domingo, 28 de dezembro de 2014

261 - Como as Crianças Vêem e Vivem o Amor

        1 - Olá, amigas e amigos! Depois de identificarmos e versarmos “o ousado mergulho do amor”, aplicado aos adultos (ver texto 252), vamos agora ao caso das crianças a fim de percebermos como elas vêem e vivem o amor, e como verbalizam essa sua vivência. Para tanto, tenhamos por base o precioso material que amavelmente nos chegou por e-mail, em formato de pps:

         2 - “Amor é abraçar-se, amor é beijar-se, amor é dizer não” (menina de 8 anos);
         “Amor é quando a mamã vê o papá a chegar do trabalho, sujo e com mau odor, e diz-lhe que ele é mais bonito que o Brad Pitt” (menina de 8 anos);
         “Quando falas com alguém sobre alguma coisa de ti, mesmo que sintas que essa pessoa vai gostar menos de ti por esse motivo, vais-te surpreender porque, além de te continuar amando, agora ainda gostará mais de ti” (menina de 7 anos);
         “Amor é quando tu dizes a um rapaz que ele está a usar uma camisa linda, e ele começa a usá-la todos os dias” (menina de 7 anos);
         “Quando tu amas alguém, as tuas pestanas sobem e baixam … e pequenas estrelinhas saem de ti” (menina de 7 anos);
         “Amor é quando uma velhinha e um velhinho, que são muito amigos, apesar de se conhecerem há muito tempo” (menino de 6 anos);
         “Amor é quando tu sais a almoçar e ofereces as tuas batatas fritas, sem esperar que ele te ofereça também as batatas fritas dele” (menina de 6 anos);
         “Se queres aprender a amar melhor, deves começar com alguém que não te liga nada” (menina de 6 anos);
         “Amor é quando uma moça coloca perfume e o rapaz coloca loção para barbear, depois saem juntos e misturam tudo” (menino de 5 anos);
         “Quando alguém te ama, a forma de dizer o teu nome é diferente: sabes que o teu nome está certo na sua boca” (menino de 4 anos);
         “Amor é o que te faz sorrir quando estás cansado” (menino de 4 anos);
         “Há dois tipos de amor, o nosso amor e o amor de Deus, mas o amor de Deus junta os dois” (menino de 4 anos);
         “Amor é quando o teu cão te lambe a cara, mesmo que tu o deixes sozinho o dia inteiro” (menino de 4 anos).

         3 – O amigo leitor (ou leitora) deve ter reparado que as referidas intervenções estão ordenadas segundo a idade dos seus autores: das crianças mais crescidas para as mais novinhas. Fomos nós que as ordenámos assim. Para quê? Para evidenciar que, segundo nos parece, à medida que descemos na idade, as intervenções tornam-se mais gostosas, mais curiosas e belas!
         As crianças não dissertam, não especulam sobre o amor com conceitos e cerrado encadeamento de ideias como fazem os adultos; não usam a razão para conhecer e falar sobre o amor. As crianças praticam o melhor porque elas conhecem e vêem o amor na sua própria acção de amarem. Para elas, o amar é a fina flor do conhecer. Após as sensações, a sua mente não se emaranha em conceitos e elucubrações mentais que desvirtuam e escondem a realidade do vivo amor. Após as sensações e face a face, as crianças simplesmente contemplam. Elas vêem o amor sem intermediações, palpitante de vida.
         Em suma, as crianças não procedem a ousados mergulhos de amor porque, naturalmente, o amor é o ambiente em que elas navegam.


Para a Isabel, especialmente, assídua leitora destes textos.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

260 - Natal

Ao Menino que nos nasce, logo nós lhe imaginamos,
ao pescoço, uma cruz num fiozinho de mirra:

porque não só, e simplesmente, o amor no coração?

259 - Enigmas

Que seria se o fumo não subisse mas descesse,
o alimento na boca não nos descesse mas subisse

e velhos fôssemos em meninos e meninos na velhice?

258 - Ao Pé da Chaminé

No pino da noite, negra fora e fogo dentro
é a vida qual uma oblonga salamandra:

do alto descem para os dedos prendinhas de Pai Natal

domingo, 21 de dezembro de 2014

257 - O Arrulho da Rola

Esta manhã, na gaiola, a rola arrulha;
todo o universo sabe que ela canta:

só o dono não ouve o líquido e luminoso canto

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

256 - Podemos Andar Distraídos

Podemos andar distraídos ou até mesmo a dormir,
mas a evolução não dorme nem empreende ao acaso:

é o desígnio de um deus, de nós mal conhecido

domingo, 14 de dezembro de 2014

255 - O Vento na Erva

Só falta mesmo um nada ou uma ninharia
para que os homens se entendam uns aos outros:

cada um confiar nos outros, como a erva no vento!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

254 - Perdidos no Universo

Perdidos no Universo?

Nós não andamos perdidos no universo
nem somos frutos de uma “colheita desconhecida”,

se nos ajudarmos uns aos outros a ser felizes

domingo, 7 de dezembro de 2014

253 - As Exigências do Amor

Só podemos amar profundamente alguém,
se também soubermos viver bem sozinhos

e tivermos em fundo um amor universal

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

252 - O Ousado Mergulho do Amor

1 - Olá, amigas e amigos! Já aqui falámos várias vezes do amor, e o melhor que fora dito talvez esteja nos textos 13.3 e 14, em reflexões inspiradas em Erich Fromm, na sua Arte de Amar. Revisitemos então esses textos e empreendamos uma síntese.
         Quando, desde o fundo do seu ser, um homem diz a uma mulher (ou uma mulher diz a um homem) “eu amo-te”, o eu amante, pela sua condição de amante, é necessariamente movido a cuidar da sua amada, a corrresponsabilizar-se e a ter respeito por ela, e sobretudo levado a conhecê-la de uma forma outra, isto é, a conhecê-la não pela razão mas pelo vivo amor que já lhe tem.
         Tudo isto vai exigir, ou melhor, tudo isto vai constituir, como diz Fromm, um “ousado mergulho” do eu amante no eu amado. Ora, um mergulho assim, um mergulho ousado, sem dúvida que vai ser um salto no escuro! Porquê um salto no escuro? Porque o eu amante jamais terá uma absoluta certeza – ganhá-la-á crescentemente depois e nunca de forma definitiva ao longo do futuro convívio – uma absoluta certeza de que será totalmente correspondido.
        
2 - É por isto que tão ousado mergulho e tal conhecimento outro não são frutos da razão, mas do amor. Não procedem directamente da razão, mas não que eles sejam arracionais e muito menos irracionais. Não porque, muito embora tal mergulho e tal conhecimento outro não sejam pedidos nem sejam frutos próprios da razão, esta não se oporá a esse desafio, e até o apoiará.
         De facto, o mais perfeito conhecimento é o conhecimento de amor, e a razão sabe disso. E assim, muito embora ela própria não possa lá chegar por ser mais limitada que o amor, ela não só não enjeita tal conhecimento como até o irá apoiar. É este o conhecimento que acompanha, determina e afinal constitui o tal ousado mergulho.
3 - Na verdade, nós só podemos conhecer profundamente um ser vivo, enfim conhecer a vida, experienciando, “con-vivendo” com a mesma vida pelo amor, pois só o amor não rejeita, só o amor sabe aproximar e unir. A razão é bem diversa e sabe disso muito bem.
Tudo isto tem a ver especialmente com as pessoas adultas. E, quanto às crianças, elas não terão uma palavra a dizer sobre o amor? É isso que iremos ver num próximo texto.

domingo, 30 de novembro de 2014

251 - Feliz do Homem que é Nada

Procuremos viver, não de retraços mentais,
mas da contínua novidade do agora:

“Feliz do homem que é nada”

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

250 - O Livre Voo da Águia

De mim, eu sou o conhecedor e o conhecido:
e quando o que conhece anula o conhecido,

ele é a águia livre voando nas alturas

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

249 - Ao Fim da Tarde


Quando ao fim da tarde fenece o fogo das folhas
- colhidos já os frutos do Pai Deus da luz –

com elas ele tomba no chão, não na noite

domingo, 23 de novembro de 2014

248 - Homo Sapiens

Já se disse que o Homo Sapiens evoluiu demasiado:
tanto, que ele exorbita em desejos e daí em temores.

E se ele os olhasse como não seus, assim os anulando?

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

247 - Ondas e Oceano


Somos indivíduos mas também seres sociais:
não podemos ser ondas

sem também sermos oceano

domingo, 16 de novembro de 2014

246 - O Ancião e a Menina

O ancião e a menina encontraram-se na rua,
e depois, noutro dia, encontraram-se de novo:

serão os mesmos menina e ancião?

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

245 - O Que Sou eu

1 – Olá, amigas e amigos! Há, para nós, uma pergunta fundamental: que sou eu? Sucede que, na língua inglesa, há duas formas de dizer "eu" que muito nos podem ajudar a responder a tal pergunta. Tais formas ou palavras, cada uma com com o seu próprio e distinto sentido, são o I e o (my)Self
Há no mundo um bicho, o bicho humano, que, partindo dos seus sentidos, vai tendo na vida inúmeras experiências, muitas das quais até o emocionam. Acerca dessas experiências, ele vai pensando, pensando, assim produzindo muitos pensamentos e, claro está, também produzindo o pensador, que é aquele que pensa os pensamentos. Ao feixe das experiências e pensamentos mais importantes, que tal bicho guarda na memória do corpo e da mente, nós podemos chamar o Self.
Mas, se o bicho humano sabe que é assim, é porque ele está a ver tudo isso! Quem é que está a ver? É a sua consciência – o I – com a qual, a uma certa distância, ele vê tudo isso a acontecer-lhe. Vê-se a experienciar e a pensar, vê as emoções e os pensamentos que delas derivam, enfim vê todo o tal feixe de que acima falámos. O I é aquele que, um tanto acima e à distância, vê; o Self é aquilo que é visto.

2 – E então, afinal, o que somos? Somos o I e o Self, conjuntamente, ou somos só um ou outro deles? Na realidade, nós somos os dois, muito embora habitualmente tenhamos mais presente o segundo. Aristóteles, de uma forma muito bela, tomando uma palavra da sua língua, diz que “os amigos são o nosso Self”. Na verdade, o Self – que é o eu mental de que aqui no blog temos falado – é por assim dizer o conteúdo que nos constitui. Mas, como já dissemos, nós não somos só Self mas também I, essa impassível luz da consciência, a qual paira um tanto à distância observando o eu mental. Era essa impassível luz, e só ela, que Caeiro (heterónimo de Pessoa) gostaria de ser: só o I. Ele achava que devia ser simples consciência do mundo, pois, como dizia: “ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: só me obriga a ser consciência” (ver texto 205). Semelhante opinião tem Krishnamurti quando exclama: “Feliz do homem que é nada”, isto é, homem que se tornou só consciência, portanto sem todos aqueles conteúdos do Self (ver texto 221).

3 - Mas não que Caeiro e Krishnamurti - os dois como que abstraindo do Self -, não dêem um conteúdo novo a essa luz da consciência, o I. Com efeito, Caeiro torna-se o pastor das coisas/mesmas ou coisa/coisas e não dos seus conceitos e das teorias que deles se levantam como acontecia no Self. Por seu lado, em Krishnamurti, só sendo nada o homem, tornado só consciência, ele poderá conhecer o real e a verdade.
Em suma, é certo que nós também somos Self, mas desprendermo-nos dele de quando em vez e por momentos para abraçarmos as nuas realidades do mundo é das coisas mais saborosas da vida. Somos enfim a consciência do universo, onde, para nós, ao menos onde estamos e em cada agora, tudo é novo e nada velho.


Para a Cristina, o Sérgio, a Filomena, o João Paulo, a Isabel e a Nádia, seguidores deste blog.

domingo, 9 de novembro de 2014

244 - Baila ao Vento

Baila ao vento forte o bambu esguio:
muito frágil por fora,

mas muito firme por dentro

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

domingo, 2 de novembro de 2014

242 - O Vazio não é Vazio

O vazio não é vazio: não porque
a saborear o gosto da solitude

é que ela se sente bem

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

241 - Prestes a ser mamã

  Prestes a ser mamã, generosa, ela exercita o corpo,
o distendendo à húmida luz. Ao invés, como pode
 a sociedade, seca e egoísta, alhear-se desse gesto?


domingo, 26 de outubro de 2014

240 - Tão jovem ainda

Tão jovem ainda, na flor da idade morreu
uma já exímia antropóloga de projecção mundial:
haverá um criador omnipotente, sumamente bom?


Em memória da querida Cláudia

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

239 - O Tríptico dos Figos ou o Fermento da Vida

Perdendo as asas, minúscula vespinha entra no figo,
fecunda a inflorescência e põe ovos
machos e fêmeas. É a grande mãe.

Por  microcanais, todos os juvenis circulam,
vindo as fêmeas a sair do figo, para outros,
e os machos e a mãe, a morrerem lá dentro

Mas eis que um fermento leva um frémito de vida
ao cemiteriozinho, e logo o figo  amadurece apetecível!
Perpassará por cemitérios outros frémito semelhante?


domingo, 19 de outubro de 2014

238 - Numa Cana de Bambu

Numa cana de bambu, bem aberta,
nada se detém retém, tudo flui:

é a total atenção, a plena liberdade

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

237 - Um Sentimento

Um sentimento não é um ressentimento:
enquanto um vem e flui, sem perturbar,
o outro vem e fica a entupir a alma


domingo, 12 de outubro de 2014

236 - Com a Chuva

Com a chuva as valetas correram, mas numa
uma criança brincava a deslaçar represas:

assim nós também, por dentro

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

235 - É Muito Bom

É muito bom que trabalhemos em rede:
canas de bambu, canas sem nós, canais
onde circula a branca, a alma energia do mundo


terça-feira, 7 de outubro de 2014

234 - As Cores das Flores e do Céu


Tudo começa com o vermelho das rosas, das dálias e tulipas;
passa depois ao laranja da estrelícia e do lírio,
ao amarelo do girassol, do narciso e do cardo,
ao verde dos gladíolos e da vegetação em fundo,
ainda ao azul da rosa azul e do azulão,
ao anil do jacinto, da flor de lis e glicínia
e por fim ao roxo da violeta e do lírio,
da petúnia, da orquídea e da magnólia

Também Íris, mensageira do Pai da Luz, de Zeus,
deusa da refrangência da luz em suas lágrimas,
deixa no alto arco do céu o seu rasto multicor:
vermelho, laranja, amarelo, verde,
azul, anil e enfim o roxo,
a pegada mais íntima e subtil

 Mas não são só das flores as cores, e do arco do céu:
nossas são também em sete centros de energia irradiante,
desde o vermelho da raiz até ao roxo, o mais alto e íntimo,
não faltando o branco, mãe de todas as cores, sem cor,
a cor da luz, límpida, pura, que alimenta e ilumina

Para a Paula, a Ana Cristina, a Isabel e a Elsa, esta colorida taça de palavras.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

233.IX - A Propósito de "O Zelota"

IX - Conclusão
1 - Para que possam existir as religiões monoteístas (e não só), é preciso elas criarem antes de mais uma visão sombria da vida humana, feita de culpas, sofrimento e morte. Elas têm de carregar quanto podem nas tintas negras desse afundamento natural, para que depois possa avultar a salvação sobrenatural que intentam prometer.
Assim, elas ensinam que, antes de mais, o que está no início da humanidade é um pecado - um pecado original que por isso se estende a toda a humanidade -, e que é esse pecado que leva a todo o sofrimento e à morte (Gen 2). Em contrapartida, ensinam depois que, para nos libertarmos de todos esses males, precisamos de ter fé no Deus da luz que nos perdoa todo o pecado e salva do sofrimento e da morte, ainda que por eles tenhamos de passar (1Cor 15, 20-22). É claro que, de ofensas sofrimentos e morte, todos nós temos em demasia e para todos nós eles são incontestáveis. Quanto à fé, porém, a fé divina pedida pelas religiões, nem todos os humanos a têm porque não acreditam.

2 - Todos nós, porém, podemos sempre encantar-nos com a vida, fazendo com que ela em abundância se possa cumprir em todos, pela justiça, sobretudo pelo estar ao serviço dos outros, que é o amor. Mas também essa fé pode ser importante para todos, não pela fé em si mesma - que para muitos não há fundadas razões para a ter -, mas por virtude de todo um mundo simbólico que foi crescendo à sua volta, ou mesmo construído para a encarnar e servir.

3 - Assim, há na religião excelentes normas morais para a vida, mesmo para descrentes; há modelos de educação e instrução, e bem assim rituais, que podem ainda ter muito boa validade. Mas sobretudo há a arte religiosa, seja a da música ou da escultura ou da pintura ou dos textos ou da arquitectura, muitas vezes excelentes meios para elevar o nosso espírito porventura até ao êxtase, para guiar enfim os nossos passos nesta vida ínvia. Se não fora esta arte, não podíamos por exemplo extasiar-nos com belas esculturas ou pinturas ou peças de música, nem contemplarmos os raios de sol entrando à tardinha pelos vitrais de altas catedrais, iluminando e colorindo o penumbroso silêncio das naves.
E há também, é claro, a ceia da amizade e do amor, alimentos necessários para o corpo e para o espírito, convivendo e fraternizando – e assim celebrando e partilhando a nossa comum humanidade -, como até aqui já vimos neste blog, sob o texto 95-Uma Ágape Laica.


domingo, 28 de setembro de 2014

233.VIII - A Propósito de "O Zelota"

VIII - A Sabedoria de Jesus
1 – Olá! Há dois caminhos bem diversos, cada qual com resultados bem distintos, para se falar da sabedoria de Jesus. Primeiro - Se aceitarmos que Jesus é o Cristo, por um motivo de fé, então a sua sabedoria tem o toque da excelência de um génio porque, além de ser simplesmente humana, ela tem também uma fonte divina. Segundo - Mas, se entendermos que ele se fica só pela linear natureza humana de que todos somos feitos – uma simples figura histórica que até só podemos conhecer pelo contexto em que viveu, como pensa Aslan – então a sua sabedoria, em qualidade, é semelhante à de qualquer outro messias humano do seu tempo.
Começando nós pela segunda hipótese e incidindo a atenção em Aslan, pode dizer-se que o relato que produz sobre este assunto é quase arrasador. Provavelmente, diz ele, Jesus era um judeu sem instrução e até analfabeto (p.72): talvez não soubesse ler nem escrever e só falasse aramaico, embora tivesse alguns rudimentos de grego. Aqueles dois episódios de Jesus “sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas” (Lc 2,46) e ainda na (inexistente!) sinagoga de Nazaré, aí “entrando em dia de sábado e levantando-se para ler” (Lc 4,16), são simplesmente fábulas.
Na adolescência e primeira juventude, Jesus terá sido uma espécie de (ajudante de) pedreiro na construção da depois próspera cidade de Séforis, não muito distante de Nazaré. Vemo-lo depois na companhia de João Baptista, que terá sido seu amigo e mentor. Provindo de uma culta família sacerdotal, João trocou essa sua condição por uma vida ascética no deserto, e foi aqui e então que Jesus passou muito tempo, aprendendo com ele. Não sabemos exactamente qual era a cultura de João e o que terá ensinado a Jesus. Mas com certeza que, tendo sido oriundo de uma família sacerdotal, ele conheceria muito bem as Escrituras e, assim, nelas terá introduzido Jesus, não sem que para isso mesmo lhe ensinasse a ler e a escrever.
É claro que aquilo que os evangelhos da infância (e não só) de Jesus pretendem - por força da fé dos evangelistas e depois também da dos seus destinatários - é impor à figura de Jesus um toque de excepcionalidade, mesmo até ao divino: a sua infância não fora igual à das outras crianças, porque ele era, desde o seu nascimento e até antes dele, o Filho do Homem, o Filho de Deus.
Mas Aslan não cede: não fugindo de uma rigorosa visão só histórica e terrena, ele estuda os locais e o contexto histórico em que Jesus vivera, concluindo depois que Jesus fora um simples agitador social e religioso com repercussões políticas, como outros judeus do seu tempo.

2 - Quem tem páginas sublimes sobre a excelência do eu psicológico de Jesus, assim denunciando a rara cultura desse mestre, é Augusto Cury, quando, na sua obra A Fascinante Construção do Eu, escreve sobre o gesto singular do Lava-Pés (Jo 13 ; ver texto 189).   
Se perguntarmos em qual dos dois caminhos acima referidos se encontrará este psicólogo e psiquiatra brasileiro, teremos de dizer que não propriamente em nenhum, mas entre os dois, ou simultaneamente nos dois. Porque, embora diga que não quer entrar em assuntos de fé e de religião, ele acede ao episódio através do evangelho de João, que é uma fonte de fé e o menos histórico e mais tardio dos evangelhos.
Na véspera ou vésperas da sua morte, tendo notado que, tardos de entendimento como eram, os apóstolos ainda não tinham entendido a profundidade do mandamento que lhes queria deixar – as palavras ensinam sempre muito menos do que os gestos – pediu uma toalha e uma bacia com água, mandou-os sentar em fila num banco e, de joelhos no chão, lavou-lhes os pés.
Este gesto específico atribuído a Jesus não deve ter sido histórico, mas simplesmente inventado pelas primeiras comunidades judaico-cristãs, que até já tinham na tradição gestos semelhantes. Mas tal gesto insere-se naquilo que, de essencial, o Jesus histórico queria deixar aos discípulos, e que era eles ficarem e estarem sempre ao serviço dos outros. E agora, sim. Agora, a outorga deste mandamento por parte de Jesus deve ter sido mesmo histórica, porque, ao contrário do episódio do Lava-Pés, que só vem em João, ela consta também dos três evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas).
E tal historicidade pode ser ainda mais vincada se considerarmos que, para Tiago, irmão de Jesus e primeiro chefe da igreja de Jerusalém e das demais igrejas cristãs já existentes, o que de mais importante devia ser feito pelos cristãos era precisamente eles estarem ao serviço e servissem mesmo os outros, começando pelos mais pobres e doentes. Parece não haver dúvidas, portanto, de que Jesus tenha pregado e praticado o serviço aos outros.

3 – No seu largo e profundo trabalho de desmitificação do Jesus dos evangelhos – embora talvez nele ainda tendo deixado alguns dos seus próprios mitos como já vimos no texto anterior, mas mesmo assim seguindo o primeiro referido caminho que é o caminho da fé -, Bultmann, reflectindo sobre quais de entre as muitas palavras dos evangelhos atribuídas a Jesus possam ser autênticas, não tem dúvidas em seleccionar como tais as palavras de Mt5,38-48, com as quais Jesus propõe a rejeição da retaliação e o amor aos inimigos (ver texto 184).
Nunca ninguém até então, que se saiba, tinha proposto tal doutrina. Palavras espantosas e radicais, com certeza, e que, se algum dia e sobretudo hoje nesta barbárie vigorassem, seriam os fundamentos de uma fraternidade universal. Não é fácil entender que tais palavras possam ter nascido de uma indiferenciada comunidade, mas tão só de uma personalidade forte, e também de um “manso e humilde coração”, que nelas se arrisque a si própria e comprometa.
Aqui levanta-se, porém, de entre as páginas de O Zelota, a voz do seu autor a clamar que é um “fantasioso disparate” atribuirem-se a Jesus a rejeição da retaliação e o amor aos inimigos, já que esta doutrina e sobretudo a sua prática, nunca vigoraram nas relações entre o povo judaico e as outras nações, por natureza inimigas, pois não faziam parte do Reino de Deus.
Clama, mas com certeza sem razão! Porque, não sendo Jesus um universalista – ele veio só para a Casa de Israel – ele está a pensar, não num relacionamento entre nações ou povos, mas nas relações dos judeus entre si, dentro do seu reino. É evidente que cada um dos judeus, dentro da sua pátria, não seria anjo nenhum – anjo bom, evidentemente – para os outros. Bem sabemos como é a natureza humana, mesmo entre irmãos de sangue ou de raça.

Pregou e praticou Jesus o serviço aos outros, ou seja, o amor, e o mesmo fez Tiago por sua própria convicção e também por incumbência do irmão Jesus. Eles quereriam completar a lei judaica; eles não quereriam fundar uma nova religião. 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

233.VII - A Propósito de "O Zelota"

VII - Construindo um Deus
1 – A introdução do livro de Aslan é muito clara: “É um milagre sabermos alguma coisa acerca do homem chamado Jesus de Nazaré”. Sobre ele, continua o autor, “há apenas dois factos históricos sólidos: ele liderou um movimento popular judaico na Palestina do início do sec. I ac, e Roma crucificou-o por o fazer”. Mas, continua ainda, “se nos empenharmos em colocar Jesus firmemente dentro do contexto social, religioso e político da época em que viveu (…), então, de algum modo, a sua biografia escreve-se a si mesma” (pp. 21-31).
De modo bem diverso e até oposto têm procedido os teólogos e outros académicos, que, tendo desistido de encontrar o Jesus histórico, se concentram no Cristo, já que é deste que precisam os crentes. “Os académicos”, diz Aslan, “tendem a ver o Jesus que querem ver. É muito frequente verem-se a si mesmos – o reflexo de si próprios – na imagem de Jesus que construíram”.
Entre os tais teólogos e académicos, Aslan cita o caso do excelso professor cristão Rudolfo Bultmann, o qual, em palavras daquele, “gostava de dizer que a busca do Jesus histórico é em última análise uma busca interior”. Claro que isto até será uma contradição, dizemos nós, na medida em que aquilo que se encontra numa busca interior já não será, em princípio, histórico e objectivo.
Sintetizemos então: para começar a compor a figura de Jesus, há um núcleo central de pelo menos dois elementos ou factos sólidos e históricos que todos aceitam. Mas depois, é que há divergências. Assim, enquanto Aslan completa o desenho da figura com mais elementos históricos, conjecturados a partir do contexto em que Jesus viveu, os cristãos completam tal desenho com aquilo que os seus profundos desejos e a sua fé lhes pedem, fazendo desse Jesus simplesmente histórico, fazendo dele o Cristo, o Filho do Homem, um ser enfim que, além de histórico, é  também e sobretudo meta-histórico e divino.

2 – Já aqui neste blog falámos do professor Bultmann, e bem assim da sua cara discípula e depois também professora Uta Ranke-Heinemann, no texto 184, de 29-11-13. O trabalho principal dele, e depois também dela, foi o de limpar os textos bíblicos e sobretudo os evangelhos de tudo o que é mitológico. E foi de tal forma radical o trabalho do mestre em desmitificar os evangelhos, que a discípula chegou a perguntar-lhe se ele acreditava na ressurreição. Em virtude de ela então ser ainda muito jovem – quinze ou dezasseis anos somente - ele não lhe respondeu logo, por talvez ela não entender a explicação. Mas depois, quando já professora, ela insistiu-lhe em tal pergunta, e então o mestre respondeu-lhe: “Se Deus é o que sempre vem, então a nossa fé é a fé no Deus que vem a nós na nossa morte”.
Formulemos por fim uma pergunta: se Bultmann despiu Jesus e Deus dos mitos com que a Bíblia os vestiu, não estará ele agora – como também sugere Aslan – a vesti-los com os dele? Com aquela busca interior, que por isso não pode ser histórica? Busca com mais leves e diáfanos mitos, mas, ainda assim mitos?

3 – Falemos ainda de um outro texto também aqui publicado (texto 35, de 5-10-11), em que se imagina uma conversa com Luís Miguel Cintra, a propósito de uma entrevista por si dada a um jornal. Recordemos só três pontos dessa entrevista, em palavras suas: 1 – “Deus existirá ou não na capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”; 2 – “ Não sabemos se Cristo foi o que disseram. Interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”; 3 – “Os fundadores da religião cristã são os discípulos de Jesus Cristo, e foram esses textos (do Novo Testamento) que inventaram a ideia de Deus”.
Quer dizer: a Luís Miguel, não lhe importando factos históricos e realidades objectivas, só lhe interessa a nossa capacidade de pensar e acreditar, pois nós é que inventamos e fundamos através da nossa subjectividade os valores da religião e, quanto a Deus, só a sua própria ideia. Deus é portanto só pensamento e fé, e nada que seja realidade.

É esta a água morna da fé e do deus dos pós-modernos, nem quente nem fria, nem sim nem não, que tanto tem incomodado os verdadeiramente crentes, como também os verdadeiramente não crentes.

domingo, 21 de setembro de 2014

233.VI - A Propósito de "O Zelota"

VI - O Lento Deslaçar de um Recíproco Ciúme
1 – Olá! Era muito estranho o relacionamento entre o povo judaico e Deus: para Deus, ele era o seu povo, e, para o povo, ele era o seu Deus. Foram então, os judeus, “o povo eleito de Deus” (ver texto 225). Mas não se poderia dizer também que tal Deus foi o Deus eleito do povo?
Os judeus foram um povo tão peculiarmente religioso, tão cioso do seu Deus e este Deus tão cioso do seu povo que os dois – o Deus e o povo – poderiam dizer entre si: “não te quero ver com outros deuses, tu és só meu”, “Não te quero ver com outros povos, tu és só nosso”. Diz-se na Biblia: “O Senhor, teu Deus, é um fogo devorador; Ele é um Deus ciumento” (Deut 4,24); “Quem sacrifica aos deuses será votado ao anátema, excepto se é ao Senhor, e só a Ele”(Ex 22,19).
Ciumentos entre si, portanto: um Deus ciumento que não quer que o seu povo tenha outros deuses, e um povo ciumento que não quer que o seu Deus seja também de (para) outros povos. Este recíproco ciúme terá levado aos piores horrores perpetrados contra os judeus por muitos outros povos, mas também por estes contra aqueles.

2 - Por outro lado, e já em jeito de consequência do que fica dito, não são poucos os passos bíblicos do Antigo Testamento em que Deus ordena ao seu povo algo como isto: “Quanto às cidades desses outros povos, não deixeis nada vivo”. Mas também aqui se poderá perguntar: é o próprio Deus que ordena este extermínio, ou é o povo que concebe este seu Deus a mandar exterminar?
No livro de Josué (cap. 10), o próprio Josué juntamente com o Senhor seu Deus, em total cumplicidade dos dois numa só causa, um e outro no mesmo campo de batalha, conquistam e arrasam até ao extermínio muitas cidades inimigas, ou que simplesmente os dois desejavam conquistar para si próprios: “Josué subiu (…) com todos os seus valentes guerreiros. O Senhor disse-lhe: Não temas, porque os (os cinco reis dos amorreus) entregarei nas tuas mãos; nenhum deles te poderá resistir (…) O Senhor fez desabar sobre eles uma tempestade de granizo (…) e foram mais numerosos os que morreram sob esta chuva de pedras do que os que pereceram às mãos dos filhos de Israel. (…) Quando Josué e os israelitas os derrotaram e massacraram até ao extermínio (…) ninguém mais se atreveu a abrir a boca contra os filhos de Israel. (…) Depois passou Josué e todo o Israel de Maqueda a Libna, e atacaram-na. O Senhor entregou-a com o seu rei nas mãos de Israel, que a passou a fio de espada com tudo o que nela havia, sem deixar escapar ninguém”. E mais e mais fios de espadas e extermínios se seguiram, em várias cidades, “votando ao anátema tudo o que respirava, segundo ordem do Senhor, Deus de Israel”.


3 – Mas também é da Bíblia aquilo que Aslan faz por esquecer, ou seja, que nela há, sobretudo depois do cativeiro, uma tímida mas crescente abertura do povo judaico e do seu Deus, aos outros povos. Assim, a par de o rei Salomão pedir a Deus que atenda a tudo quanto Lhe pedir o estrangeiro que vem por causa do Seu nome (1Rs 8, 41-43), outras provas há do amor universal de Deus: “Eu não hei-de compadecer-me da cidade de Ninive?” (Jn 4,11); “O Senhor é bom para com todos.” (Sl 145,9); “A misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo” (Sir18,13); “Israel será sempre a herança do Senhor, mas o Egipto e a Assíria também serão seu povo” (Is19,24). Até enfim chegarmos a Jesus, que, no contexto do amor aos inimigos, diz que só podemos ser filhos do nosso Pai, se o nosso amor for universal (Mt5,45-48). Agora Deus é Pai, Pai universal.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

233.V - A Propósito de "O Zelota"

V - Sobre O Zelota
1 – Olá! Sabe-se muito pouco, ao certo, sobre a vida histórica de Jesus: segundo Aslan, duas ou três coisas, não mais. Mas isso – diz o autor da obra que ora resumimos – não nos impede de alcançar a sua biografia, ou melhor, a conjectura bem fundada da sua biografia. Para isso, basta inserirmos e imaginarmos essa figura histórica no contexto sócio-político em que viveu: uma Palestina judaica subjugada – os judeus eram ciosos de si mesmos e da Terra Prometida e conquistada por eles e pelo seu Deus –, agora tristemente integrada no império dos romanos.
Metido assim em seu contexto, entre muitos outros messias revolucionários violentos em luta contra os romanos em ordem à restauração política de um país independente, enfim o Reino do seu Deus nessa Terra Prometida, aparece-nos esse Messias Jesus da Galileia – os galileus tinham fama de rebeldes – com os seus seguidores. Um zelota enfim como outros, um judeu cheio de zelo por libertar do jugo romano a terra que era dos judeus e do seu Deus.
Durante os três últimos anos da sua vida, ele pregou, ele afirmou-se messias e rei, rei dos judeus, ele operou tantas e tais coisas que, como resultado, os romanos vieram a condená-lo à morte numa cruz, por crime político de sedição. E assim, com Jesus morto e metido em vida no seu contexto socio-político-religioso - que, esse sim, deve ser bem conhecido e a si aplicado -, fica completa a sua biografia, ou, de forma mais atenuada e cautelosa, a bem fundada conjectura da sua biografia.
Não obstante, e apesar de Jesus ter falhado nos seus intentos políticos, os seus companheiros vivos, presos de afeição por ele, não desistiram de o manter “vivo”. Mas agora, já porque Jesus não cumprira as expectativas messiânicas de um Reino de Deus terreno, já porventura também com medo de represálias por parte dos romanos, eles foram transformando a imagem do seu messias, de violento revolucionário que fora, para um messias manso e espiritual, Rei de um Reino de Deus também espiritual. Simultaneamente, eles foram desculpabilizando crescentemente os romanos no processo da morte de Jesus, e, em contrapartida, culpabilizando até ao cúmulo do insulto os seus irmãos judeus (Jo 19,1-16).
Deste modo, começando a aparecer logo após o ano 70, quando os romanos arrasaram o Templo e a cidade de Jerusalém, os evangelhos de Jesus são livros de elaborada fé desses primeiros cristãos no seu Jesus Cristo, Messias de um Reino de Deus espiritual, inserido neste outro contexto.

2 - Se bem que este livro O Zelota seja um livro poderoso que não nos deixa indiferentes, são de relevar aqui alguns aspectos em relação aos quais pomos algumas reticências.
2.1 - Em primeiro lugar, nenhum contexto histórico pode esgotar a profunda identidade de um ser humano. Nós somos formados, por natureza, de uma dupla dimensão: somos indivíduos, mas também indivíduos sociais. Por isso, por sermos antes de mais indivíduos, a nossa identidade nunca se pode esgotar nessa dimensão social, por mais influenciador que seja esse contexto em nós. Para além da nossa mais profunda intimidade de indivíduos que porventura só aos mais íntimos acaso se revela, há sempre espaço para manifestarmos socialmente a nossa própria rebeldia contra a influência do contexto em nós. E é essa rebeldia-contra-a-corrente, a qual não tem de ser violenta, que muitas vezes irá modificar o contexto social e político e até religioso em que vivemos.
Um contexto sócio-político nunca pode definir em absoluto o carácter de um indivíduo, sobretudo se é uma personalidade forte, como terá sido a de Jesus. Por tudo isto, será temerário dizer que, através do contexto, se poderá estabelecer uma bem fundamentada conjectura biográfica de Jesus, para já não dizer biografia.
2.2 - Em segundo lugar, dizer que Jesus foi um zelota revolucionário e violento, como eram os outros zelotas e messias, também não nos parece correcto. Revolucionário, sim, Jesus terá sido, mas violento, não. A atitude que tomou e as palavras que proferiu perante os vendilhões do Templo, por exemplo, são de facto próprias de um revolucionário, mas não são violentas. Propor que a Lei judaica se complete com o amor aos inimigos é profundamente revolucionário, mas não é de forma alguma violento. De resto, nem o próprio Aslan conhece, no Jesus histórico, acções verdadeiramente violentas, nem entende que as tenha defendido (p. 171). Ainda o próprio Aslan, dizendo que João Baptista foi o grande mestre de Jesus, sabe bem que aquele também não foi violento, apesar de ser revolucionário até ao ponto de afrontar o próprio Herodes Antipas, e, por isso, ser condenado à morte.

Ah, mas falta ainda um pormenor. Se o Jesus histórico tivesse sido um messias violento, além de o terem de mudar para “manso e humilde de coração”, como ele se apresenta nos evangelhos, os primeiros cristãos teriam de substituir também o Deus do Antigo Testamento, um deus habitualmente guerreiro - que, como tal, nem poderia existir -, pelo Deus do Jesus mais uma vez dos evangelhos, um Deus Pai, um Deus bom. É claro que, como já vimos, também a natureza do Reino de Deus teria de mudar. Muita mudança para tão pouco tempo!

domingo, 14 de setembro de 2014

233.IV - A Propósito de "O Zelota"

IV - O Cristianismo de Paulo
1 – Olá! Já neste blog escrevemos que a religião cristã que temos é o cristianismo de Paulo e não de Tiago e de Pedro e de Jesus (ver texto 40).
Paulo não conheceu Jesus enquanto vivo, o Jesus histórico, nunca tendo portanto estado em contacto directo com aquilo que ele pregou e operou durante a sua vida pública. O primeiro contacto que teve com tal movimento fundado no messias Jesus foi aquando do martírio de Estêvão por lapidação, por volta de 35 pc, a qual ele encorajou. Mas este acontecimento perturbou depois tão profundamente este jovem fariseu de Tarso, que, dois anos volvidos e a caminho de Damasco, o Ressuscitado supostamente lhe apareceu e, em breve, ele estava convertido e baptizado, autoproclamando-se depois apóstolo como os outros que acompanharam Jesus em vida, e até, com uma ponta de vaidade, ainda melhor do que eles.
A Igreja de Jerusalém, Igreja-Mãe de todo o movimento do messias Jesus depois da sua morte, foi desde o início chefiada por Tiago, irmão de Jesus. Quem confirma o que acaba de ser dito é o historiador cristão Hegésipo (110-180 pc) que escreve: “O controlo da Igreja passou, com os apóstolos, para o irmão do Senhor, Tiago, a quem toda a gente (…) chamou O Justo” E até antes deste testemunho houve vários outros na mesma direcção, entre os quais o de Clemente, bispo sucessor de Pedro em Roma, o qual em carta se dirige a Tiago qualificando-o de “Bispo dos bispos, que governa Jerusalém – a Santa Assembleia dos Hebreus – e todas as Assembleias em toda a parte” (p.263).
Por várias vezes e maneiras, Tiago demonstrou exercer essa chefia em relação a tudo o que sobre o movimento de Jesus Cristo se fazia e ensinava em toda a parte onde chegara. Quanto a Paulo, Tiago chegou mesmo a enviar emissários para verem o que ele andava a fazer e a ensinar, e chamou-o várias vezes a Jerusalém para que lhe prestasse contas de tudo. O próprio Pedro estava sob a jurisdição de Tiago.
Quando Tiago morreu, em 62 pc, quem lhe sucedeu foi Simeão, um sobrinho dele e de Jesus. Mas quando, em 70, o imperador romano Tito arrasou Jerusalém, a mais genuína doutrina e os exactos gestos messiânicos desse Jesus histórico tudo se perdeu. E se, nessa altura, também já Paulo tinha morrido, ficaram no entanto as suas cartas, com o seu próprio pensamento, as quais foram depois influenciar profundamente a escrita dos quatro evangelhos, sobretudo o de João, e ainda hoje perfazem grande parte dos textos do novo Testamento.

2 – Ao contrário de Paulo, Tiago nunca quis, como aliás seu irmão Jesus, fundar uma religião. Os dois assentavam todo o novo movimento, não em revogar a Lei judaica, mas no seu acabamento, sobretudo no que toca ao serviço aos outros, nomeadamente aos pobres e doentes. Mas, para Paulo, a Lei é o “ministério da morte”, e o que importa é a fé em Cristo, ou seja, o “ministério do Espírito vindo em glória” (2Cor 3,7-8). Na verdade, o cristianismo de Paulo assenta no “Filho do Homem de pé, à direita de Deus”, designação atribuída ao Jesus ressuscitado por Estêvão no final do discurso que o levou ao martírio, a que, como diz Aslan, Saulo (depois chamado Paulo) alegremente assistira. Ou então, até devíamos dizer ao contrário: dizer que aquelas citadas palavras e todo o discurso de Estêvão foram redigidos por Lucas (Act7), amigo e discípulo de Paulo, influenciado pelas já existentes cartas deste, nomeadamente as duas aos Coríntios, aqui citadas.
Porque não conheceu o Jesus histórico, Paulo, além da morte e de uma breve alusão à Última Ceia, nada narra da vida de Jesus, desse “Jesus em carne”, tão-somente lhe interessando o Jesus divino, o Cristo. Ele chega quase a desdenhar da dimensão histórica de Jesus, e daquilo e daqueles que o rodearam em vida: “Mas quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como Evangelho entre os gentios, não fui logo consultar criatura humana alguma, nem subi a Jerusalém para ir ter com os que se tornaram apóstolos antes de mim” (Gal 1, 15-17).

3 - Por duas razões a morte é condição sem a qual não existiria o cristianismo. Pela primeira, razão geral, se não houvesse para os homens o sofrimento e a morte, provavelmente as religiões não existiriam. Pela segunda, razão específica, se Jesus não tivesse morrido, não existiria o cristianismo porque é só através da sua morte que se pode chegar à sua ressurreição. O cristianismo não se funda na morte de Jesus: ele funda-se na sua ressurreição gloriosa, a qual porém só a sua morte tornou possível.
De maneira que, segundo Paulo, o caminho para o Cristo é morrermos de uma vida de pecado para vivermos na fé em Cristo, pela graça. Para Paulo, só a graça nos salva, e não a Lei, nem que esta seja completada como Jesus e depois Tiago e Pedro pretendiam.
Mas o argumento de Paulo para a ressurreição dos mortos e do próprio Jesus é demasiado frágil. Aos seus amados cristãos de Corinto, Paulo, já antes um fariseu profundamente crente na ressurreição dos mortos e depois um abrupto convertido ao cristianismo, escreve o seguinte: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé. (…) Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, assim por um homem vem a ressurreição dos mortos. E, como todos morrem em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida” (1Cor 15, 12-22).
Paulo entende então que a sua pregação da ressurreição de Cristo, e bem assim a fé dos seus ouvintes na mesma ressurreição, são argumento que prova essa ressurreição. De tal maneira que, se esta não for realidade, serão vãs a pregação e a fé. Era bom que vãs não fossem, sim, mas, porque não poderão ser? Elas são mais importantes do que a realidade? É a força do desejo e a nossa crença que criam a realidade da ressurreição? Depois, como novo argumento, ele estabelece a comparação entre Adão – o primeiro homem que, com o seu suposto pecado trouxe a morte à humanidade – e o Cristo que, com a sua, trouxe a ressurreição dos mortos. No entanto, se considerarmos míticos, como é muito provável que sejam, os elementos do primeiro termo de comparação, o que é que resta do segundo? Não haverá enfim, na proposta de Paulo, a tentativa de um cumprimento, mas só subjectivo, do profundo desejo humano de viver infindamente, perante a insofismável realidade da morte?


Nota: Para a escrita deste texto, foram extraídas várias informações de O Zelota.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

233.III - A Propósito de "O Zelota"

III - Auto-consciência de Jesus e Fé em Jesus Cristo
1 – Olá! Saber aquilo que Jesus pensava acerca de si próprio e conhecer o processo da elaboração da fé em Jesus Cristo, por parte dos seus discípulos depois da sua morte e começando pelos que o conheceram em vida, são dois problemas distintos mas que se podem ver a par um do outro.
Em frente do interpelante Caifás, Jesus não negou que fosse o Messias, mas, como escreve Aslan, ele foi aí dando a entender que preferia ser chamado Filho do Homem, provavelmente em linha com o que, sobre este, já dissera o profeta Daniel (cap.7). Deste modo, Jesus pensaria ser um rei revolucionário – mas violento também como outros messias e como quer Aslan, ele não seria –, um rei de um reino predominantemente terreno em que os pobres e os mansos e os famintos seriam os bem-aventurados, enfim o Reino de Deus a cumprir (já) aqui na terra.
Se isto for assim, já no estertor da agonia, Jesus terá notado que não tinha cumprido as suas intenções. Mas quem notou e sofreu profundamente com tal incumprimento foram os discípulos, que ficaram vivos mas órfãos, e sem saber o que fazer.

2 - E então, para ultrapassarem este beco sem saída, os que tinham sido discípulos daquele Jesus subitamente desaparecido, outra solução não tiveram senão a reflexão, também o perscrutar minucioso das escrituras, e ainda a imaginação.
Veio assim, antes de mais, a ressurreição desse mestre amigo; veio também a reformulação das intenções messiânicas de Jesus, mas agora de acordo com escrituras recentes e já posteriores à sua morte, e portanto por este não conhecidas (os apócrifos 4Esdras e 1Enoque, citados por Aslan). Desta forma, na perspectiva dos discípulos, Jesus era agora rei, sim, mas um rei manso de um reino de todo espiritual, se bem que também com profundas repercussões terrenas. Enfim, e também aqui, de novo o Reino de Deus mas um Reino diverso.

3 – Tiveram então as primeiras comunidades cristãs - nas quais se integravam os autores dos evangelhos - de reformular a identidade messiânica de Jesus, passando de um messias revolucionário e político e rei de um Reino de Deus terreno, para um messias “manso e humilde de coração”, rei ou vice-rei de um Reino de Deus prevalecentemente espiritual.
Fizeram isto e não só, e parece que mais não lembra a Aslan. Porque tiveram também de reformular a identidade do seu Deus, já não o Deus ciumento e guerreiro do Antigo Testamento, mas um Deus pai, como o Jesus dos evangelhos tão de gosto lhe costumava chamar.
Em rigor, talvez até nem seja necessário alegar o medo das represálias dos romanos contra as primeiras comunidades cristãs para que estas procedessem a esta mudança de padrão do seu messias, passando-o de um messias temporal correspondente a um Reino de Deus terreno, para um messias e um Reino de Deus espirituais. Para tanto, bastaria elas constatarem o falhanço de Jesus nos seus primeiros intentos. E não desistiram de fazer esta mudança porque, começando por aqueles que tinham sido companheiros de Jesus em vida, continuavam a ter o seu coração preso de afeição por ele, como se diz no livro de Josefo. Também é bom lembrar que um Jesus manso não exclui um Jesus revolucionário e vice-versa, como se poderá ver no passo dos Vendilhões do Templo. Revolucionário, sim, mas não violento. Aliás, o próprio Aslan, embora diga que Jesus era violento, como outros messias, também confessa que não lhe conhece acções propriamente violentas.

4 – É provável que, naquele conturbado tempo de lutas entre os encarniçados judeus e os cruéis romanos invasores, Jesus se tenha balanceado com alguma indecisão entre um Reino de Deus sobretudo terreno e um Reino de Deus prevalentemente espiritual, o qual, note-se bem, não era para os apóstolos de primeira necessidade, e até nem entenderiam bem. Também é provável que tal indecisão de Jesus tenha cessado nos últimos tempos da sua vida, voltando-se só para o Reino de Deus de acento espiritual. Talvez até tenha optado definitivamente por este reino, precisamente por não suportar a imagem tradicional de um deus guerreiro e ciumento, e, ao contrário, entender que Deus deve ser é Pai, pai amigo, em cujo regaço podia reclinar a cabeça e encomendar até o seu espírito.

Por seu turno, o grande problema dos discípulos na elaboração da sua fé foi assentá-la toda nesse Jesus Messias espiritual e, consequentemente, como em pano de fundo, nesse Reino de Deus espiritual.

domingo, 7 de setembro de 2014

233 . II - A Propósito de "O Zelota"

II - História e Fé nos Evangelhos
1 – Olá! Ainda não dissemos tudo o que queríamos dizer acerca dos estratos da história e da fé nos evangelhos. Estes quatro livros bíblicos foram organizados e escritos por crentes em Jesus Cristo, com a finalidade de confirmarem na mesma fé outros crentes e para fazerem mais crentes. Sem deixarem de ser históricos, eles são primaria e intencionalmente livros de fé.
Daqui se deduz que o que sobremaneira interessa aos evangelistas é a vida pública de pregação e de outros gestos salvíficos ocorridos na vida de Jesus, nos quais também se incluem a sua morte e a sua ressurreição. Da sua vida adulta anterior àquela “pública”, para a qual Aslan carreia muitos elementos de simples mas verosímil conjectura, os evangelhos nada dizem. Quanto à infância de Jesus, eles dizem muito pouco, e só os evangelhos de Mateus e Lucas a ela se referem, em relatos praticamente só de fé e não de história.
Sobre todos os “eventos” que os evangelhos dizem ter acontecido depois da morte de Jesus e a ele referidos, eles só se podem referir a ele segundo a fé e não segundo a história. Ou seja, pode ser histórico alguém reivindicar para si uma aparição do Ressuscitado, mas, tal aparição, enquanto tal, é só produto da fé e não facto histórico.
Mas a prova maior de como os evangelhos subestimam o Jesus histórico a favor do Cristo da Fé, é o tardio evangelho de João, o mais espiritual e menos terreno e por isso menos histórico dos quatro, onde se apresenta um Jesus já existindo antes da história, como Verbo de Deus, logo regressando, depois desta vida breve e mortal, para essa sua situação anterior ao tempo, não sem que antes, assim só espiritualmente, supostamente tenha aparecido aos seus amigos humanos. Uma eternidade, enfim, nunca interrompida, mas tão só acrescentada de humanidade, durante os anos da sua vida temporal.

2 – No seu livro sobre Jesus de Nazaré, Aslan, quase logo ao princípio, escreve que Jesus “era um homem de profundas contradições” (pp 22 e 228). Mas, das contradições apresentadas – só duas, afinal – logo a primeira não é contradição nenhuma: “um dia a pregar a mensagem da exclusão racial (Fui enviado unicamente às ovelhas perdidas de Israel – Mt 15,24); e a seguir, a do universalismo benévolo (Ide e fazei discípulos de todas as nações – Mt 28,19)”. Não há contradição porque, se a primeira citação parece de facto ser histórica, ou seja, aquelas palavras terão sido realmente proferidas por Jesus, o conteúdo da segunda, já incluído no período pós-pascal, já não é histórico, isto é, já não pode ser atribuído ao Jesus histórico que entretanto já morrera. Enquanto o passo da primeira citação é histórico, se acaso Jesus o produziu, o segundo é simplesmente produto de fé. Neste segundo passo, quem fala e ordena aos primeiros discípulos é a sua própria fé, ou, melhor dizendo, é a fé de Mateus, a quem se atribui a autoria do evangelho, escrito a partir de Damasco nos finais do primeiro século: fé primeiro em que Jesus ressuscitou, e que, agora, esse Ressuscitado, o Cristo, aparece aos discípulos e lhes diz Ide e fazei discípulos de todas as nações.

3 – Muito embora consideremos primitivo ou original este versículo de Mateus - escrito portanto pelo referido autor pois que o universalismo Paulino já era bem evidente -, nós temos de o relacionar com uma outro versículo do mesmo evangelho, que, este sim, não deve ser original, mas simplesmente aditado em fase posterior. Quando e por quem, nunca saberemos ao certo. Referimo-nos ao famoso versículo de Mt 16,18, onde se põe o Jesus histórico a dizer a Pedro Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja.
De facto, nunca saberemos ao certo quando e quem aditou este versículo, o qual até complementa a primor o de Mt 28,19. Mas, se aceitarmos a tradição de que Pedro foi o primeiro bispo de Roma, e atendermos a que tal igreja foi recebendo favores do imperador romano - uns realmente concedidos mas outros só consentidos -, e ainda não esquecermos que Mt 16,18 não consta dos códices mais antigos deste evangelho, provavelmente teremos o caso esclarecido. Ele terá sido inventado e introduzido no evangelho por alguém sob a influência político-religiosa da já hegemónica igreja de Roma.

A conclusão é que, embora por motivos diversos, nem um nem outro destes dois versículos se pode atribuir autenticamente a Jesus.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

233 . I (de IX) - A Propósito de "O Zelota"

I - A Geologia dos Textos
1 – Olá, amigas e amigos! Apareceu recentemente entre nós, em tradução portuguesa, a obra O Zelota – A Vida e o Tempo de Jesus de Nazaré, do jovem iraniano/americano Reza Aslan. Este facto dá-nos ensejo para aqui revisitarmos essa figura histórica de Jesus, de todos conhecida, e, sempre que vier a propósito, traremos à colação essa obra.
Quem é afinal Jesus? O que é que, por acções e por palavras, podemos saber desse Jesus, também chamado o Cristo? Por se tratar de uma figura antiga, teremos de recorrer a fontes, e, como ela se pôs e foi posta em contexto religioso, as fontes terão de ser religiosas, antes de mais, mas também as temos laicas.
Religiosas ou bíblicas, são sobretudo os quatro evangelhos mas também os textos de Paulo, se bem que nestes se fale só do Jesus morto e supostamente ressuscitado, assim pouco adiantando para o conhecimento do Jesus histórico. O problema é que, sobretudo no caso dos evangelhos, que são primariamente textos de fé e muito pouco de história, temos de estar continuamente a distinguir entre o que será de história e o que é de fé.
Entre as fontes laicas há sobretudo a obra de Flávio Josefo - Antiguidades Judaicas – na qual se encontra um delicioso parágrafo sobre esse Messias Jesus. Nascido pouco depois da morte de Jesus, Josefo era um rapazinho judeu muito inteligente, e, como tal, os romanos levaram-no para Roma, incumbindo-o de escrever obras históricas sobre os judeus.

2 - Tal como nos materiais da Natureza há diversos estratos ou camadas de sedimentos – uns mais antigos que outros -, assim também os há no material simbólico dos textos que os humanos vão escrevendo e deixam escritos para a posteridade. No vertente caso das fontes bíblicas e laicas que temos para conhecer a pessoa de Jesus, também depois chamado o Cristo, temos pelo menos o estrato da história e o estrato da fé. Não é geralmente difícil para um “geólogo de textos” destrinçar, em casos concretos, o material pertencente a cada um dos dois estratos. A primeira regra a seguir é: tudo aquilo que transcende as conhecidas capacidades humanas é, em princípio, objecto de fé, para quem quiser acreditar.
Iniciemos então – de forma não exaustiva, evidentemente - este exercício de aplicação: o facto de ter havido um homem chamado Jesus pertence ao estrato da história, mas ter-se chamado a esse homem o Cristo integra-se no estrato da fé. É também próprio da história Jesus ter nascido provavelmente em Nazaré – a ciências histórica não tem só certezas -, e ter tido discípulos; também ter sido condenado à morte pelos romanos numa cruz, no alto da qual se via o título Jesus Nazareno Rei dos Judeus, assim se indicando o crime por que fora condenado. Ao invés, pertencerão ao estrato da fé o anúncio do anjo a Maria; o nascimento de Jesus em Belém, de uma mãe virgem e sem varão; o menino aos doze anos discutindo a lei entre os doutores; a descida do Espírito Santo em forma de pomba sobre Jesus, aquando do seu baptismo por João; as tentações de Jesus no deserto; a transfiguração; a ressurreição e todas as aparições do Ressuscitado que se seguiram. O que é histórico, teremos todos de o aceitar como certo, ou pelo menos provável, mas o que é de fé só o aceita como certo quem tem fé. Veja-se o caso do nascimento de Jesus: provavelmente ele aconteceu historicamente em Nazaré, mas, pela fé, os crentes evangelistas fizeram-no nascer em Belém, porque as escrituras punham nesta cidade o nascimento do Messias ou Cristo Salvador.

3 - Mas deixemos por agora os textos bíblicos, e entremos no caso curioso de um pequeno segmento das Antiguidades de Josefo – fonte pagã portanto e aparecida em 84 pc -, onde se fazem referências a esse Jesus, também chamado o Cristo. Neste segmento, citado parcialmente por Aslan, conta-se que Anás, sumo sacerdote, “condenou ilegalmente um certo Tiago, o irmão de Jesus, aquele a quem chamam messias, a apedrejamento por transgressão da lei”. A este segmento textual de Josefo, Aslan chama-lhe “um breve texto sem ênfase”, e sobre a pequena frase aquele a quem chamam messias, referida a Jesus, diz que, para além de ser “fugaz e desdenhosa”, ela “pretende claramente exprimir escárnio”, em relação a essa figura (p.23).
Se se trata da mesma passagem – não haverá mais nenhum parágrafo sobre Jesus na obra de Josefo – mais avisada e cuidadosa deve ser a maneira como Sanders, no seu livro A Verdadeira História de Jesus, trata todo o segmento textual de Josefo, vendo nele a intervenção de copistas cristãos. Cá estamos a ver de novo – agora num texto laico – a existência dos dois estratos: o da história, o mais antigo, e, sobreposto, o da fé dos copistas. Quer dizer, inicialmente, a obra era um texto puramente histórico e pagão, mas depois, quando se tratou de fazer (novas) cópias dela, os copistas, neste caso cristãos, não se coibiram de aí inserir aditamentos por conta da sua fé, procedimento que, por uma razão ou outra, foi comum durante muitos séculos nos escritórios dos copistas.
Eis como Sanders - sem esquecer que a nítida separação dos dois estratos é muitas vezes difícil - apresenta o segmento textual em apreço, vindo em itálico as intervenções de fé dos copistas: “Foi por essa altura que viveu Jesus, um homem sábio se é que lhe devemos chamar homem. Ele fez obras extraordinárias e era o mestre das pessoas que aceitavam os seus ensinamentos como verdadeiros. Conquistou muitos judeus e gregos. Era o Messias. Quando Pilatos o condenou à morte na cruz, depois de ter ouvido as acusações que lhe faziam os mais ilustres entre nós, aqueles que lhe tinham entregue o seu coração não abdicaram da sua afeição por ele. Apareceu-lhes ao terceiro dia ressuscitado, pois os profetas de Deus assim o tinham anunciado, bem como outras maravilhas acerca dele. E o grupo dos cristãos, assim designados por causa dele, não desapareceu até aos dias de hoje” (p. 77).

4 - A fé no divino (neste caso em Cristo) está de tal modo entranhada no tecido da cultura ocidental que, até para falarmos do tempo, do transcurso da história, utilizamos um elemento de fé: séc. II ac e séc. IV pc, ou também, como no livro de Aslan, séc. II a.e.c. e séc. IV e.c. Mas, se o tempo é só a medida do movimento e das mudanças dos seres – dos seres que se movem e mudam ou são movidos e mudados – então, o tempo (e também o movimento) não existe realmente, mas tão só existem todos os seres que se movem e mudam, ou são movidos ou mudados. E então, se for assim, o tempo é simplesmente a medida que inventámos para medir o movimento e as mudanças dos seres. Assim, o tempo será uma simples entidade abstracta e subjectiva que, enquanto tal, não existe realmente. Porque o que realmente existe são os seres concretos a moverem-se e a mudarem.

Ao impregnar o tempo da história, a fé em Cristo, enquanto fé, não traz nem pode trazer qualquer objectividade ao tempo, porque também ela é subjectiva. O que poderá trazer-lhe, mesmo assim, é profundidade ou densidade, mas isto só para o caso dos que acreditam que o Cristo é mesmo uma realidade divina.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

232 - O Tempero da Ternura

Há coisas que me fascinam: uma é olhar o mar,
outra é olhar uma árvore, se possível
 com suas flores ou frutos.
Digo olhar, querendo significar contemplar,
se não mesmo ficar fascinado.
Qual dos dois é maior: o grande oceano, ou eu?
É este mar oceano, aqui à minha frente,
ora golfando raivoso como leão enfurecido,
ora mansinho como cordeiro acabadinho de nascer
e a ser lambido pela mãe ou pela areia,
ou é esta luzinha que eu sou, consciência de mim,
desta minha insignificância, mas também consciência
da vida, dos oceanos e do universo?

Se há mares ou oceanos diferentes,
também há árvores de muitas espécies, todas elas belas,
quase sempre na sua incontaminada beleza natural:
há a cameleira, com as suas flores multicolores
no denso fundo verde das folhas;
há os dióspiros, esses frutos feitos de fogo, divinos,
pendentes da mãe árvore toda despida de folhas;
há o indomável cedro, com a sua nunca saciada
sede de subir às alturas, pedida, ela,
pelas raízes que o aprofundam na terra

Mas hoje, com este céu e este mar de todo limpos,
não nos detenhamos aqui por mais tempo no promontório,
não só porque o vento se levantou e agora corre frio,
como também porque sentimos alguma urgência
em fazer caminho para o vale dos cedros,
onde hoje há, brincando, um grupinho de crianças

E agora, já no vale dos cedros,
neste santuário morno, sem vento
(só passando ele, de manso, pelos píncaros)
e onde, depois do convívio com elas e com  os mestres,
o álacre gorjeio das crianças se extingue com a distância,
eu, sentado solidamente no chão, costas direitas
dadas ao dorso do generoso cedro,
(que partilha comigo a profunda seiva da terra
e permuta o halo aéreo da respiração)
inspiro profundamente com ele. E tão
profunda e altamente inspiro
que logo ali  o inspirar vira longo bocejo,
ali mesmo sob o lago dos olhos,
depois expirando lenta e longamente
descendo ao profundo da terra,
eu e ele, o cedro, daí colhendo seiva,
ela se entranhando nele, e por ele em mim,
e assim por diante, sem tempo, em movimento
bipolar, que é o movimento da vida …

Entre a terra e o céu, cedro e eu, nós estamos,
(nítido espelho azul-oceano em que nos vemos),
pois é deles que nos alimentamos:

Almo aéreo ar da árvore,
seiva funda, verde e azul, da terra,
meu alimento morno, vem,
fica comigo



Dedico este texto a meu pai, cujo aniversário hoje ocorreria.