I - A Geologia dos Textos
1 – Olá, amigas e amigos! Apareceu recentemente entre nós, em
tradução portuguesa, a obra O Zelota – A
Vida e o Tempo de Jesus de Nazaré, do jovem iraniano/americano Reza Aslan.
Este facto dá-nos ensejo para aqui revisitarmos essa figura histórica de Jesus,
de todos conhecida, e, sempre que vier a propósito, traremos à colação essa
obra.
Quem é afinal Jesus? O que é que, por acções e por palavras,
podemos saber desse Jesus, também chamado o Cristo? Por se tratar de uma figura
antiga, teremos de recorrer a fontes, e, como ela se pôs e foi posta em
contexto religioso, as fontes terão de ser religiosas, antes de mais, mas
também as temos laicas.
Religiosas ou bíblicas, são sobretudo os quatro evangelhos
mas também os textos de Paulo, se bem que nestes se fale só do Jesus morto e
supostamente ressuscitado, assim pouco adiantando para o conhecimento do Jesus
histórico. O problema é que, sobretudo no caso dos evangelhos, que são
primariamente textos de fé e muito pouco de história, temos de estar
continuamente a distinguir entre o que será de história e o que é de fé.
Entre as fontes laicas há sobretudo a obra de Flávio Josefo -
Antiguidades Judaicas – na qual se encontra um delicioso parágrafo sobre esse
Messias Jesus. Nascido pouco depois da morte de Jesus, Josefo era um rapazinho
judeu muito inteligente, e, como tal, os romanos levaram-no para Roma,
incumbindo-o de escrever obras históricas sobre os judeus.
2 - Tal como nos materiais da Natureza há diversos estratos
ou camadas de sedimentos – uns mais antigos que outros -, assim também os há no
material simbólico dos textos que os humanos vão escrevendo e deixam escritos
para a posteridade. No vertente caso das fontes bíblicas e laicas que temos
para conhecer a pessoa de Jesus, também depois chamado o Cristo, temos pelo
menos o estrato da história e o estrato da fé. Não é geralmente difícil para um
“geólogo de textos” destrinçar, em casos concretos, o material pertencente a
cada um dos dois estratos. A primeira regra a seguir é: tudo aquilo que
transcende as conhecidas capacidades humanas é, em princípio, objecto de fé,
para quem quiser acreditar.
Iniciemos então – de forma não exaustiva, evidentemente - este
exercício de aplicação: o facto de ter havido um homem chamado Jesus pertence ao estrato da história,
mas ter-se chamado a esse homem o Cristo
integra-se no estrato da fé. É também próprio da história Jesus ter nascido
provavelmente em Nazaré – a ciências histórica não tem só certezas -, e ter
tido discípulos; também ter sido condenado à morte pelos romanos numa cruz, no alto
da qual se via o título Jesus Nazareno
Rei dos Judeus, assim se
indicando o crime por que fora condenado. Ao invés, pertencerão ao estrato da
fé o anúncio do anjo a Maria; o nascimento de Jesus em Belém, de uma mãe virgem
e sem varão; o menino aos doze anos discutindo a lei entre os doutores; a
descida do Espírito Santo em forma de pomba sobre Jesus, aquando do seu
baptismo por João; as tentações de Jesus no deserto; a transfiguração; a
ressurreição e todas as aparições do Ressuscitado que se seguiram. O que é
histórico, teremos todos de o aceitar como certo, ou pelo menos provável, mas o
que é de fé só o aceita como certo quem tem fé. Veja-se o caso do nascimento de
Jesus: provavelmente ele aconteceu historicamente em Nazaré, mas, pela fé, os
crentes evangelistas fizeram-no nascer em Belém, porque as escrituras punham
nesta cidade o nascimento do Messias ou Cristo Salvador.
3 - Mas deixemos por agora os textos bíblicos, e entremos no
caso curioso de um pequeno segmento das Antiguidades
de Josefo – fonte pagã portanto e aparecida em 84 pc -, onde se fazem
referências a esse Jesus, também chamado o Cristo. Neste segmento, citado parcialmente
por Aslan, conta-se que Anás, sumo sacerdote, “condenou ilegalmente um certo Tiago, o irmão de Jesus, aquele a quem
chamam messias, a apedrejamento por transgressão da lei”. A este segmento textual
de Josefo, Aslan chama-lhe “um breve texto sem ênfase”, e sobre a pequena frase
aquele a quem chamam messias,
referida a Jesus, diz que, para além de ser “fugaz e desdenhosa”, ela “pretende
claramente exprimir escárnio”, em relação a essa figura (p.23).
Se se trata da mesma passagem – não haverá mais nenhum
parágrafo sobre Jesus na obra de Josefo – mais avisada e cuidadosa deve ser a
maneira como Sanders, no seu livro A
Verdadeira História de Jesus, trata todo o segmento textual de Josefo,
vendo nele a intervenção de copistas cristãos. Cá estamos a ver de novo – agora
num texto laico – a existência dos dois estratos: o da história, o mais antigo,
e, sobreposto, o da fé dos copistas. Quer dizer, inicialmente, a obra era um
texto puramente histórico e pagão, mas depois, quando se tratou de fazer
(novas) cópias dela, os copistas, neste caso cristãos, não se coibiram de aí inserir
aditamentos por conta da sua fé, procedimento que, por uma razão ou outra, foi
comum durante muitos séculos nos escritórios dos copistas.
Eis como Sanders - sem esquecer que a nítida separação dos
dois estratos é muitas vezes difícil - apresenta o segmento textual em apreço,
vindo em itálico as intervenções de fé dos copistas: “Foi por essa altura que viveu
Jesus, um homem sábio se é que lhe
devemos chamar homem. Ele fez obras extraordinárias e era o mestre das
pessoas que aceitavam os seus ensinamentos como verdadeiros. Conquistou muitos
judeus e gregos. Era o Messias. Quando Pilatos o condenou à
morte na cruz, depois de ter ouvido as acusações que lhe faziam os mais
ilustres entre nós, aqueles que lhe tinham entregue o seu coração não abdicaram
da sua afeição por ele. Apareceu-lhes ao
terceiro dia ressuscitado, pois os profetas de Deus assim o tinham anunciado,
bem como outras maravilhas acerca dele. E o grupo dos cristãos, assim
designados por causa dele, não desapareceu até aos dias de hoje” (p. 77).
4 - A fé no divino (neste caso em Cristo) está de tal modo
entranhada no tecido da cultura ocidental que, até para falarmos do tempo, do
transcurso da história, utilizamos um elemento de fé: séc. II ac e séc. IV pc,
ou também, como no livro de Aslan, séc. II a.e.c. e séc. IV e.c. Mas, se o
tempo é só a medida do movimento e das mudanças dos seres – dos seres que se
movem e mudam ou são movidos e mudados – então, o tempo (e também o movimento)
não existe realmente, mas tão só existem todos os seres que se movem e mudam,
ou são movidos ou mudados. E então, se for assim, o tempo é simplesmente a
medida que inventámos para medir o movimento e as mudanças dos seres. Assim, o
tempo será uma simples entidade abstracta e subjectiva que, enquanto tal, não
existe realmente. Porque o que realmente existe são os seres concretos a
moverem-se e a mudarem.
Ao impregnar o tempo da história, a fé em Cristo, enquanto
fé, não traz nem pode trazer qualquer objectividade ao tempo, porque também ela
é subjectiva. O que poderá trazer-lhe, mesmo assim, é profundidade ou
densidade, mas isto só para o caso dos que acreditam que o Cristo é mesmo uma
realidade divina.
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