Caro Luís Miguel, tenho seguido, embora de longe, o seu percurso de homem de teatro e de humanidade, sempre só por algumas notícias que me vão chegando pelos jornais, também por ouvir na Antena 2 alguns poemas por si ditos, poemas líricos de Camões, por exemplo, que, tirados dos livros por meus olhos nunca me encantam como quando ouvidos nessa circunstância. No papel, os olhos acham-nos insípidos e frios; na sua locução, os ouvidos sentem o tempero e o calor das emoções, eles fazem-se também poemas do coração.
Até que me chegou há dias uma entrevista, por si concedida a um jornal (P2 de 9-9) por ocasião do lançamento de três discos de leituras suas, a qual me dá muito que pensar e que escrever, começando logo pelo destaque, em garrafais letras todas brancas em página toda preta, do assunto capital aí versado: “A APROXIMAÇÃO À FÉ, DE LUÍS MIGUEL CINTRA”. E porque a entrevista se apresenta um tanto desordenada, presa ainda à circunstância viva de depender directamente de uma conversa solta, tentarei ordenar logicamente os assuntos nela versados, para depois os comentar na medida do possível.
O Luís Miguel diz: “Hoje quero perceber tudo. Quero ser filósofo”. Este é o princípio lógico de tudo, vindo a seguir o seu desenvolvimento, em palavras suas:
1 – “Deus existirá ou não na capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. 2 – “Não sabemos se Cristo foi o que disseram. Interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. 3 – “Os fundadores da religião cristã são os discípulos de Jesus Cristo, e foram esses textos (do Novo Testamento) que inventaram a ideia de Deus”. 4 – “O que me agrada no Cristianismo é a ideia de que Deus se torna homem (…) A forma humana pôde, um dia, conter (a?) divindade. Isso para mim é fundamental porque diz que é do ser humano que parte a sua transcendência. É isso que se chama alma”. 5 – “A Igreja devia promover a apropriação individual de toda a mitologia cristã”. Porque 6 - “Uma coisa são os textos, e outra a sua interpretação, que deve ser individual”: a Igreja não pode considerar burras as pessoas. 7 – “O que a Igreja devia pensar é no que pode existir de comum em todas as pessoas que aderem à religião cristã”, cada uma delas tendo a sua particular interpretação.
Quase ao princípio da entrevista, o Luís Miguel diz que tem sido toda a vida dominado pelos afectos. Isso notou-o às escâncaras, quando um dia se surpreendeu a chorar em Espanha, no dia da Assunção, quando viu, no meio da multidão que se apinhava e aplaudia no templo, a estátua da Virgem subindo à alta cúpula central, ali entendida como o Céu.
Ficou acima dito que eu sinto profundamente um poema de Camões, não quando meus olhos o tiram do livro, mas quando ouço o Luís Miguel a dizê-lo. E agora, na entrevista, ele explica isso muito bem. Com efeito, a teatralidade, ou seja, a incarnação emocional e quente do frio espírito racional de um poema, quando é o caso, ou de uma peça de teatro que jazia morto no papel, para mais apresentado dessa forma viva a uma assembleia presente – a dizer não a um só indivíduo mas a vários ou muitos – é fogo que se pega em feno seco em tarde quente de verão, não é? O nosso mundo das emoções é bem diverso - e também mais profundo e por isso bem mais antigo e envolvente -, comparado com o nosso mundo racional, impassível e frio.
Portanto, ao contrário do que acontece com as emoções, é bem mais difícil o frio e impassível pensamento pegar-se de um a outro de nós, de forma descarnada, sem vir vestido da roupagem quente das emoções. Comparado consigo, Luís Miguel, eu nada sei de teatro, mas parece-me que um homem de teatro deve ser esse que veste emocionalmente o espírito de um texto, para o pegar a outros; reveste-o de corpo, para pegar aos corpos de outros indivíduos, assim podendo chegar ao espírito de cada um. É claro que a seguir, na intimidade do indivíduo e a propósito dessa novidade que lhe chega, dá-se o diálogo entre o corpo e o espírito, ente o coração e a razão, de que nestes toscos textos do blog já se tem falado (26, por exemplo). Diálogo importante e decisivo, sem dúvida, não apresentassem às vezes as emoções e o coração, à razão, aspirações inconvenientes ou impossíveis.
Tendo o Luís Miguel dito acima que tem sido toda a vida dominado pelos afectos, portanto muito afectivo e “leviano”, ele agora quer sair dessa predominância emocional e seguir outro caminho. Agora que está fazendo a sua “aproximação à fé”, ele quer “perceber tudo. Quer ser filósofo”. Mas, meu caro Luís Miguel, não será para a fé, fé religiosa, essencial o afecto? Não será ela, afinal, a voz do coração? No seu pico mais sublime, não será ela um ousado mergulho arracional no Outro? Arracional porque só afectivo? E não tem por outro lado acontecido muitas vezes que, ao contrário do seu caso, quando as pessoas também começam a pensar e a perceber, filosofando sobre as coisas da vida, vêm a perder essa fé religiosa? Falando estou dessa fé religiosa, e não de uma fé outra, a fé intra-mundana, a fé na vida, que esta é para elas essencial!
Versado que está, sucintamente, o princípio lógico de tudo o que foi dito na entrevista, vamos agora, de relance, olhar propriamente para os assuntos que o Luís Miguel foi apresentando. Diz, antes do mais, que a existência de Deus só depende da “capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. Diz depois, mais abaixo e em dois sítios, que foram os textos do Novo Testamento “que inventaram a ideia de Deus”. Mas, meu caro Luís Miguel, se o Deus é pura criação do nosso pensar humano e da nossa linguagem, se não é um ente objectivo diferente de nós, não é ele simplesmente um mito? Ou não será mesmo isto e só isto que dele se quer fazer, qual ninho seguro de afectos, sempre só subjectivo, onde se põem e guardam as mais profundas e sempre subjectivas aspirações?
Por outro lado, Luís Miguel diz, no ponto 2, que “não sabemos se Cristo foi o que disseram”, provavelmente confundindo Cristo com Jesus, e que portanto só “interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. Mas ninguém, digo agora eu, ninguém se pode descartar dessa figura histórica de Jesus! Ela está aí, na história; ela não pode ser anulada. Aliás, para todos os evangelistas, é fundamental essa mesma figura realmente histórica de Jesus, a quem passaram a atribuir todas as propriedades do Messias ou Cristo! Ele é aquele Jesus histórico que conviveu com eles, em quem agora acreditam ser ele mesmo o Messias ou o Cristo. Para os evangelistas e para os outros cristãos, Jesus Cristo é Jesus, por ser uma figura histórica; e é Cristo por ser objecto da sua fé (ver 23.1 e 23.2).
Segundo as concepções do Luís Miguel e já de não pouca gente, Deus, Cristo e religião, tudo isso depende só do pensamento humano e da linguagem, sem quaisquer correspondentes realidades objectivas, cabendo à Igreja simplesmente, como diz nos pontos 6 a 8, promover apropriações individuais dos textos e encontrar um denominador comum das individuais interpretações de todos os que aderem à religião. Tudo é portanto uma questão de subjectividades, qual jardim muito belo e florido mas jardim suspenso, do qual não interessa conhecer nem factos nem raízes históricas porque, segundo dizem, não se podem cabalmente conhecer e até nem existirão. Descartados do Jesus histórico, considerando Deus e Cristo e religião como meros produtos da linguagem … o que é que resta para a nossa querida linguagem, assim fechada em si mesma, assim posta em causa por deixar de poder apontar para factos e realidades, em que ela também assenta e com a qual costumamos relacionar-nos com o mundo? É possível ainda continuarmos a entender-nos uns aos outros com palavras? Não diz o Luís Miguel que o seu sermão de Vieira é basicamente só uma frase, à volta da qual se vão tecendo verbais círculos concêntricos cada vez mais alargados, para assim envolver os ouvintes e os aprisionar e “manipular” com tais “artifícios de pensamento e linguagem”? Envolvê-los, assim fora do tempo e do espaço, nessa teia de palavras ou casulo ou jogo de espelhos? Só lá dentro, então, é que há realidades, as realidades que são somente as palavras, feitas de sons ou de grafemas e de seus respectivos e aéreos significados? Elas não estão presas à pedra das realidades objectivas significadas para que fora delas apontam? Realidades estas que estão fora do tal casulo, ou teia, ou jogo de espelhos que só as palavras jogam ou tecem?
Pensemos agora em coisa mais prosaica, amigo Luís Miguel, pensemos que, cheios de fome como já devemos estar, vamos almoçar juntos ao restaurante. O empregado apressa-se a trazer-nos a ementa, mas vai logo recomendando, com vários pormenores favoráveis, que o prato do dia é um cabritinho assado com batatinhas, tudo assado a preceito num forno antigo de lenha; que ficaríamos muito bem servidos com esse divino prato! Poderíamos nós, então, dar por terminado aí o nosso almoço, nesse enclausurado jogo de favoráveis palavras? Ou não nos estava já a salivar a boca, antecipando o gozo de devorarmos essas deliciosas realidades gastronómicas, situadas bem fora da conversa? Também há aquela história do pastorzinho que iludiu alegremente o povoado gritando “Vem aí lobo, acudam!” e as pessoas acorreram em falso para o ajudar, mas depois, quando de verdade os lobos atacaram e ele de novo gritou, ninguém se viu a correr para ele e para o rebanho a fim de os ajudar! Não conviria então ao rapazinho saber que devia levar a sério o valor das palavras, apontando para objectividades?
Oportuno será também lembrar aqui aquela excessividade de Wittgenstein sobre a linguagem, a qual o levou, segundo o seu mestre Russel, a “agradecer a Deus (quem seria esse deus?) por o ter preservado da banal saúde mental”. Havemos então, também nós, de cair nesses excessos? Havemos de tornar-nos gagos e assim permanecer até aos trinta anos ou mais, por também vivermos numa família onde os actos muito pouco interessavam mesmo que se matassem uns aos outros, e só a linguagem importava, “a maneira de falar ou o facto de falar ou não” sobre os assuntos, como parece ter acontecido com ele?
Ah, mas com aquilo do pós-moderno cabritinho do almoço, tão-somente apetitoso e proveitoso por nossa imaginação, já me vou esquecendo do que disse o Luís Miguel, no ponto 4, sobre a nossa divinização e capacidade de transcendência. Para tal divinização, que levará também à desejada transcendência, haveria duas vias que se apresentam em sentidos opostos: a via do homem que se faz deus, ou a via do deus que se faz homem. Em qual das duas se coloca o Luís Miguel? A primeira é a via da audácia e do empreendedorismo e mesmo do excesso e da arrogância, tudo facilmente contagiável aos outros companheiros humanos; na segunda haveria o caso singular da descida do poder da divindade a um só ser humano, facilmente utilizável para firmar o poder de um imperador terreno e o alargamento e a coesão do seu império. Se isto for assim, em que caso, destes dois, se notará mais exemplarmente a transcendência, possível a todo o ser humano? Já reparou que a concepção da descida do Verbo divino à carne humana só aparece, ali quase intemporalmente colocada, no início do mais tardio dos quatro evangelhos? E que, provavelmente, se teria pensado antes na hipótese de aquele exemplar ser humano, Jesus, ter subido à divindade, assim arrastando outros humanos consigo?
Mas, se estamos enclausurados na linguagem; se esta não nos permite sair para o real que ela aponta; se afinal até o real apontado, ele mesmo se esfuma para só ficar ela e nós lá dentro a olhá-la e a analisá-la porque sim e porque não, então para que vale essa transcendência nossa em direcção a objectividades(?) ou realidades(?) mais sublimes, fora de nós, que não temos nem somos mas queríamos ser ou ter, ou ao menos partilhar, se tudo isso afinal é mera subjectividade e portanto pura ilusão?
Há quanto tempo, Luís Miguel, há quanto tempo aqui estamos conversando, muito mais falando eu por o Luís Miguel já ter falado na entrevista? Há muito? Há pouco? Para mim, foi nenhum! Foi uma conversa sem tempo! Emocionados com a vida, lúcidos e felizes quanto baste - tudo assim junto é que é bom -, seja de uma maneira ou de outra! Para si, Luís Miguel, um terno abraço do João.
Até que me chegou há dias uma entrevista, por si concedida a um jornal (P2 de 9-9) por ocasião do lançamento de três discos de leituras suas, a qual me dá muito que pensar e que escrever, começando logo pelo destaque, em garrafais letras todas brancas em página toda preta, do assunto capital aí versado: “A APROXIMAÇÃO À FÉ, DE LUÍS MIGUEL CINTRA”. E porque a entrevista se apresenta um tanto desordenada, presa ainda à circunstância viva de depender directamente de uma conversa solta, tentarei ordenar logicamente os assuntos nela versados, para depois os comentar na medida do possível.
O Luís Miguel diz: “Hoje quero perceber tudo. Quero ser filósofo”. Este é o princípio lógico de tudo, vindo a seguir o seu desenvolvimento, em palavras suas:
1 – “Deus existirá ou não na capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. 2 – “Não sabemos se Cristo foi o que disseram. Interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. 3 – “Os fundadores da religião cristã são os discípulos de Jesus Cristo, e foram esses textos (do Novo Testamento) que inventaram a ideia de Deus”. 4 – “O que me agrada no Cristianismo é a ideia de que Deus se torna homem (…) A forma humana pôde, um dia, conter (a?) divindade. Isso para mim é fundamental porque diz que é do ser humano que parte a sua transcendência. É isso que se chama alma”. 5 – “A Igreja devia promover a apropriação individual de toda a mitologia cristã”. Porque 6 - “Uma coisa são os textos, e outra a sua interpretação, que deve ser individual”: a Igreja não pode considerar burras as pessoas. 7 – “O que a Igreja devia pensar é no que pode existir de comum em todas as pessoas que aderem à religião cristã”, cada uma delas tendo a sua particular interpretação.
Quase ao princípio da entrevista, o Luís Miguel diz que tem sido toda a vida dominado pelos afectos. Isso notou-o às escâncaras, quando um dia se surpreendeu a chorar em Espanha, no dia da Assunção, quando viu, no meio da multidão que se apinhava e aplaudia no templo, a estátua da Virgem subindo à alta cúpula central, ali entendida como o Céu.
Ficou acima dito que eu sinto profundamente um poema de Camões, não quando meus olhos o tiram do livro, mas quando ouço o Luís Miguel a dizê-lo. E agora, na entrevista, ele explica isso muito bem. Com efeito, a teatralidade, ou seja, a incarnação emocional e quente do frio espírito racional de um poema, quando é o caso, ou de uma peça de teatro que jazia morto no papel, para mais apresentado dessa forma viva a uma assembleia presente – a dizer não a um só indivíduo mas a vários ou muitos – é fogo que se pega em feno seco em tarde quente de verão, não é? O nosso mundo das emoções é bem diverso - e também mais profundo e por isso bem mais antigo e envolvente -, comparado com o nosso mundo racional, impassível e frio.
Portanto, ao contrário do que acontece com as emoções, é bem mais difícil o frio e impassível pensamento pegar-se de um a outro de nós, de forma descarnada, sem vir vestido da roupagem quente das emoções. Comparado consigo, Luís Miguel, eu nada sei de teatro, mas parece-me que um homem de teatro deve ser esse que veste emocionalmente o espírito de um texto, para o pegar a outros; reveste-o de corpo, para pegar aos corpos de outros indivíduos, assim podendo chegar ao espírito de cada um. É claro que a seguir, na intimidade do indivíduo e a propósito dessa novidade que lhe chega, dá-se o diálogo entre o corpo e o espírito, ente o coração e a razão, de que nestes toscos textos do blog já se tem falado (26, por exemplo). Diálogo importante e decisivo, sem dúvida, não apresentassem às vezes as emoções e o coração, à razão, aspirações inconvenientes ou impossíveis.
Tendo o Luís Miguel dito acima que tem sido toda a vida dominado pelos afectos, portanto muito afectivo e “leviano”, ele agora quer sair dessa predominância emocional e seguir outro caminho. Agora que está fazendo a sua “aproximação à fé”, ele quer “perceber tudo. Quer ser filósofo”. Mas, meu caro Luís Miguel, não será para a fé, fé religiosa, essencial o afecto? Não será ela, afinal, a voz do coração? No seu pico mais sublime, não será ela um ousado mergulho arracional no Outro? Arracional porque só afectivo? E não tem por outro lado acontecido muitas vezes que, ao contrário do seu caso, quando as pessoas também começam a pensar e a perceber, filosofando sobre as coisas da vida, vêm a perder essa fé religiosa? Falando estou dessa fé religiosa, e não de uma fé outra, a fé intra-mundana, a fé na vida, que esta é para elas essencial!
Versado que está, sucintamente, o princípio lógico de tudo o que foi dito na entrevista, vamos agora, de relance, olhar propriamente para os assuntos que o Luís Miguel foi apresentando. Diz, antes do mais, que a existência de Deus só depende da “capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”. Diz depois, mais abaixo e em dois sítios, que foram os textos do Novo Testamento “que inventaram a ideia de Deus”. Mas, meu caro Luís Miguel, se o Deus é pura criação do nosso pensar humano e da nossa linguagem, se não é um ente objectivo diferente de nós, não é ele simplesmente um mito? Ou não será mesmo isto e só isto que dele se quer fazer, qual ninho seguro de afectos, sempre só subjectivo, onde se põem e guardam as mais profundas e sempre subjectivas aspirações?
Por outro lado, Luís Miguel diz, no ponto 2, que “não sabemos se Cristo foi o que disseram”, provavelmente confundindo Cristo com Jesus, e que portanto só “interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”. Mas ninguém, digo agora eu, ninguém se pode descartar dessa figura histórica de Jesus! Ela está aí, na história; ela não pode ser anulada. Aliás, para todos os evangelistas, é fundamental essa mesma figura realmente histórica de Jesus, a quem passaram a atribuir todas as propriedades do Messias ou Cristo! Ele é aquele Jesus histórico que conviveu com eles, em quem agora acreditam ser ele mesmo o Messias ou o Cristo. Para os evangelistas e para os outros cristãos, Jesus Cristo é Jesus, por ser uma figura histórica; e é Cristo por ser objecto da sua fé (ver 23.1 e 23.2).
Segundo as concepções do Luís Miguel e já de não pouca gente, Deus, Cristo e religião, tudo isso depende só do pensamento humano e da linguagem, sem quaisquer correspondentes realidades objectivas, cabendo à Igreja simplesmente, como diz nos pontos 6 a 8, promover apropriações individuais dos textos e encontrar um denominador comum das individuais interpretações de todos os que aderem à religião. Tudo é portanto uma questão de subjectividades, qual jardim muito belo e florido mas jardim suspenso, do qual não interessa conhecer nem factos nem raízes históricas porque, segundo dizem, não se podem cabalmente conhecer e até nem existirão. Descartados do Jesus histórico, considerando Deus e Cristo e religião como meros produtos da linguagem … o que é que resta para a nossa querida linguagem, assim fechada em si mesma, assim posta em causa por deixar de poder apontar para factos e realidades, em que ela também assenta e com a qual costumamos relacionar-nos com o mundo? É possível ainda continuarmos a entender-nos uns aos outros com palavras? Não diz o Luís Miguel que o seu sermão de Vieira é basicamente só uma frase, à volta da qual se vão tecendo verbais círculos concêntricos cada vez mais alargados, para assim envolver os ouvintes e os aprisionar e “manipular” com tais “artifícios de pensamento e linguagem”? Envolvê-los, assim fora do tempo e do espaço, nessa teia de palavras ou casulo ou jogo de espelhos? Só lá dentro, então, é que há realidades, as realidades que são somente as palavras, feitas de sons ou de grafemas e de seus respectivos e aéreos significados? Elas não estão presas à pedra das realidades objectivas significadas para que fora delas apontam? Realidades estas que estão fora do tal casulo, ou teia, ou jogo de espelhos que só as palavras jogam ou tecem?
Pensemos agora em coisa mais prosaica, amigo Luís Miguel, pensemos que, cheios de fome como já devemos estar, vamos almoçar juntos ao restaurante. O empregado apressa-se a trazer-nos a ementa, mas vai logo recomendando, com vários pormenores favoráveis, que o prato do dia é um cabritinho assado com batatinhas, tudo assado a preceito num forno antigo de lenha; que ficaríamos muito bem servidos com esse divino prato! Poderíamos nós, então, dar por terminado aí o nosso almoço, nesse enclausurado jogo de favoráveis palavras? Ou não nos estava já a salivar a boca, antecipando o gozo de devorarmos essas deliciosas realidades gastronómicas, situadas bem fora da conversa? Também há aquela história do pastorzinho que iludiu alegremente o povoado gritando “Vem aí lobo, acudam!” e as pessoas acorreram em falso para o ajudar, mas depois, quando de verdade os lobos atacaram e ele de novo gritou, ninguém se viu a correr para ele e para o rebanho a fim de os ajudar! Não conviria então ao rapazinho saber que devia levar a sério o valor das palavras, apontando para objectividades?
Oportuno será também lembrar aqui aquela excessividade de Wittgenstein sobre a linguagem, a qual o levou, segundo o seu mestre Russel, a “agradecer a Deus (quem seria esse deus?) por o ter preservado da banal saúde mental”. Havemos então, também nós, de cair nesses excessos? Havemos de tornar-nos gagos e assim permanecer até aos trinta anos ou mais, por também vivermos numa família onde os actos muito pouco interessavam mesmo que se matassem uns aos outros, e só a linguagem importava, “a maneira de falar ou o facto de falar ou não” sobre os assuntos, como parece ter acontecido com ele?
Ah, mas com aquilo do pós-moderno cabritinho do almoço, tão-somente apetitoso e proveitoso por nossa imaginação, já me vou esquecendo do que disse o Luís Miguel, no ponto 4, sobre a nossa divinização e capacidade de transcendência. Para tal divinização, que levará também à desejada transcendência, haveria duas vias que se apresentam em sentidos opostos: a via do homem que se faz deus, ou a via do deus que se faz homem. Em qual das duas se coloca o Luís Miguel? A primeira é a via da audácia e do empreendedorismo e mesmo do excesso e da arrogância, tudo facilmente contagiável aos outros companheiros humanos; na segunda haveria o caso singular da descida do poder da divindade a um só ser humano, facilmente utilizável para firmar o poder de um imperador terreno e o alargamento e a coesão do seu império. Se isto for assim, em que caso, destes dois, se notará mais exemplarmente a transcendência, possível a todo o ser humano? Já reparou que a concepção da descida do Verbo divino à carne humana só aparece, ali quase intemporalmente colocada, no início do mais tardio dos quatro evangelhos? E que, provavelmente, se teria pensado antes na hipótese de aquele exemplar ser humano, Jesus, ter subido à divindade, assim arrastando outros humanos consigo?
Mas, se estamos enclausurados na linguagem; se esta não nos permite sair para o real que ela aponta; se afinal até o real apontado, ele mesmo se esfuma para só ficar ela e nós lá dentro a olhá-la e a analisá-la porque sim e porque não, então para que vale essa transcendência nossa em direcção a objectividades(?) ou realidades(?) mais sublimes, fora de nós, que não temos nem somos mas queríamos ser ou ter, ou ao menos partilhar, se tudo isso afinal é mera subjectividade e portanto pura ilusão?
Há quanto tempo, Luís Miguel, há quanto tempo aqui estamos conversando, muito mais falando eu por o Luís Miguel já ter falado na entrevista? Há muito? Há pouco? Para mim, foi nenhum! Foi uma conversa sem tempo! Emocionados com a vida, lúcidos e felizes quanto baste - tudo assim junto é que é bom -, seja de uma maneira ou de outra! Para si, Luís Miguel, um terno abraço do João.
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