quinta-feira, 3 de novembro de 2011

40 - Paulo e Cristianismo ou simplemente Jesus

Paulo e Cristianismo ou simplesmente Jesus?

Sem dúvida que foi Paulo de Tarso quem fundou a religião cristã (24). De acordo com ele, o cristianismo é um sistema de doutrina segundo a qual seremos salvos do pecado pela fé na graça do Cristo crucificado e ressuscitado, que também nos levará depois à ressurreição e à vida eterna. Esta doutrina não deriva directamente do Jesus histórico, ou seja, daquilo que Jesus pregou e fez durante a sua vida pública perante os doze apóstolos - doutrina que Paulo até nem conhecia pelo menos em pormenor e nunca conhecida vivencialmente -, mas assenta sobremaneira na clarividência da sua vida interior até então agitada por insolúveis aporias mas agora repentinamente consideradas solucionáveis, acontecida precisamente quando lhe relampejou na estrada de Damasco a visão do Cristo ressuscitado, cuja graça será a sua salvação e a de toda a Humanidade.
É com o pano de fundo da Lei mosaica, na Carta aos Romanos e particularmente no capítulo 7, que Paulo lança as traves mestras do seu sistema. “Eu não conheci o pecado, senão por meio da Lei”, escreve Paulo em 7.7; “Sem Lei, o pecado é coisa morta”, diz em 7.8, mas com a Lei, “o pecado ganha vida” (7.9), “porque a Lei desperta as paixões que agem nos nossos membros”(7.5). Em suma, como com a Lei há sempre pecado, “pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é que faço”(7.15), então só a graça o pode salvar daquele tormentoso conflito interior, a graça de quem lhe apareceu na estrada de Damasco, o Cristo morto mas agora segundo ele ressuscitado.

A pregação e a doutrina de Paulo são muito diversas da pregação de Jesus. Nos três pontos e na conclusão que seguem, vê-se bem essa diferença. Primeiro ponto – Enquanto Paulo diz que a vontade é impotente para cumprir a Lei, Jesus aconselha o cumprimento da Lei, mas fazendo-a sempre transbordar de amor, isto é, “cumpre a Lei e vende tudo o que tiveres e distribui-o pelos pobres” (Lc 18,22). Ou então, em vez do simplesmente legal “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, o amoroso “faz aos outros aquilo que tu queres que te façam”. Segundo ponto – Para Paulo, porque somos impotentes para cumprir a Lei, só podemos ser salvos do pecado pela graça do Cristo ressuscitado; mas para Jesus, o caminho da vida é simplesmente o amor. Terceiro ponto – Segundo Paulo, a salvação definitiva está na vitória sobre a morte, ou seja, na imortalidade individual e na ressurreição. Por isso é que a modelar ressurreição de Jesus é para si fundamental. Quanto a Jesus, ele clama simplesmente que “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 7.21). E quando lhe perguntam o que se deve fazer para alcançar a vida eterna, ele manda simplesmente cumprir a Lei e dar tudo o que se tem aos pobres (Lc 10.25 e 18.22). A ressurreição não estará, portanto, pelo menos de forma explícita, no horizonte da pregação de Jesus (23). Assim, a conclusão é óbvia: enquanto Paulo pretendeu organizar um sistema doutrinário de salvação que servisse para resolver o seu tormentoso conflito interior, e depois também divulgá-lo para servir a muitas outras pessoas, Jesus nunca intentou, formalmente, propor qualquer sistema de doutrina salvífica. Apenas e simplesmente fazia bem às pessoas e pregava o amor.

É fundamental de facto, para Paulo, a ressurreição de Cristo, porque “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã também a vossa fé” (Primeira Carta aos Coríntios 15,14). “E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (15,19). “Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morrem” (15.20)! Assim, Paulo, aquele rigorista fariseu repentinamente convertido a Cristo; de perseguidor passando repentinamente para apóstolo; voluntarista impotente para cumprir a Lei, repentinamente caído nos braços da fé na graça do Cristo ressuscitado, foi sem dúvida o grande anunciador da ressurreição do Cristo, e da nossa, depois, com a de Cristo.
Na mesma Carta aos Coríntios, elencando as várias aparições do Ressuscitado, Paulo inclui também aquela sua, aquele relâmpago na estrada de Damasco, a última de todas elas: “Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto” (15.8). Mas, se a aparição com que foi prendado foi a última, o seu relato de todas elas foi o primeiro a aparecer publicado - entre 53 e 57 -, muito antes dos relatos dos evangelhos, que só surgiram de 70 em diante. Daí a importância e a urgência e a necessidade que Paulo concedia a esse anúncio.

Mas aquelas citações do capítulo 7 da Carta aos Romanos, acima referidas, suscitam-nos muitas perguntas, entre as quais as que seguem. Não será a razão, da qual nunca se fala, a nossa faculdade de conhecermos? Não será por ela, antes de mais, que conhecemos o que é bom e o que é mau e portanto também o que é pecado? E toda a lei não é já e sempre uma “ordenação da razão”, em ordem ao bem comum? É certo que a Lei de que aqui se fala é supostamente uma lei divina, mas, mesmo que assim seja, ela não terá de ser razoável à luz da mente humana? Pode Deus impor aos humanos preceitos irracionais ou arracionais? Em suma, não será a luz da nossa razão o nosso primeiríssimo legislador e também a nossa primeiríssima lei?
Ao dizer que só conhece o pecado por meio da Lei, Paulo anula a razão humana, pondo assim só a Lei à frente dos seus olhos, uma lei impositiva, reificada e divina, que em vão solicita o querer de uma vontade que afinal é impotente para a cumprir! Como “quer o que não faz e faz o que não quer”, Paulo sente-se perplexo, e com razão se lamenta e exclama e pergunta: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte” (7.24)? Nesta perplexidade, ele não tem outro remédio ou salvação senão entregar-se ou cair impotente no regaço da fé, fé na graça: “Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso” (7.25)!
Só que aquele seu tormentoso conflito interior poderá resolver-se muito bem se o entendermos como sendo o normal conflito entre a razão e o instinto, sendo que o tal querer, isto é, a tal vontade, não será outra coisa senão o imperativo ou a determinação da razão, maior ou menor, suficiente ou ineficaz para fazer o que deve ser feito, tendo sempre presente que está dialogando com as forças do instinto. Com a razão eu vejo claramente o que devo fazer, isto é, eu quero isso mesmo, estou determinado a isso, sendo essa a força da minha vontade inteligente ou da minha inteligência determinada. Só que umas vezes consigo realizar esse intento e outras não, em virtude de eu viver num corpo de instintos que realmente “pertence à morte”, sim senhor, mas também bendito corpo porque ele é que me faculta, entre o mais, a luz da razão para me poder guiar! Para os gregos antigos, não existia a faculdade da vontade.

No florescente tempo da Antiguidade Clássica, com os luminosos gregos Sócrates e Aristóteles e a robusta República Romana, não havia consciência de termos e usarmos uma faculdade do querer ou da vontade. A razão inteligente e o vigor dos instintos iam-se entendendo sozinhos, e sentia-se prazer em viver na Terra: além da razão e do instinto, para poderem actuar concertadamente ou não, apenas eram precisos os músculos. Só no contexto de um mundo espiritualmente decadente, na vigência do Império Romano que incluía a Grécia Antiga vencida e do pulular inquieto das correntes místicas orientais que o minavam com o sentido num seguro Além onde se pudesse encontrar um refúgio perene para finalmente descansar continuando a viver, só então começou a despertar a vontade de fazer alguma coisa para aceder a esse estado de salvação. Em parêntesis se diga que tais correntes místicas, talvez mais que nunca, ainda hoje estão vivas nestes nossos tempo e mundo ultra-decadentes.
Mas foi sobretudo com o cristianismo de Paulo, a prometer a salvação nitidamente individual e a vida eterna, que a veemência do drama íntimo de um querer impotente para realizar obra que merecesse a eternidade, se começou a pôr de forma cruel, impotente vontade que depois trouxe guerras de dissidência ainda não sarada entre os cristãos. É certo que entre os clássicos gregos também houve um Platão, a gostar menos da Terra que do Céu! Mas logo o seu discípulo Aristóteles, de pés bem assentes na Terra, o esqueceu, pese embora mais tarde a Cristandade, de forma bem sintomática, o ter distinguido com a auréola de “divus”, o “divino Platão”, como gostosa e gratamente lhe tem chamado.
Na cultura do mundo ocidental, a partir dos começos do cristianismo, tem havido um grande excesso de presença da “vontade”, desde o simples querer fazer da vida individual um projecto ou uma missão a realizar ou a cumprir, até ao hediondo querer exterminador de um povo inteiro no Holocausto. O próprio Paulo, não podendo fazer obra para se salvar, a sua obra para se salvar foi cair impotente nos braços da graça do Salvador! No entanto, tal “vontade”, talvez se esfume no ar, porque, nuns casos ela não será senão o imperativo determinado da razão; noutros, ela será simplesmente a voz do sonho ou coração ou instinto; noutros ainda, ela será o caldeamento, muitas vezes indefinido, de ingredientes desses dois nossos mundos de base, em recíproca cumplicidade. Ficam-nos então só a voz da razão e a voz do corpo, a braços com o prazer e a dor, o bem e o mal. Em todos os casos, porém, a razão, neste animal racional que somos nós, é que deve comandar ou regular a vida do animal que também somos.
Na sua obra A Vida do Espírito, Volume II – Querer, Hannah Arendt, que me inspirou este texto, tem palavras certas para sintetizar a mensagem cristã, nesse contexto de aporias mentais, becos sem saída sofridos pelos povos onde se implantou e expandiu. Diz ela: “Tu que acreditaste que os homens morrem mas que o mundo durará para sempre, precisas apenas de dar meia volta, em direcção a uma fé em que o mundo chega a um fim mas tu terás a vida eterna. Então, é claro, a questão da “rectidão”, a saber, de ser digno dessa vida eterna, toma uma importância completamente nova e pessoal”.
Aporias ou becos sem saída existenciais também hoje nós os temos, nesta ultra-decadente aldeia global: os mesmos que aquando do surgir do Cristianismo, mas outros ainda mais cruéis, todos eles gerando dramas pungentes, se não irreparáveis tragédias. Quem nos salvará: a graça ou a inteligência determinada dos humanos em fazer disto uma Terra habitável, justa e pacífica, onde nos possamos deliciar com esta vida breve, neste planeta ainda azul? Ao menos, uma Terra justa e pacífica, segundo a lei, e ainda preservada e limpa como pede uma boa educação ambiental! Mesmo que nela infelizmente não haja, praticada por Jesus, a abundância do amor.

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