de uma “economia do dom”, sem que aí metam bedelho intermediários gananciosos, como é o caso-limite do execrando mercado de capitais. É que o nosso íntimo bem-estar ninguém o produz por nós e também ninguém no-lo pode tirar! Íntimo bem-estar que, com um mínimo de condições físicas, claro está, constitui essa por todos tão ansiada felicidade. Entalados num tempo devorador do que temos e já também do que somos, é verdade, muito embora nunca possamos ser esbulhados do nosso espaço íntimo, o qual não nos devora mas liberta!
8
Ah, já me olvidava de dizer que, de volta pelo campo, trouxe no bolso uns laços novos para as botas, laços que, logo no primeiro encontro na catedral, a menina fez o favor de me indicar lá na prateleira extrema de uma alta nave. Estes laços novos nas botas também ajudam à felicidade, não é? Além de que, assim, com uns novos laços bem apertando as botas, aquela cabeça do/da SarkoMerkel, de um lado masculina e do outro feminina, não será atingida! Fico descansado. Mas para falar de tal figura humana, deve dizer-se “do” ou “da”, “o” ou “a”? É que a nossa querida língua, língua doce e leve, nem sequer está preparada para estas originalidades aberrantes!
9
Mas ainda uma outra coisa vai esquecendo, importante coisa! Então, se aquilo é uma catedral - com naves e acólitos e mestre de cerimónias e celebrantes consumidores, catedral de consumo e de todo um mundo descartável em que vivemos e até muitas vezes nós somos e fazemos ser - então, onde está aí o “santo dos santos”, o sagrado, o sagrado recôndito ou o recôndito do sagrado? Não existirá nesta catedral o sagrado? Deve existir! Mas onde? Estará ele na caixa registadora? O sagrado será mesmo o dinheiro? Dinheiro, meio escondido e meio aparecendo, mais na caixa que nos bolsos? Estará com certeza no dinheiro, sim, se acaso o considerarmos como sendo o sangue das nações, a todos os humanos chegando sem usuras. Porque a usura, no nosso mundo, é uma das maldades mais abomináveis que se podem perpetrar contra os outros seres humanos, tendo portanto as nações de ser implacáveis contra ela! O sagrado estará no dinheiro, sim, se ele for o sangue a irrigar e a alimentar, sem constrangimentos, a vida de todos os humanos. Com o sangue não se pode negociar, pelo menos com usura. Ele deve existir só para alimentar e salvar vidas.
Mas é claro que fora da catedral – vê-se agora muito bem – há um outro sacrário, o sacrário do nosso espaço íntimo como acima já dissemos, onde pode nascer e avultar a felicidade, para o que, evidentemente, para seu alimento, também é preciso algum desse sagrado dinheiro.
1
Já não era a primeira vez que, ao atarraxar de manhã as botas nos pés, eu constatava que os atacadores se começavam a desventrar em mioleira branca, assim me anunciando que estariam prestes a ir à viola. De modo que, perante tão iminente perigo – não fossem as botas desprender-se dos pés num movimento brusco de passeio mais rápido e atingir a cabeça de alguém, quem sabe se até mesmo a de SarkoMerKel pretensa nova edição do nosso andrógino original –, decidi guiar os meus passos pelo campo até à catedral de consumos, a fim de substituir por uns novos os referidos atilhos. Sucede é que, no meio de um nada pacífico oceano de mais de dois mil produtos e bens diversos, todos à minha espera, era impossível sem ajuda encontrar essa ninharia.
2
- Menina, olhe lá, eu já percorri com atenção todos os corredores do supermercado e não descubro aquilo que pretendo.
- Mas então, o que é que deseja?
- Já vasculhei todas as prateleiras de todos os corredores e não encontro o produto que pretendo.
- Mas que produto quer, diga lá!
- Procuro a felicidade!
- Ah, mas isso não temos! Talvez possa encontrar na farmácia.
- Na farmácia? Onde se vendem xaropes e comprimidos? Nem pensar! Já de lá trouxe muita obra, e vejo bem que lá não há o que pretendo.
- Olhe, o que mais lhe posso fazer é pedir à gerência que pesquise mercados onde se possa encontrar tal produto!
- Muito bem! Faça-me então esse muito grande favor.
3
Talvez possa a gerência encontrar tal produto, sim, vendo todas as ofertas que estão por aí ao dispor dos consumidores. Como a ciência e a técnica estão tão avançadas, e tendo ainda em conta que o que hoje é preciso são empresas empreendedoras que saibam inovar e dar lucros, talvez seja fácil encontrar quem produza ou queira em breve produzir o que pretendo. Talvez mesmo se possa encontrar isso no mercado de capitais, quem sabe! Não é ele um mercado omnipotente?
Na realidade, é mesmo esse produto que me interessa. Até porque, se tivermos de mudar de moeda, assim perdendo cerca de metade destas magríssimas economias que tenho, é muito bom investir agora, enquanto é tempo, num bem muito importante para mim, imaterial e não perecível bem, como é a felicidade! Vamos lá ver se consigo fazer negócio, o negócio da minha vida.
4
- Olá, menina, então já tem novidades para mim?
- Tenho, sim, mas são novidades tristes. A gerência contactou uma chusma de produtores, e em nenhum encontrou tal produto para vender.
- Mas isso parece impossível! Então os mercados não fazem sondagens à procura das necessidades do público, para depois criarem produtos a condizer e venderem e fazerem lucros?
- A gerência não encontrou nada disso no mercado, mas sugere vários produtos que aqui temos, e que até estão no cabaz de Natal!
- Ai é? Não me diga!
- Sim, olhe aqui este cabaz de Natal, que está a tão bom preço!
- Mas a menina acha que estes produtos são idênticos àquilo que pretendo?
- Por mim, realmente, eu não acho! Eu acho que eles até podem ajudar a sermos felizes, mas eles não são mesmo a felicidade!
- Justamente, é isso mesmo!
5
E eis que vejo caminhar para nós o gerente e mestre de cerimónias da catedral, o senhor que teve a gentileza de proceder a todas as pesquisas por mim solicitadas, trabalho afinal todo em vão e por isso nada rentável. Se bem que pareça quase impossível haver tanta gente à procura do mesmo produto que pretendo, e ele não se encontrar à venda nos mercados! O gerente chegou e a menina foi-se logo. Não pode haver momentos desperdiçados, como exigem os automatismos mercantis. O tempo é dinheiro, não é?
6
- Lamento, meu amigo, lamento não poder servi-lo. Nós temos aqui vários produtos para esta quadra festiva, brilhantemente enfeitados com as sagradas palavras de “Feliz Natal”, “Feliz Natal”, mas já vi que tudo isto não é propriamente aquilo que quer encontrar.
- Claro que não! Eu não quero só adjacências de embrulhos esplendidamente engalanados com essas palavras, e agora também não quero o seu embrulhado recheio. Eu quero a felicidade pura, tanto quanto possível com todos os ingredientes que a constituem, entende?
- Sim, sim, penso que entendo! Ainda assim, eu sugeria-lhe que desse uma olhadela ali àquela loja, a loja do ouro, onde poderá negociar. Não quer lá ir experimentar? Além disso, estamos à espera de uma máquina que vende, a troco das respectivas quantias, moedas estranhas de alto valor e também barras de ouro. Ela está por aí a rebentar, e isso pode fazer-lhe jeito, como bom investimento que deve ser.
- Mas esses negócios são um modo de investir ou de perder a outra metade das economias? Quem me garante o valor dessas moedas e dessas barras ou que simplesmente não são contrafacções? Onde as poderei ir depois vender, se tiver necessidade? Além de que - e isto é o principal -, nada disso me vai fornecer daquilo que pretendo, pois não?
7
E aqui estamos nós entalados neste tempo devorador, devorador do que temos e não temos, e já também do que somos. Quem pouco tem, pouco perderá, é certo, mas pode perder o pouco que é necessário à sua subsistência.
Mas quanto à felicidade, a felicidade mesmo, isso é um negócio tão íntimo tão íntimo que, afinal, nem é negócio: aquele que fabrica o produto é também aquele que o dá a si mesmo para gastar e com ele se deliciar, embora dele também outros possam usufruir! Será então o princípio de uma “economia do dom”, sem que aí metam bedelho intermediários gananciosos, como é o caso-limite do execrando mercado de capitais. É que o nosso íntimo bem-estar ninguém o produz por nós e também ninguém no-lo pode tirar! Íntimo bem-estar que, com um mínimo de condições físicas, claro está, constitui essa por todos tão ansiada felicidade. Entalados num tempo devorador do que temos e já também do que somos, é verdade, muito embora nunca possamos ser esbulhados do nosso espaço íntimo, o qual não nos devora mas liberta!
8
Ah, já me olvidava de dizer que, de volta pelo campo, trouxe no bolso uns laços novos para as botas, laços que, logo no primeiro encontro na catedral, a menina fez o favor de me indicar lá na prateleira extrema de uma alta nave. Estes laços novos nas botas também ajudam à felicidade, não é? Além de que, assim, com uns novos laços bem apertando as botas, aquela cabeça do/da SarkoMerkel, de um lado masculina e do outro feminina, não será atingida! Fico descansado. Mas para falar de tal figura humana, deve dizer-se “do” ou “da”, “o” ou “a”? É que a nossa querida língua, língua doce e leve, nem sequer está preparada para estas originalidades aberrantes!
9
Mas ainda uma outra coisa vai esquecendo, importante coisa! Então, se aquilo é uma catedral - com naves e acólitos e mestre de cerimónias e celebrantes consumidores, catedral de consumo e de todo um mundo descartável em que vivemos e até muitas vezes nós somos e fazemos ser - então, onde está aí o “santo dos santos”, o sagrado, o sagrado recôndito ou o recôndito do sagrado? Não existirá nesta catedral o sagrado? Deve existir! Mas onde? Estará ele na caixa registadora? O sagrado será mesmo o dinheiro? Dinheiro, meio escondido e meio aparecendo, mais na caixa que nos bolsos? Estará com certeza no dinheiro, sim, se acaso o considerarmos como sendo o sangue das nações, a todos os humanos chegando sem usuras. Porque a usura, no nosso mundo, é uma das maldades mais abomináveis que se podem perpetrar contra os outros seres humanos, tendo portanto as nações de ser implacáveis contra ela! O sagrado estará no dinheiro, sim, se ele for o sangue a irrigar e a alimentar, sem constrangimentos, a vida de todos os humanos. Com o sangue não se pode negociar, pelo menos com usura. Ele deve existir só para alimentar e salvar vidas.
Mas é claro que fora da catedral – vê-se agora muito bem – há um outro sacrário, o sacrário do nosso espaço íntimo como acima já dissemos, onde pode nascer e avultar a felicidade, para o que, evidentemente, para seu alimento, também é preciso algum desse sagrado dinheiro.