quinta-feira, 25 de setembro de 2014

233.VII - A Propósito de "O Zelota"

VII - Construindo um Deus
1 – A introdução do livro de Aslan é muito clara: “É um milagre sabermos alguma coisa acerca do homem chamado Jesus de Nazaré”. Sobre ele, continua o autor, “há apenas dois factos históricos sólidos: ele liderou um movimento popular judaico na Palestina do início do sec. I ac, e Roma crucificou-o por o fazer”. Mas, continua ainda, “se nos empenharmos em colocar Jesus firmemente dentro do contexto social, religioso e político da época em que viveu (…), então, de algum modo, a sua biografia escreve-se a si mesma” (pp. 21-31).
De modo bem diverso e até oposto têm procedido os teólogos e outros académicos, que, tendo desistido de encontrar o Jesus histórico, se concentram no Cristo, já que é deste que precisam os crentes. “Os académicos”, diz Aslan, “tendem a ver o Jesus que querem ver. É muito frequente verem-se a si mesmos – o reflexo de si próprios – na imagem de Jesus que construíram”.
Entre os tais teólogos e académicos, Aslan cita o caso do excelso professor cristão Rudolfo Bultmann, o qual, em palavras daquele, “gostava de dizer que a busca do Jesus histórico é em última análise uma busca interior”. Claro que isto até será uma contradição, dizemos nós, na medida em que aquilo que se encontra numa busca interior já não será, em princípio, histórico e objectivo.
Sintetizemos então: para começar a compor a figura de Jesus, há um núcleo central de pelo menos dois elementos ou factos sólidos e históricos que todos aceitam. Mas depois, é que há divergências. Assim, enquanto Aslan completa o desenho da figura com mais elementos históricos, conjecturados a partir do contexto em que Jesus viveu, os cristãos completam tal desenho com aquilo que os seus profundos desejos e a sua fé lhes pedem, fazendo desse Jesus simplesmente histórico, fazendo dele o Cristo, o Filho do Homem, um ser enfim que, além de histórico, é  também e sobretudo meta-histórico e divino.

2 – Já aqui neste blog falámos do professor Bultmann, e bem assim da sua cara discípula e depois também professora Uta Ranke-Heinemann, no texto 184, de 29-11-13. O trabalho principal dele, e depois também dela, foi o de limpar os textos bíblicos e sobretudo os evangelhos de tudo o que é mitológico. E foi de tal forma radical o trabalho do mestre em desmitificar os evangelhos, que a discípula chegou a perguntar-lhe se ele acreditava na ressurreição. Em virtude de ela então ser ainda muito jovem – quinze ou dezasseis anos somente - ele não lhe respondeu logo, por talvez ela não entender a explicação. Mas depois, quando já professora, ela insistiu-lhe em tal pergunta, e então o mestre respondeu-lhe: “Se Deus é o que sempre vem, então a nossa fé é a fé no Deus que vem a nós na nossa morte”.
Formulemos por fim uma pergunta: se Bultmann despiu Jesus e Deus dos mitos com que a Bíblia os vestiu, não estará ele agora – como também sugere Aslan – a vesti-los com os dele? Com aquela busca interior, que por isso não pode ser histórica? Busca com mais leves e diáfanos mitos, mas, ainda assim mitos?

3 – Falemos ainda de um outro texto também aqui publicado (texto 35, de 5-10-11), em que se imagina uma conversa com Luís Miguel Cintra, a propósito de uma entrevista por si dada a um jornal. Recordemos só três pontos dessa entrevista, em palavras suas: 1 – “Deus existirá ou não na capacidade de os homens o pensarem e de lhe darem um verdadeiro sentido”; 2 – “ Não sabemos se Cristo foi o que disseram. Interessa o que os evangelistas escreveram e é essa história que é portadora de determinados valores (…) a partir dos quais nasce uma ideia de Deus”; 3 – “Os fundadores da religião cristã são os discípulos de Jesus Cristo, e foram esses textos (do Novo Testamento) que inventaram a ideia de Deus”.
Quer dizer: a Luís Miguel, não lhe importando factos históricos e realidades objectivas, só lhe interessa a nossa capacidade de pensar e acreditar, pois nós é que inventamos e fundamos através da nossa subjectividade os valores da religião e, quanto a Deus, só a sua própria ideia. Deus é portanto só pensamento e fé, e nada que seja realidade.

É esta a água morna da fé e do deus dos pós-modernos, nem quente nem fria, nem sim nem não, que tanto tem incomodado os verdadeiramente crentes, como também os verdadeiramente não crentes.

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