sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

44 - Surfando no Oceano da Palavra Poética

Num blog denominado de “O Clube dos Poetas Vivos”, não se entende que nele não falemos formalmente sobre a palavra poética, nem muito menos que não nos deliciemos com esse sublime prazer da poesia. Por isso, aqui começam algumas palavras formais sobre poesia, mas também se apresentam alguns poemas para apreciar e fruir.

Na aérea ou líquida sala de segredos em que o lírico poema pulsa e respira, - ele é mesmo essa sala de segredos -, as palavras podem abrir-se-nos caleidoscopicamente numa pluralidade de sentidos figurados ou poéticos, os quais porém nunca se nos desvendam de forma aleatória. Na verdade, tais sentidos figurados têm de ser sempre relacionáveis e cotejados com o sentido primeiro ou vulgar ou denotativo das mesmas palavras, o qual as remete para as respectivas realidades mundanas assim significadas e conhecidas. O poema vive sempre nessa sala de segredos, mas sem esta contínua ligação das suas palavras ao mundo exterior e objectivo, ele não seria possível nem podia subsistir e ser compreendido. Aliás, se o aéreo significado habitual das palavras não estivesse sempre relacionado com realidades mundanas, não seria mesmo possível entendermo-nos uns aos outros através de palavras, nesta prosaica vida do nosso dia-a-dia!
O poema é um bonito papagaio de papel a voar no céu, sim senhor, mas para poder voar no céu, ele tem de estar preso à terra. Parece que anda solto no céu, mas não anda. Sem estar ligado à pedra da terrena realidade mundana, o sempre alado poema perder-se-ia no ar, levado pelo vento. É sempre a partir da terrena realidade que ele se levanta, e só nessa relação ele pode subsistir e dele podemos usufruir.

Para Eugénio, o bem-nascido poeta, é na memória que está a semente da palavra poética, que o sonho depois fará germinar e nascer. Palavra que desvela o poeta aos outros seres da Terra, sobremaneira aos humanos, sendo que a fina-flor do seu canto é o amor. Canto sempre encantatoriamente feito de ritmo, eufonias, musicalidade e palavras, nele ressoando múltiplos sentidos.
Transcrevamos aqui um desses seus belos textos, a que deu o nome de “RETRATO”: “No teu rosto começa a madrugada. / Luz abrindo, / de rosa em rosa, / transparente e molhada. // Melodia / distante mas segura; / irrompendo da terra, / quente, redonda, madura. // Mar imenso, / praia deserta, horizontal e calma. / Sabor agreste. / Rosto da minha alma.”
Neste poema, o poeta convoca realidades da Natureza para assumirem sentidos poéticos, e com eles e elas fazer o retrato de um Tu que amou no passado, (portanto um amor perdido), mas retrato com o qual também o Eu do poeta se identifica e confunde.
Bem sabemos o que são “rosto”, “madrugada”, “luz”, “rosa”, “melodia”, “terra”, “mar”, “praia”, tudo realidades objectivas, todas fora do Eu poético e do Tu retratado, excepto “rosto”. Mas também “rosto”, (como aliás todas as outras palavras acabadas de referir), tem aqui um sentido segundo ou poético, pois ele é, nos dois casos, o “rosto” da “alma”. E só conhecendo o sentido habitual de todas essas palavras, a remeter para realidades objectivas e concretas aqui convocadas pelo poeta, nós podemos chegar aos sentidos que o poeta quer imprimir no seu texto. Cada receptor chegará à sua maneira, certamente, pois cada um tem a sua própria vivência das referidas realidades.

O notável encanto deste canto lírico está sobremaneira nos alados sentidos que, em última instância, se desprendem de objectividades por nós conhecidas e nomeadas, primorosamente escolhidas e convocadas pelo Eu poético, para com elas (realidades) e eles (alados sentidos) desenhar um “retrato”, alados e abertos sentidos ainda vestidos e sublimados de eufonias, musicalidade e ritmo.
Se o “retrato” do Tu amado (que afinal também é o do Eu poético) é feito com traços de objectividades da Terra, então é porque a subjectividade do poeta demiurgicamente as transfigura e recria através das palavras que habitualmente as nomeiam, assim lhes impondo novos e mais belos sentidos.
E então, o Eu poético desvenda-se-nos num retratado Tu que já só foi e não será, através da matéria verbal que remete para realidades significadas e agora transfiguradas, tudo constituindo um muito belo e saudoso canto de amor.

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