Entremos então na segunda parte do texto, para falarmos sobre o sagrado humano, se é que ele não é também divino.
Já alguém viu a Natureza a pôr as mãos numa pedra-calcária para dela fazer pedra-mármore, uma pedra muito mais dura e bonita? Já alguém reparou como, da lava incandescente de um vulcão, ela tanto faz granito como basalto? Nunca ninguém a viu a fazer estes milagres e, no entanto, ela opera-os!
Por diversas razões, eu gosto muito de passear pelas estradas e caminhos das aldeias. Uma das mais repousantes para mim, mas também impressivas, é precisamente olhar e perscrutar a nossa mãe Natureza, a ela estando atento e à minúcia dos seus gestos. E então, na estação dos botões e das flores, isso é o máximo! Os quintais, todos cultivados quase só por pessoas de avançada idade, estão primorosos. Também é muito agradável pôr os olhos nos baldios e em outros terrenos não cultivados, porque também aí a Natureza nos oferece mimos. Porque não é a Natureza que me força os olhos a olharem para si, a contemplar a sua beleza; os meus sedentos olhos é que vão à sua procura! Mas será que ela me vai revelar as suas mais profundas belezas?
Está aqui, neste quintal, uma latada de videiras. Muitos são os seus abrolhos, que todos ainda não abriram, mas em breve virão à luz. Não posso pretender vê-los todos a abrir, mas um ao menos gostaria de ver! Por isso, sobre este mesmo que está aqui, do braço desta videira que repousa sobre o muro - eu não vou mesmo esquecer-me –, sobre este é que eu vou estar de olho atento e vivo … para presenciar o milagre! Vou passar, então, todos os dias por aqui, talvez até mais de uma vez. Passo num dia, noutro e noutro, e tudo permanece idêntico, sem qualquer novidade. Mas é curioso e até intrigante porque muitos irmãos botões já abriram, mas o meu continua fechado e a dormir! Agora, vou até passar mais vezes, se isso me for possível, para o surpreender no seu nascer e abrir. Porém, num belo dia de manhã, ainda gotas de orvalho se viam meditando azuladas pelo ramo acima, o meu botão ainda por abrir … agora já estava aberto! Porque é que a Natureza gosta tanto de nos esconder as suas mais belas ternuras? Será por medo de as conspurcarmos, logo ao nascer, com um profano olhar? Porque o sagrado aconteceu, o sagrado mostrou-se … mas os meus olhos não viram essa aparição!
Lembro-me agora de uma conversa que tive com um amigo recente, na qual se vêem deliciosos passos de um seu enamoramento. A jovem estava a trabalhar sentada, com algumas mulheres à volta, e ele acocorou-se ao lado dela. Calhando falar-se de acidentes de trabalho, ela própria referiu que já tinha tido um, e que ainda se podia ver no seu corpo a remanescente cicatriz. E sem delongas, mas muito naturalmente, a menina baixou levemente o decote da camisola do lado do ombro esquerdo, o lado do coração, e mostrou a cicatriz. Só o rapazinho agora meu amigo a pôde ver, porque era ele quem estava mais perto dela. Ele ergueu-se sobre os joelhos, isso bastando para a poder contemplar, acocorando-se de novo ao lado da menina, e das outras pessoas presentes. O palavreado das mulheres que se seguiu a esta divina aparição levou-o a esquecer um tanto a feliz ocorrência, mas nunca mais se lhe apagou da memória.
Neste ponto da conversa com o meu amigo, nós rimo-nos os dois a bandeiras desfraldadas! Não nos rimos da menina, não senhor, pois que até foi generosa para ele. Rimo-nos por nós homens, perante o sexo oposto, nos comportarmos assim!
Enquanto durou aquele ajuntamento e o palavreado das mulheres vigorou, a força daquela aparição não se lhe fez sentir, mas depois, entrado à noite para o escuro silencioso do seu quarto, então é que ela aí o começou a possuir. Pela mão do desejo, a ebúrnea alvura da carne guiou-o, descendo, para o cume do seio, daí irradiando em outras direcções, mas sendo sempre só o sonho a comandar-lhe os movimentos imaginados…
Mas está ali um menino a abanar negativamente a cabeça e mostrando que quer intervir. “Pois diga lá, faz favor”. “Digo que parece impossível que o “sagrado”, sendo algo tão nobre, mesmo até mais sublime que a própria natureza humana, se possa aplicar a coisa tão baixa, como são as paixões”!
É muito interessante a sua posição, meu caro amigo, e ela até nos leva a aprofundar um pouco mais este assunto. Sabe que os gregos antigos tinham vários deuses para protegerem as nossas paixões, não sabe? Sendo assim, é porque esse povo as considerava como boas, como nobres e até talvez divinas! Sabe que Einstein tinha uma grande paixão pela música? Será assim baixeza tão grande gostar muito de cinema, ou de ver o mar, ou de trepar aos cumes nevados das montanhas, ou até, mais prosaicamente, de se perder por uns grelinhos de nabo com uma batatinha cozida, a acompanhar um peixinho grelhado no carvão? O que seria daqueles divinos poemas inspirados na sua Laura, se Petrarca não estivesse dela enamorado? E muitos dos mais belos poemas de Camões, sem as suas amadas mulheres, poderiam existir? A capacidade de se poder apaixonar, em suma, não será algo de sagrado no ser humano?
Entre nós, seres humanos, o jogo do amor – que se constitui das primeiras abordagens, do enamoramento, da paixão e do maduro amor – o jogo do amor é também o jogo do sagrado! É claro que, como somos feitos de paixões mas também de razão fria, da junção destes dois ingredientes resulta que tal jogo nem é calmo nem é pacífico, mas é antes anjo e demónio, é presença e ausência, sendo não raro esta a poder avivar aquela.
Aquilo do “mostra e esconde” (do corpo mas também da alma) é mais próprio dos três primeiros andamentos do jogo: o sagrado mostrou-se, está ali, existe, mas depois teve de esconder-se, para não se banalizar. Esta temporária ausência alimenta o sonho, e o sonho alimenta o desejo, e o desejo alimenta o sagrado. Ele irá por isso e depois desvelar-se de novo, de forma talvez mais generosa, mas sempre só (e não mais) de modo a que não se extinga a chama do desejo do sagrado. Será tudo isto, na sua raiz, um movimento irracional de paixão? Mas o próprio maduro amor, que eu posso ter por alguém, não é também sempre um ousado e arracional mergulho na sua intimidade, podendo portanto não ser correspondido? Pois que o amor, o sagrado, o divino amor que ofereço ao outro podem nele não suscitar idêntico impulso, podem não existir lá para vir ao meu encontro! Gostava muito que, em resposta ao meu impulso de amor, se desse sempre essa feliz aparição … mas não dá! Mas também pode acontecer que, onde já eu penso que não vai haver correspondência ao amor oferecido, ela me pode aparecer depois no cuidado ou no respeito que o outro passou a ter para comigo, activos predicados que sempre acompanham e portanto provam a existência de um verdadeiro amor. E então, a feliz e sagrada aparição está ai!
É preciso estarmos ou sermos seres com muita sede de transcendência, para podermos estar abertos ao amor e ao sagrado. Podemos simplesmente estar sequiosos de ver o deslumbramento da Natureza, que se abre em milagres perante os nossos olhos; ou sequiosos do regaço de uma mulher, ou de um musculoso braço masculino; ou ainda sedentos de um Deus que tarda em se nos revelar. Mas sermos seres com sede de transcendência é justamente aquilo que nós somos! A congénita carência ou incompletude do ser humano … todos nós a sentimos. Por isso, não podemos passar sem o amor e o sagrado, sem o sagrado amor!
É assim o ser humano um ser a quem o sagrado pode aparecer, até porque ele também o pode produzir. Agora, quanto ao sagrado e ao amor de Deus, também eles poderão aparecer-nos? Está ali um ser humano á minha frente, que eu vejo e ouço e toco, com quem me rio e choro e falo. Eu sei que, tal como eu, também ele será capaz de se transcender, capaz portanto de amor e de sagrado. O amor e o sagrado podem lá não estar, é verdade, mas sei que lá podem nascer e depois se me mostrarem! Mas o sagrado e o amor de Deus, o qual eu não vejo nem ouço nem posso tocar, existirão realmente para se me poderem mostrar? Eu sei que, se Deus existir, terá ele de ser sagrado Amor e Inteligência, pois que estas duas realidades se confundem e constituem o que existe de mais sublime (texto 14). Mas … mas … quer um menino ou menina, dos que mais assíduos são na leitura destes textos, completar este inacabado texto?
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