terça-feira, 18 de outubro de 2011

37 - No Templo de Apolo

No pórtico do antigo templo dedicado a Apolo, na terra dos gregos, estavam inscritas duas ou três palavrinhas sábias – gnothi s´auton - que eles, os gregos, atribuíram a esse deus para este as dizer depois, como palavra divina e portanto fundamental e fundante, a todos os habitantes dessa terra. A velha Europa nasce aí nessas terras, nessa cultura e nesses mitos. Nasce aí o que há de mais sagrado e fundante para a Europa, nasce aí o espírito europeu, o qual alastrou depois para grande parte da Humanidade, sendo ainda dessa substância que a Europa e a Humanidade se podem e devem continuar a alimentar (13.3). Nessa forma ou fórmula fundante, nesse “conhece-te a ti mesmo”, não só está a base de toda a nossa conduta, como também aí se espelha a sublimidade do ser humano, a nobreza da sua natureza, nesta Europa e neste universo em que estamos.
Depois, os cristãos destruíram esse templo por acharem necessário expurgar o local dessa crença pagã, mas hoje, se Apolo de novo nos falar, à Europa e ao mundo, “urbi et orbi”- não mais que só essas mesmas duas palavras e meia porque o deus só fala quanto preciso, mesmo que o tenha de repetir muitas vezes -, e se os velhos ouvidos da Europa não estiverem de todo e miseravelmente moucos, como irá esta reagir? Porque Apolo não fala para os mercados financeiros, não senhor, ele sabe muito bem que, em lugar de ouvidos e olhos e razão, esses monstros só têm barriga e ambição. Ele falará, sim, para os políticos, se o quiserem ouvir, que se candidataram para servir a coisa pública, para tanto escolhidos pelos cidadãos. Ele falará também ao ouvido do cidadão atento, não só para este exigir dos políticos o cumprimento de promessas de bem comum, mas também para que cada pessoa saiba regular a sua vida em todas as suas dimensões: social, familiar e pessoal, sem esquecer a intimidade de cada um.

Por iniludível ganância dos mercados, os bancos andaram até há pouco tempo a aliciar as pessoas ao crédito fácil. Pessoa amiga contou-me a história triste de um cartão de crédito nunca usado para tal, que uma entidade bancária tão empenhadamente lhe oferecera: “Tome, meu amigo, agora já pode ter umas férias de sonho num desses paraísos naturais que ainda os há por aí! Goze agora e pague só depois! E se quiser, também pode ir pensando na moradia de todos os seus sonhos e no carro da sua primeira eleição”! Mas a pessoa não fez caso; aquilo tudo não eram necessidades que tivesse, e por isso libertou-se do cartão, indo entregá-lo ao banco, a umas bocas abertas de espanto. Mas agora, os bancos aferrolham-se a sete chaves, não concedendo crédito a ninguém! Até há pouco, eles criaram vícios; agora não satisfazem as necessidades mais prementes, nem falando já nas que criaram com tais vícios.
Mal abrimos o computador, e sobremaneira quando acedemos à Net, logo somos sitiados pelo vespeiro das redes sociais: “Olha que a Felisberta já aceitou ser tua amiga!” Pois sim, pois sim. “Então tu não aceitas ser amigo dela também?” Pois não, pois não! Porque é que hão-de ser os outros a decidir por nós sobre as nossas paixões – falo de todas elas, naturalmente -, e não os nossos olhos e ouvidos e juízo a escolherem?
Quando compro iogurtes nas catedrais de consumo – dois mil e tal produtos diversos estão lá à minha espera para me consolarem a barriguinha e muito mais -, eu quero iogurtes naturais e não iogurtes contaminados de sabores. Porque é que em algumas marcas dos ditos foram rareando os naturais até de todo desaparecerem, ficando só os com sabores, cada vez mais refinados e impossíveis de tragar? É certo que há sabores naturais que, por exemplo, precisam de uma pitada de açúcar, mas também não é preciso que este seja refinado! Aliás, não se tornam sempre mais caros os produtos, com a sua crescente manipulação? Os sabores que directamente a Natureza nos oferece não são em princípio os mais saudáveis e por isso os melhores? Porque é que não se educam as crianças a comerem por exemplo o delicioso pão integral, mas com todos os ingredientes da farinha como costumava sair do grão, das mós de uma azenha, e agora pode ainda sair das empresas de moagem? Porque é que nos afastamos tanto dessa nossa mãe comum? O desenvolvimento tecnológico é incompatível com a nossa ligação à terra?

Em todos os casos, e na medida do possível, para que é que temos olhos e ouvidos e razão? Não será para nos podermos orientar por nós mesmos? São os outros que nos impõem a sua canga, concedendo créditos para nos afogarmos em dívidas, impingindo companhias para conversas inúteis, como se sem sentidos fôssemos e mentecaptos também? Concedo que às vezes, nessas redes sociais, se acendem luzes, se desatam até aporias de angústias, se podem criar saudáveis amizades, sim senhor, mas isto não é regra mas excepção! As pessoas mergulham nessa conversa catadeira à semelhança do que fazem os macacos em revista à cabeça uns dos outros, e deixam de falar consigo mesmas na intimidade do seu espírito, também não conseguindo, por tagarelarem tanto, saborear o valor da palavra e das palavras, e sobretudo do silêncio.
Temos de ser senhores de nós mesmos, para o que é indispensável auto-conhecer-nos, com nos manda Apolo. Sabermos como somos feitos e como nos sentimos nas diversas situações, para nos podermos orientar a nós mesmos. Somos nós mesmos o nosso primeiro e mais decisivo mestre, também o primeiro médico e padre e dietista e advogado e gestor das nossas contas e moedinhas. Às vezes, precisamos de mestre e médico e padre e outros mais porque, preguiçosamente, não estamos para nos auto-conhecer. Mas para tudo isto, para subirmos a essa nobreza que é a nossa humanidade comum, em autonomia e liberdade tanto quanto possível, precisamos muito de nos conhecer e de saber das nossas aspirações, capacidades e também limitações, estas existindo não só por motivos internos, como também por sermos seres sociais. O deus pagão Apolo assim nos manda! Também fazia muito bem à Europa ouvir de novo essa sábia lição de Apolo, porque a lição não é só para cada um dos europeus, todos eles co-criadores da Europa: aquilo que a fundou será agora aquilo mesmo que a não deixará ir ao fundo. Quem dera!

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