sexta-feira, 31 de maio de 2013

157.6/7 -


6
O Mapa para a Vida

Logo depois de ter falado do “arborescente e inequívoco desejo de durar”, o nosso poeta autor vai concluir o seu texto com uma citação das memórias de Raul Brandão, esse escritor místico, escritor do sonho numa natureza penetrada de alma. Citação esta que, no entender do nosso poeta escritor, constitui “um arranque prodigioso” que nos pode servir “de mapa” para guiar as nossas vidas.
“Se tivesse de recomeçar a vida” – diz o citado Brandão – “recomeçava-a com os mesmos erros e paixões”, como são, logo à cabeça, ele “perder outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído”.
E agora, as perguntas: Como é que é possível as pessoas guiarem a sua vida por um mapa de “erros e paixões”, por sonhos? Sobretudo por um “sonho”, sonho já velho e gasto pelo tempo, que é o sonho do eterno? Não valeria mais deixar-nos guiar pelo mapa de Pessoa e de Einstein? De onde deriva, para o eterno, mesmo assentando assim em erros e paixões, o seu fascínio, a sua sedução, o seu poder encantatório? Não é da mesma fonte que deriva, para o texto de Mendonça, ele ser também encantatório e, de algum modo, sedutor? É por tudo isto que o ser humano é muito mais paixões do que razão, a tal ponto que deixamos que aquelas nos induzam em erros! E no entanto, definimo-nos como seres racionais! Ou será que nós evoluímos demasiado, devendo limitar-nos a ser só paixões?
A propósito de um outro trabalho de Tolentino Mendonça, precisamente sobre a amizade, Gonçalo M. Tavares tem palavras certeiras para fazer a sua apreciação: “Avança-se sobre os temas” – diz ele – “numa espécie de voo de balão de ar quente”. Pois, é mesmo isso! E assim avançando, acalorados e amolecidos pelo enclausurado ar quente e ainda pela quentura de uma encantatória aventura, lá no ar, talvez em nuvens, longe do mundo, como poderemos notar a fria nitidez das coisas, a nitidez das terrenas realidades?
7
Conclusão

Considerando então, finalmente,
que as nuvens que os poetas armam no ar são só válidas para nós se as pudermos desmontar e tornar compreensíveis, para o que é preciso, de algum modo, elas estarem presas a experienciáveis realidades terrenas;
que, logo desde o início do texto em apreço e por acção dos dois intervenientes, se modaliza o discurso ao falar-se da fé das árvores – um, “meio a sorrir”, dizendo que “elas acreditam”, e ao outro, ao poeta autor lhe parecendo o mesmo – assim se instalando uma nuvem de falta de clareza, que se estende a todo o texto;
que é necessário estabelecer-se uma nítida distinção entre fé natural e fé sobrenatural ou religiosa, mas que, neste texto, isso não só não acontece mas até se joga nessa ambiguidade de nuvem indistinta;
que o “inequívoco desejo de durar” leva logo a uma inequívoca nuvem, porque um desejo, por mais inequívoco que seja, nem sempre é realizável, nem sempre pode levar à correspondente e inequívoca realidade desejada;
que o poeta autor também vê nuvens onde as coisas são realmente claras, como é o caso natural de cada um ver o mundo à sua própria maneira, e portanto cada um ter o seu mundo;
que, ao não dizer que “íntimos enigmas” se guardam nas coisas, o poeta autor está a fazer deles e delas um denso banco de nuvens;
que, em vez de guiar a vida pela clara verdade, que só a razão lhe pode dar, ele pretende guiá-la por sonhos, por desejos, por erros e paixões, afinal, tudo nuvens de ambiguidades e até talvez de ilusões;
considerando tudo isto, e até mais se mais esmiuçássemos o texto, teremos de concluir que se confirma a hipótese que deixámos em epígrafe, agora aplicada a este caso concreto. De facto, em alguns destes textos de Tolentino Mendonça intitulados “Que coisa são as nuvens”, além de serem muito belos e talvez até um tanto por isso, tecem-se nuvens que escondem ambiguidades e até porventura ilusões.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

157.5 -


5
A natureza não tem dentro

Consideremos agora, mais de perto, alguns passos importantes do texto em referência, para sua análise e apreciação. Assim, tomemos primeiro o caso de Fernando Pessoa (Caeiro), em relação ao qual e àquilo de ele dizer que a “Natureza não tem dentro”, o nosso poeta autor se divide, para logo, todo inteiro, contestar: então, “A natureza não tem dentro”?
Claro que não tem dentro, dizemos nós também. As coisas não têm dentro porque não são consciência, muito embora nem por isso deixem de ser a “espantosa realidade”, da qual nós somos consciência. Nós não somos mais nem menos do que as coisas, está Pessoa a dizer. Somos é diferentes: enquanto nós somos consciência, e não coisas, estas são só coisas e não consciência. Muito embora, infelizmente, no nosso caso humano – como ainda nota Pessoa –, para além de sermos consciência, só consciência, nós carreguemos nela, habitualmente, muitos novelos de ideias e ideologias, muitas subjectividades escusadas sobre nós e sobre as coisas, pois que devíamos ser limpa consciência, sem eu mental, sempre prontos para olharmos virginalmente as coisas, como se fosse a primeira vez e como são, sem esse manto de subjectividade com que as costumamos cobrir (ver textos 42 e 76). Pois que, a “espantosa realidade das coisas” – incluído ele mesmo enquanto ser sensível que os sentidos lhe trazem – é a sua “descoberta de todos os dias”. O mundo das coisas é, para si, realmente espantoso, realmente fascinante: “só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”.
E então, o que é que será mais empolgante para o ser humano, no meio da natureza: é essa “espantosa realidade das cousas”, nossa possível “descoberta de todos os dias” e ainda o considerar que “vale a pena ter nascido só para ouvir passar o vento”, como pensam também Einstein e ainda M. Gleiser (com a sua Criação Imperfeita), ou saber que todos os seres da natureza têm um dentro, “um íntimo secreto, um íntimo enigma”, como pensa Tolentino? Carecerão aqueles da gramática deste, que até lhe fala de anjos, para os tirar da solidão?
Que “íntimo enigma” será esse, para além de ser um denso banco de nuvens? Ou ele é - não sendo com certeza nada experienciável e científico a descobrir - simplesmente um manto de subjectividade com que o poeta autor cobre as coisas, assim as fazendo, para além de coisas, que já são, coisas-criaturas de Deus?
Como podem as árvores partilhar connosco “testemunhos, espantos e sobressaltos”, sobretudo esse “vegetal sobressalto”, que é o “inequívoco desejo de durar”? Só se as animarmos com a nossa subjectividade, as fizermos sentir como sentimos, e com consciência como nós. Mas como o poeta exclui o animismo …
Mas há aqui um pormenor muito importante, no que toca à tal partilha – como propõe Tolentino –, à partilha do “inequívoco desejo de durar”: elas querem durar, e durar queremos nós também. Mas que partilha solidária é essa, oh céus, se elas, as árvores, mesmo com esse desejo, se o tivessem, irão mesmo e finalmente morrer, mas nós, delas às escondidinhas, porfiamos em vencer a morte e ser imortais! Não haverá nisto uma dosezinha de descaramento e desplante?

quarta-feira, 29 de maio de 2013

157.4 -


4
Fé Natural e Fé Sobrenatural

Havemos de analisar e apreciar alguns passos importantes deste texto A Fé das Árvores, mas antes, para não cairmos em obscuras nuvens de ilusões, convém estabelecermos bem a distinção entre duas realidades, ou, pelo menos, entre os seus respectivos conceitos.
Há a assim chamada natural, e há ainda a assim chamada sobrenatural. Quem assim as chama, está claro, é o ser humano. Então, natural, também chamada confiança natural, é a que a própria natureza concede aos seres vivos que do seu seio nascem, segundo as capacidades de cada um deles. Quanto à (ou confiança) sobrenatural, só se fala dela em contexto religioso e só os humanos podem receber esse dom. Receber esse dom porque – segundo dizem os crentes – ele não é dado pela natureza mas é um especial dom de Deus. É sobrenatural o acto de fé, enquanto tal, e também são sobrenaturais os conteúdos a acreditar: que existe um Deus pessoal criador e salvador dos homens, a eles oferecendo, a cada um, uma vida muito feliz para além da morte.
Mas quem fala de fé (ou confiança) só pode ser quem possui palavras e conceitos e tem consciência de si próprio e dos possíveis objectos por aqueles e aquelas representados. Portanto seres imaginativos, pensantes e conscientes. É certo que as plantas e os simples animais, como seres vivos que são, também sentem à sua maneira as mudanças que se vão operando nos seus corpos (provocando, por exemplo, aquele “sobressalto” de Primavera), mas só o ser humano as pensa, as conhece, as verbaliza e delas tem consciência.
Para que a nossa fé ou confiança na natureza e na vida possa ser possível, é preciso que haja, na mesma natureza, não mais que um deus imanente, essa ínsita dinâmica natural que dirige e determina, em grande parte, a evolução. Esse é o deus de Einstein. É esse deus que organiza os espaços no universo, e que aqui produz e transforma as pedras, dá e guia a vida das plantas e dos animais e, em grandíssima parte, também a nossa vida. Por isto é que a mamã recente não tem receio de que o seu bebé não aprenda a comer e a rir e a falar, e, também por isto, nas grandes aflições da vida, nós confiamos que esses problemas se hão-de resolver.
Esta é a nossa fé natural, fé nesse deus natural ou imanente à natureza. E, como já sugerimos, Einstein, por exemplo, não aceita o Deus pessoal bíblico criador e salvador. Não precisa dele para se entender e explicar a si mesmo e ao universo.
Porque é que os crentes acreditam num Deus pessoal e criador? Não será porque desejam, porque querem, porque precisam de um deus salvador? Se não desejassem-quisessem-precisassem dele, como salvador, importar-se-iam com o Deus criador? No limite, a essa divina entidade, a existir, eles não seriam indiferentes?

terça-feira, 28 de maio de 2013

157.3 -


3
A Fé das Árvores

Entremos agora em A Fé das Árvores, um dos tais belos textos dessa coluna Que Coisa são as Nuvens, saído a lume nos princípios desta Primavera (Expresso de 13-4-13, Revista, p. 8). Entremos nesse texto – vai ser nele que incidiremos especialmente a atenção - , olhando para o que julgamos ser aí mais relevante.
No início desta Primavera, dois amigos encontram-se num parque: o encenador J. Silva Melo e o nosso poeta autor. E logo, apontando para um renque de árvores do parque, o encenador, “meio a sorrir”, diz ao poeta: “Elas acreditam”. É claro que este, depois de olhar para cores e alturas e para os renovados renovos vegetais, logo confirma que, também a si, lhe parece que “elas acreditam”.
Logo depois, aludindo a que desconhece o “que progride ou se cala ou renasce no coração das criaturas”, o poeta autor confessa-se “dividido a escutar o racionalismo de Fernando Pessoa (Caeiro) que diz que ““a Natureza não tem dentro; Senão não era a Natureza””. Confessa-se dividido, mas logo, afinal, falando de interiores secretos e íntimos enigmas das coisas, contesta todo inteiro esse tal racionalismo: “A natureza não tem dentro? (…) Valerá apenas o que vemos? E vemos todos da mesma maneira”?
Agora, o poeta autor alude a um passeio pela cidade de Paris juntamente com outros portugueses, entre os quais figurava Mário Cesariny. E conta que este protagonizou uma cena que o deixou “sem palavras”: Cesariny saiu repentinamente do carro e correu “a abraçar uma árvore”. Ele não correu propriamente “a abraçar-se a uma árvore” – o nosso poeta autor faz questão de fazer notar a diferença - , mas correu “a abraçar uma árvore”.
Faz então o nosso autor uma breve digressão sobre as “dimensões simbólicas e espirituais escondidas nas palavras” – domínio de estudo delicioso para si -,  e conclui que, no hebraico bíblico, a palavra que diz “árvore” pode ter ligações com a palavra que diz “anjo”. “Que se colhe daqui”? – pergunta ele, para logo responder: “Que porventura teremos de reinventar uma gramática que nos arranque da solidão com que atravessamos a vida”.
E depois de dizer que, de nenhum modo, pretende recuperar o animismo, adianta logo que o mais importante é percebermos que “estamos juntos”: que “nós humanos testemunhamos (…) às outras criaturas e elas fazem-no de igual modo”; que “ a vida é um espanto partilhado”; que não nos deve ser indiferente “a mensagem do vegetal sobressalto, do arborescente e inequívoco desejo de durar” (sublinhado nosso).
O texto termina com a citação de uma bela passagem de Raul Brandão que, no princípio das suas memórias, escreve: “Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões (…) perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto … Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra”.

domingo, 26 de maio de 2013

157.2 - Sobre se as Nuvens Podem Esconder Ilusões


2
As Nuvens dos Poetas

Em sentido estritamente denotativo, que é o sentido terreno, sensível e logo visível, as expressões “Da minha língua vê-se o mar” e “O Rapaz de Bronze” não colhem qualquer sentido. E é na vertigem desse não-sentido que elas podem ganhar sentidos, sentidos aéreos, poéticos. Mas estes sentidos conotativos ou poéticos só nos são possíveis, se as palavras continuarem presas à denotação, ligadas aos seus (agora impossíveis) sentidos primeiros ou terrenos e às correspondentes realidades apresentadas.
Dito o mesmo mas de modo um tanto diverso: Quando eu digo “Da minha janela vê-se o mar”, toda a gente entende, passa-se facilmente do material significante para o mental significado: não há falha de sentido, tudo é claro, não há nuvens, o céu está limpo. Lá, nesse sítio, onde está a janela, vê-se logo se esta frase está errada, ou certa, em relação à referida realidade. Mas quando Vergílio diz “Da minha língua vê-se o mar”, já é diferente: parece haver falha de sentido entre o significante e o significado; as coisas não estão claras, há nuvens no céu. Há nuvens porque há metáforas, essas pontes que os poetas inventam, entre o sensível da terra e o aéreo do céu, para mostrarem o sublime, e que carecem de ser interpretadas.
A questão agora está em saber se todas estas nuvens estão ligadas à terra, se todas têm suporte em objectividades terrenas. Porque, se não têm ou pelo menos não o encontramos, elas não têm sentido para nós, elas são nuvens de ilusões que logo um vento leve levará.
E agora, uma pergunta: não será sempre e só na nitidez de um céu limpo que o viajante de Sophia poderá descobrir as preciosas minudências da vida? Será que carecemos de nuvens para vermos o ouro que existe nos detalhes da vida, ou, além da luz e do céu limpo, carecemos antes de atenção, de demora e, sobremaneira, de disponibilidade interior e esvaziamento mental?
A cada poeta, com certeza, cabe a sua porção de nuvens – já o poeta Ruy Belo também dizia. E são surpreendentemente belas, muitas vezes, as metáforas dos poetas. Mas só subiremos a essa gostosa surpresa de sentidos, quando de algum modo as desanuviarmos e as tornarmos claras para nós; quando as desmontarmos a partir da respectiva denotação – sempre nítida e clara denotação –, nelas agora descobrindo fundamentados e muito belos sentidos.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

157 - Sobre se as Nuvens Podem Esconder Ilusões


1
Introdução

Olá, amigas e amigos! Tem-se andado à procura de saber “que coisa são as nuvens”. Ora, tentando nós tal descoberta e responder a esta pergunta, teceremos aqui várias considerações, mas todas elas convergindo para confirmar a nossa hipótese de resposta, que, também em forma de pergunta, já adiantamos para título geral deste trabalho.
Aliás, se bem repararmos, esta nossa hipótese corre, em fundo, muitos textos deste blog, começando logo pelo primeiro, em que se fala de um tal pensador Abelardo.
Se se confirmar esta nossa hipótese de que as nuvens podem ser esconderijo onde metemos e guardamos as nossas ilusões, então, de forma jocosa mas também amiga, poderemos proclamar “Abaixo os Nefelibatas, pim”, assim adequando a este nosso caso aquilo que o Negreiros disse do seu Dantas.
Dito de outra, mas semelhante maneira: Em “Que coisa são as nuvens” - uma coluna produzida para o Expresso e da autoria do padre e poeta Tolentino Mendonça -, há textos muito belos. Mas o que agora precisamos de saber é se todos eles, para além da beleza, têm sempre raízes que os agarrem à terra, se têm seguro fundamento racional, ou se, por vezes e pelo contrário, eles mais parecem jardins muito belos mas suspensos no ar, mais parecem nuvens de encantamento e talvez até de algumas ilusões.   

quarta-feira, 22 de maio de 2013

156 - O Ribeiro da minha Aldeia


Há um ribeiro a correr na minha aldeia
e quando corre o ribeiro da minha aldeia
eu sento-me numa das suas margens
ora de uma ora de outra
sobre a erva
a beber o murmúrio das águas
e a ver beber, das águas,
das frondes descendo dos freixos
as borboletas e os besouros
elas e eles não tendo boca eu sei
mas bebendo
como também os pássaros bebem
encostando à múrmura linfa os bicos
Mas quando não corre o ribeiro da minha aldeia
não podendo eu então beber do murmúrio das águas
há só lá no fundo um leito um sulco seco
ora areento ora lascado de lodo
não me sentando eu nessas estéreis margens
de um não ribeiro
Mas quando buliçoso o ribeiro corre
na estação dos abrolhos e das folhagens
ou no princípio do verão
e tudo por aí e em suas cercanias
regurgita de vida
pelo chão e pelo ar
então é que eu me sento nessas margens
bebendo do murmúrio das águas
de um múrmuro ribeiro
que só corre dentro de mim

sábado, 18 de maio de 2013

155 - A Têmpera do Amor


Não é a dor
mas sim o amor
que salva

Também não há
 sublime amor
sem dor

A dor é calo
a temperar
a alma
o amor

O amor sublime
é dar a vida
ou ir dando
por amor
na dor



(Este poema é irmão dos poemas sob os números 147 e 154, pelo que convém compará-los e vê-los em conjunto)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

154 - O Outro Nome do Prazer


Queremos na vida o prazer
sempre fugindo da dor
mas há dores a sofrer
por um que seja maior

O prazer mais sublime
- dar a vida por amor
na dor -
perde o nome de prazer
ganha o nome bem maior
de
paz



Este poema complementa o poema 147, pelo que devem aproximar-se um do outro.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

153.3 e 4 - Duas Tradições Culturais


3 - Menino judeu nascido de uma família judaica alentejana emigrada para Amesterdão, Bento Espinosa criou um sistema de pensamento muito singular.
Para ele, em sentido estrito, por ser causa de si própria, só há no Universo uma verdadeira substância, que é a substância divina. Mas, como esta se constitui de pensamento mas também de extensão, conclui-se que, afinal … também a Natureza é Deus! Ela, a Natureza - da qual todos os outros seres fazem parte, como nós, todos seres essencialmente extensos e corpóreos -, ela é o lado extenso e material de Deus. Tudo o que existe … existe em Deus.
Assim, já está a ver-se como, dentro deste sistema de pensamento, era difícil para o autor explicar a individualidade dos seres criados do mundo, extensos e materiais. Mas, ainda assim, explicava! Dizia que todos eles (sobretudo os animais) se esforçam por afirmar e manter a sua individualidade, fugindo dos perigos e sempre defendo a sua vida até poderem. E que, no nosso caso humano, não só se tenta a individualidade física, mas também a mental, pela afirmação individual do eu de cada um.
Explicava, mas insistia no cerne da sua doutrina. Vistas as coisas de uma forma profunda e como que fora do tempo, tudo o que existe no mundo, no Universo, existe em Deus, e assim deverá permanecer. O que terá implícito, acrescentamos agora, o apagamento final do eu mental individual na substância divina. Parece assim que, com estas explicações, Espinosa estará mais perto do budismo do que da mundividência cristã institucionalizada.

4 - O próprio Jesus, que foi posto por Paulo no centro do cristianismo (ver texto 40), quando ensina por exemplo que “quem perder a vida, ganhá-la-á”, para que lado está a pender? Para a tradição cultural ocidental, que o segue como exemplo, ou para a tradição oriental?
Nos seus inolvidáveis Caracteres ou retratos, em que, com fina observação e aprofundada reflexão, fixa o que em assuntos de moralidade há de pior e de melhor na Humanidade, Jean de La Bruyère (1645-96) desenha o retrato do homem bom: “É bom quem faz bem aos outros. Mas, se sofre em virtude do bem que faz, é muito bom. E se sofre daqueles a quem faz bem, ele tem uma tão grande bondade que não poderá ser aumentada a não ser no caso em que tais sofrimentos aumentarem. Finalmente, se morrer de tudo isso, sua virtude não poderia ir mais longe: ela é heróica, ela é perfeita”.
Será este o caso de Jesus? Quando La Bruyère lançou os traços deste retrato, teria, além de outros (muito poucos) exemplos, o caso especial do Nazareno? Embora laico, ou pelo menos leigo, sabemos que La Bruyère participou em encontros culturais sobre a Bíblia, promovidos por Bossuet. E então, àquela última pergunta, nós podemos responder admitindo como provável que, ao desenhar o tipo de “homem bom”, o retrato terá tido em fundo, na mente do observador, a figura de Jesus.
Amor e compaixão são semelhantes. E já vimos como, na cultura oriental, a compaixão é o melhor caminho para apagar o eu mental e a individualidade, assim se entrando na unidade do Uno e do Real (texto 138). Quem ama ou tem compaixão em relação a alguém … perde-se nesse alguém. Perde-se, isto é, uma nova vida, vida conjunta, nascerá e será ganha.

terça-feira, 14 de maio de 2013

153. 1 e 2 - Duas Tradições Culturais



1 – Olá, amigas e amigos! Qualquer bicho tenta defender-se dos perigos, tenta preservar da morte – o último e mais grave dos perigos – a sua vida. Ora, o ser humano, em termos biológico-instintivos, ou seja, em termos da necessária mãe Natureza, é como qualquer outro bicho, seguindo o sulco da necessidade que ela lhe impõe. Mas, em termos culturais, em razão da sua vida mental e sobretudo da liberdade, as coisas não são assim tão simples.
É claro que, também a este nível mental e cultural, o ser humano anseia por preservar a sua vida, por dar-lhe mais qualidade, e até por vencer a morte se possível, ganhando uma vida boa e sem fim. O sempre revigorado gosto de viver é que lhe alimenta a vida. Só que, a este nível, há uma grande variedade de modos de preservar e aperfeiçoar a vida. Veja-se como, além de haver uma cultura ocidental bem distinta de uma oriental, cada ser humano deverá traçar e percorrer, em liberdade, o seu próprio e inconfundível caminho. Acresce ainda que, por desenvolver a sua subjectividade e não ser só objectividade, a Humanidade, com a sua cultura, poderá vencer alguns constrangimentos impostos pela necessidade natural.

2 - Para a cultura ocidental, é essencial o ser humano, além de tentar preservar a vida, promover o desenvolvimento do seu eu mental, a sua individualidade e personalidade, e ainda, para os crentes, aspirar à vida individual para além da morte. Porque, quase simetricamente, e em alteridade, a mesma tradição tem afirmado a existência de um Tu divino, um Deus pessoal que sirva de e seja mesmo o criador e salvador do ser humano.
Para a cultura tradicional oriental, porém (texto 138), as coisas são diversas. Porque, para ela, tentar preservar ou manter-se nesta vida é fomentar novos nascimentos ou reincarnações, somando assim muito mais tempo a penar neste mundo de aparências; ainda porque fomentar o eu mental e a consequente individualidade, em vez de os ir esfumando, é desligar-se cada vez mais do Uno e do Essencial.

sábado, 11 de maio de 2013

152 - A não Vã Glória do Ouro


A não Vã Glória do Ouro
ou
As Lágrimas de Zeus

Desde o poente aos pirinéus
e do setentrião ao sul,
por estas terras hispanas,
fogo da terra e dos céus
por planícies e montanhas
brilha belo o cardo de ouro

Coroai-vos de ouro em flores,
povos das nações do norte,
decisores do sul também,
tecei para vós grinaldas
não de louros mas de cardos,
coroai-vos e até sentai-vos
em fofos tufos do sul
deste matagal florido!

Aos vergéis de viço e belos
junto ao colmo dos casais
não lhes toqueis, são sagrados,
sagrados e protegidos
pelos domésticos deuses:
até os lobos e os ursos
ao lá chegarem famintos
ajoelham e regressam
para seus fojos, sem presas

Sobe ao céu Zeus no seu carro
e lá do alto, na luz,
olha a divina beleza
dos cardos de ouro terrenos,
maravilha de ouro puro,
mas também sente tristeza
por desavindos irmãos
filhos seus e de Europa
nunca queiram entender-se

Zeus olha e sente saudades,
olha e chora por esta terra:
lágrimas saudosas de Zeus,
de alegria e também pena,
orvalho de primavera

domingo, 5 de maio de 2013

151 - A Maminha da Mamã


O pensador é contra o empirismo puro
(tábua rasa somos ao nascer
na qual nada ainda está escrito;
só podemos conhecer o que a experiência nos der)
com os seus conceitos “a priori”
(de substância objecto causalidade espaço tempo)

Mas também é contra o puro racionalismo
(fundado só em ideias fora e ultrapassando a experiência)
com a valorização do objectivo mundo experimental

A um bebé de dois meses
porém
sem ideias inatas nem conceitos “a priori”
nem concepções transcendentais
só interessa a maminha da mãe
sabor gosto satisfação primordial
depois muitos outros sabores
 para o corpo e para a mente
sempre sabores da terra e desta vida mortal

Só lhe interessa o leite
não a palavra ou mesmo o conceito
de leite
mas a coisa coisa que é
leite mesmo