quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

45 - Mordedelas & Companhia



Enquanto o artista me andou a branquear as paredes da casa, tudo bem, mas quando ele saltou para o telhado a fim de pintar os flancos da esguia chaminé, lá no ar, então aí é que foi o cabo dos trabalhos!
Nesse dia, como já nos anteriores, o homem tinha almoçado no pátio, sentado a uma tosca mesa onde, enquanto comia, é natural que levantasse os olhos para um canto do telhado onde havia um ninho vivo de estimação! Eu respeitava as suas habitantes, e elas, em troca, também não me incomodavam. Porém, ele, não procedeu assim! Em vez de estimação e respeitinho, foi-se a uma aguçada e imprudente vara de marmeleiro…e esforricou o ninho todo!
Vai daí que, quando nessa tarde o homem começava a afagar com o pincel os flancos da chaminé, elas cercaram-lhe o corpo todo, ele reagiu em saltos e em danças no telhado – coitadas das telhas e de mim, como depois se averiguou e aconteceu – e o remédio foi ele desistir da incumbência, descendo de supetão todo picado de ferroadas, mordido intensamente pelas vespas!

Gosto muito de passear pelos campos: por estradas, por veredas, por carreiros. Pelos caminhos, no chão, estou sempre a encontrar pedrinhas, minúsculas pedrinhas, a que geralmente sou indiferente. Mas nem sempre é assim! Porque às vezes uma ou outra se entala entre a planta dos pés e a sandália e me começa a incomodar à brava, então eu tenho de dizer que aquela pedrinha, naquele caso, é uma coisa muito má para mim! E agora, se uma delas fosse, imaginem bem, fosse o “rubi” da cantiga do Rui Veloso, assim sendo uma pedrinha muito boa e valiosa, então eu tinha de a devolver ao Rui para ele oferecer – não intacto mas de novo inteirinho como em folha – o “anel de rubi” à menina! A pedrinha preciosa era então uma coisa muito boa para mim e para eles, além de ser ou vir a ser também de muita estimação para eles os dois!
E assim nascem o bom e o mau, o bem e o mal para estes seres mortais que somos nós (12). Aquilo que, para mim, não adrega de ser bom nem mau, isso é-me simplesmente indiferente, muito embora no futuro possa virar mau ou bom.

“Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, ou melhor e positivamente, “faz aos outros aquilo que gostarias que eles te fizessem” é a regra de oiro, muitas vezes experienciada e comprovada, para discernirmos entre o que é bom ou mau em contexto social, bem como para orientar mesmo essa convivência entre os humanos. Sobretudo em assuntos de profunda humanidade, em que estão em jogo os fundamentais direitos e deveres das pessoas, entre os quais vem à cabeça o sagrado direito à vida, e o dever de ela ser preservada. Mas há também princípios muito importantes que nós formulamos só para nós mesmos, a fim de regularmos com inteireza a nossa vida interior e privada. Em todo o caso, porém, quer em termos sociais quer em termos da nossa vida privada, eles são sempre princípios ou regras ditados, directa ou indirectamente, pela nossa consciência. De maneira que proceder de forma contrária ao que a minha consciência me dita ou ditou, em relação aos outros mas também a mim mesmo, isso é afrontar o sagrado que há neles e em mim, é perder de algum modo a dignidade e a honra, é ser desonrado e desonesto.

E assim nasce, por transgressão de regras ou princípios fundamentais de conduta, a culpa e o remorso.
Há portanto, além daquelas mordedelas provocadas pelas vespas, as mordedelas ou remorsos que nós sentimos na nossa consciência moral, remorsos que andam sempre juntos com a culpa, se é que eles não são as duas faces da mesma realidade. As mordedelas provocadas pelas vespas pertencem ao nosso mundo material, pois que mordem o corpo; a mordedela do remorso prende-se com o nosso mundo simbólico, e morde-nos na consciência. Não é porém, este último, um morder vulgar, um morder anódino. Pela sua etimologia, o vocábulo “remorso” aponta para o produto que fica depois de se ser mordido muitas vezes, e mordido intensamente.
É muito saudável sentirmos, na consciência, a culpa e o remorso. Pois então, no íntimo diálogo travado no nosso espírito, não há-de sentir-se culpado um dos intervenientes nem terá remorsos, se o outro interveniente não passar de um salafrário que não faz caso da honra e da dignidade pessoais?

Mas uma coisa é a culpa e o remorso que, embora reais e intensos, são vencíveis e ultrapassáveis e por isso temporários – afinal coisas boas que acontecem na nossa vida por termos fina sensibilidade aos valores que um dia por desgraça nós ofendemos –, e outra bem diversa é o sentimento ou complexo de culpa e o remorso duradoiros, e por isso poderosamente doentios, que se prolongam pela vida fora, mesmo depois de concluirmos que eles, na sua raiz, resultaram de “maldades” – assim mesmo consideradas pelo nosso moral código de infância – que hoje em adultos consideramos não terem qualquer fundamento racional. E no entanto, mesmo assim, esse enraizado sentimento de culpa e os remorsos continuam fazendo o seu caminho … envenenando a vida!
Considerando o sentimento de culpa, Bertrand Russell escreve: “Se nos tivéssemos desembaraçado do ascetismo (nunca fazer aquilo que só dá prazer), o homem virtuoso ideal seria o que gozasse todas as belas coisas da vida, sempre que não houvesse más consequências a sobreporem-se ao prazer”.

Também a religião tem muito a ver com este assunto da culpa, do remorso e do prazer. Pois não assenta ela, afinal, desde os seus alvores bíblicos – com aquele nunca bem esclarecido pecado original e aquela expulsão do paraíso –, num profundo e generalizado sentimento de culpa e consequente e também generalizado remorso a prolongarem-se em vaga de fundo para toda a humanidade, até à vinda de uma salvação que lhe venha de fora? E uma vez vinda essa salvação, não é ainda a persistente culpa e o persistente remorso que nos levam – a nós que continuamos a nada de bom poder fazer sozinhos – a impetrar incessantemente essa ajuda externa?
Por outro lado, não assenta ainda a religião, na negação do prazer? A tal salvação da Humanidade não foi operada pela dor e pelo sofrimento? Não é pela dor e pelo sofrimento que seremos salvos?
De forma bem diversa, porém, ao que acontece na religião, não deverá estar a dor, quando ela houver, ao serviço do prazer? Porque a dor, a dor em si mesma, ela é má para mim! Lembro-me muito bem da dor provocada pela tal pedrinha entalada entre o meu pé e a sandália, e por isso pedrinha má! Mas para alcançarmos os prazeres, sobretudo os mais difíceis e melhores, temos muitas vezes de passar por muitas dores!
Porque o prazer - nesta nossa vida humana em que há corpo e mente e só assim pode ser humana - é que é valor para mim! Prazer físico, mas também e por igual - ou até mais - prazer mental. Uma bela taça de morangos para consolar o paladar e a barrriguinha; uma envolvente obra literária com que me fascino e transcendo; um concerto de violino ou de piano, macio fio de ternura enrolando para dentro para o sossego da inquieta alma ou pingos de som caindo no vazio e no silêncio; um curso de estudos muito caro e longo e trabalhoso que me preparou para uma boa profissão; o amor de uma mulher ou de um homem para uma vida boa em família … Mas para colhermos estes ou outros prazeres, sobretudo os mais importantes e sublimes, temos de sofrer muita dor!
Não é verdade que, para a religião, a dor é que salva … e o prometido prazer vem só na outra vida? Mas que prazer será esse, para este ser humano feito de húmus ou terra, mas então já sem corpo e também sem alma, mas só espírito? Pois não é a nossa alma só a ressonância das paixões, a morada só das paixões que do corpo a ela sobem? E se desse vindouro e sempiterno gozo fizer parte o amor, como terá de fazer, como poderá o ser humano amar sem corpo nem alma, mas tão só com o descarnado, e frio, e impassível espírito? Mas como poderá subsistir esta preciosa luz sem a lâmpada do corpo, ou esta delicada flor sem o húmus da terra que é o corpo, para mais em estado intemporal, de todo desconhecido e diverso de tudo o que sói sermos? Podemos tornar-nos naquilo que nunca experienciámos, mas de modo a continuarmos a reconhecer-nos a nós mesmos? Ou algo diverso nascerá do que de facto morreu, outra vez do vazio e do silêncio?

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