II - História e Fé nos
Evangelhos
1 – Olá! Ainda não dissemos tudo o que queríamos dizer acerca
dos estratos da história e da fé nos evangelhos. Estes quatro livros bíblicos
foram organizados e escritos por crentes em Jesus Cristo, com a finalidade de
confirmarem na mesma fé outros crentes e para fazerem mais crentes. Sem
deixarem de ser históricos, eles são primaria e intencionalmente livros de fé.
Daqui se deduz que o que sobremaneira interessa aos
evangelistas é a vida pública de pregação e de outros gestos salvíficos
ocorridos na vida de Jesus, nos quais também se incluem a sua morte e a sua
ressurreição. Da sua vida adulta anterior àquela “pública”, para a qual Aslan
carreia muitos elementos de simples mas verosímil conjectura, os evangelhos
nada dizem. Quanto à infância de Jesus, eles dizem muito pouco, e só os
evangelhos de Mateus e Lucas a ela se referem, em relatos praticamente só de fé
e não de história.
Sobre todos os “eventos” que os evangelhos dizem ter
acontecido depois da morte de Jesus e a ele referidos, eles só se podem referir
a ele segundo a fé e não segundo a história. Ou seja, pode ser histórico alguém
reivindicar para si uma aparição do Ressuscitado, mas, tal aparição, enquanto
tal, é só produto da fé e não facto histórico.
Mas a prova maior de como os evangelhos subestimam o Jesus
histórico a favor do Cristo da Fé, é o tardio evangelho de João, o mais
espiritual e menos terreno e por isso menos histórico dos quatro, onde se
apresenta um Jesus já existindo antes da história, como Verbo de Deus, logo
regressando, depois desta vida breve e mortal, para essa sua situação anterior
ao tempo, não sem que antes, assim só espiritualmente, supostamente tenha
aparecido aos seus amigos humanos. Uma eternidade, enfim, nunca interrompida,
mas tão só acrescentada de humanidade, durante os anos da sua vida temporal.
2 – No seu livro sobre Jesus de Nazaré, Aslan, quase logo ao
princípio, escreve que Jesus “era um homem de profundas contradições” (pp 22 e
228). Mas, das contradições apresentadas – só duas, afinal – logo a primeira
não é contradição nenhuma: “um dia a pregar a mensagem da exclusão racial (Fui enviado unicamente às ovelhas perdidas
de Israel – Mt 15,24); e a seguir, a do universalismo benévolo (Ide e fazei discípulos de todas as nações
– Mt 28,19)”. Não há contradição porque, se a primeira citação parece de facto
ser histórica, ou seja, aquelas palavras terão sido realmente proferidas por
Jesus, o conteúdo da segunda, já incluído no período pós-pascal, já não é
histórico, isto é, já não pode ser atribuído ao Jesus histórico que entretanto
já morrera. Enquanto o passo da primeira citação é histórico, se acaso Jesus o
produziu, o segundo é simplesmente produto de fé. Neste segundo passo, quem
fala e ordena aos primeiros discípulos é a sua própria fé, ou, melhor dizendo,
é a fé de Mateus, a quem se atribui a autoria do evangelho, escrito a partir de
Damasco nos finais do primeiro século: fé primeiro em que Jesus ressuscitou, e
que, agora, esse Ressuscitado, o Cristo, aparece aos discípulos e lhes diz Ide e fazei discípulos de todas as nações.
3 – Muito embora consideremos primitivo ou original este
versículo de Mateus - escrito portanto pelo referido autor pois que o
universalismo Paulino já era bem evidente -, nós temos de o relacionar com uma
outro versículo do mesmo evangelho, que, este sim, não deve ser original, mas
simplesmente aditado em fase posterior. Quando e por quem, nunca saberemos ao
certo. Referimo-nos ao famoso versículo de Mt 16,18, onde se põe o Jesus
histórico a dizer a Pedro Tu és Pedro e
sobre esta pedra edificarei a minha igreja.
De facto, nunca saberemos ao certo quando e quem aditou este
versículo, o qual até complementa a primor o de Mt 28,19. Mas, se aceitarmos a
tradição de que Pedro foi o primeiro bispo de Roma, e atendermos a que tal
igreja foi recebendo favores do imperador romano - uns realmente concedidos mas
outros só consentidos -, e ainda não esquecermos que Mt 16,18 não consta dos
códices mais antigos deste evangelho, provavelmente teremos o caso esclarecido.
Ele terá sido inventado e introduzido no evangelho por alguém sob a influência
político-religiosa da já hegemónica igreja de Roma.
A conclusão é que, embora por motivos diversos, nem um nem
outro destes dois versículos se pode atribuir autenticamente a Jesus.
Sem comentários:
Enviar um comentário