Olá! Ocorre
hoje, aqui em Carapelhos (Mira), na sede da Confraria Nabos e Companhia, uma laica celebração da palavra. Houve a feliz
iniciativa de organizar e publicar uma antologia de textos produzidos por
ficcionistas gandareses, e agora leva-se a efeito o lançamento dessa obra ao
público, o qual acorreu em grande número, sublinhando assim a importância que
para si tem o evento.
1 - Está ali,
no meio da assembleia, uma mamã recente com o seu bebé ao colo, aconchegado ao
lado esquerdo do seu peito. Ele ainda sentirá desse lado a fala antiga do
coração materno, uma fala que ele conhece e reconhece muito bem, que sempre lhe
fez companhia e lhe deu a necessária segurança, e ainda agora o põe mais
sossegado do que em qualquer outro lugar.
Mas não é
dessa fala que ora vamos falar. O bebé terá de se integrar na comunidade dos
seres humanos, e só geralmente através das palavras, que tem uma face
significante e sensível e outra significada e abstracta, ele se poderá ir
constituindo como pleno ser humano. A primeira face das palavras, seja no texto
oral ou no escrito, pertence ao domínio do sensível, é objecto material para
estimular os sentidos, mas a segunda face é abstracta, é conceptual, e portanto
cada um de nós tem de a ir concebendo e moldando na sua mente, embora
confrontando sempre com os seus iguais o produto desse íntimo labor.
Por isto é que
aquela querida mamã poderia estar ansiosa em relação ao futuro mais ou menos
próximo do rebento que tem reclinado ao seu peito. Começará ele, já por estes
dias, a articular os sons da palavra “mamã”, e a associá-los àquele imenso
mundo de afecto que tão bem sente e conhece, agora já concretizado no vulto que
ora o estreita ao coração ora está perante si ou o embala nos seus braços? Irá
ele sabendo ligar, a cada palavra concreta que vai ouvindo, o significado ou
significados que os seus familiares e outros lhe atribuem, e depois ligá-los ás
suas correspondentes realidades? Que se irá passar quando ele descobrir os sons
da palavrinha “Eu”, tão pequenina mas também tão prenhe de possíveis
significados? Será que, como acontece com quase todas as crianças, ele a irá descobrir
por volta dos três anitos, e depois nunca mais, pelo menos nos primeiros tempos
após a descoberta, a deixará de proferir insistentemente? Que amplitude de
significados irá dando ele a essa correspondente abstracção, aplicada a si
próprio ao longo da sua vida? Os sons da palavra “Liberdade” remetê-lo-ão, através
da abstracção que é o respectivo conceito, para algo de realmente concreto na
sua vida, ou a liberdade permanecerá para ele só puro conceito, fumo leve que a
aragem logo leva, e portanto sem consistência de realidade? Como ressoarão no
seu íntimo os sons da palavra “Morte”? Será a significada realidade cruelmente
vivenciada pelo precoce passamento de algum dos seus familiares, ou será ela
uma realidade branca, a aceitar em todo o caso sem ressentimentos nem temores,
como expressão última da ordenada harmonia do Universo?
Poderia estar
ansiosa a mamã, em relação ao futuro do seu bebé, mas não está! Ela só teria
razões de sobra para estar ansiosa, se não confiasse na Natureza; se não
tivesse fé nas capacidades da criança para aprender (ver textos 17.3 e 25); se
não contasse com o espanto que há-de vir e a curiosidade dela face ao novo, que
ela irá receber tão avidamente como pano seco em contacto com a água.
Curiosidade e espanto pelas incontáveis realidades do mundo que a envolvem e
constituem, logo querendo associar a cada uma delas a palavra que a sua falante
comunidade usa para a nomear.
2 - Quando o Sócrates
de Atenas descobriu os conceitos, que estavam do lado de lá dos sons das
palavras, muita gente mofou dele! Houve até um malandreco comediógrafo seu
contemporâneo que injustamente o figurou em palco no ar, no braço levantado de
uma grua, como se estivesse dizendo à assembleia que o filósofo andava na lua,
ou melhor, nas “Nuvens”, em vez de trazer os pés bem assentes na terra.
Injustamente
acusado, sim, porque, se os conceitos nada são de real e terreno a não serem
conceitos, e portanto algo só mental ou abstracto e de alguma forma aéreo, eles
são abstracções que fazemos a partir de realidades mundanas, mas para depois os
fazermos descer e aplicar a realidades do mundo. São como papagaios de papel
que adejam no ar, mas fabricados na terra e presos às realidades da terra, e
por isso também terrenos.
Ao contrário
desse Sócrates, quem pôs os conceitos no ar e no céu e lhes deu consistência de
realidades do hiperurânio foi o seu discípulo Platão, que os tornou ideias arquétipo,
mesmo reais, de todas as entidades que nos aparecem, que são as realidades
mundanas. Para este, as verdadeiras realidades são as luminosas ideias ou
conceitos, porque o resto, o mundano, é só sombras e aparências.
Felizmente,
Aristóteles, por sua vez discípulo de Platão, não seguiu a esteira do seu
mestre, pois voltou às verdadeiras realidades mundanas, ao nosso mundo das
coisas (ver texto 21).
Veio muito
mais tarde Abelardo, de novo protestando que os conceitos eram puras
abstracções e não tinham consistência real, fora do nosso mundo. Foi um
protesto que ele chegou mesmo a fazer à frente de um convento, cujo prior-mor
tinha opinião contrária, e que depois foi santo (texto 1). É tudo isto uma
questão que ainda não está definitivamente resolvida. Porém, o mais provável
será que haja simplesmente esta nossa realidade mundana, sendo todas as
abstracções, que são os conceitos ou significados das palavras, parte desta
nossa mundana realidade, mas só enquanto abstracções que são.
3 - Celebramos
então a festa das palavras. Palavras feitas de significantes e significados; de
sons ou letras a anunciar conceitos; palavras feitas de terra mas também etéreas;
agarradas à pedra do chão mas também esvoaçando ao vento no diáfano ar, como
papagaios de criança. Afinal, palavras por nós fabricadas de barro e espírito,
à nossa imagem e semelhança.
Ouve-se o
repousante rumor do vento nas cristas dos pinheiros da Gândara; a sonante brisa
nos canaviais de Pan, sobre os cabeços dos córregos; ouve-se ainda o domado
vento na linguagem das aves e de outros animais; enfim ouve-se o artefacto da
palavra humana, pelo Homem inventada e produzida, feita símbolo não só para
comunicarmos entre nós no dia-a-dia, mas também para fazermos arte, como é o
caso da obra literária, com seus mundos imaginários e belos.
Palavras
frágeis, é certo, como frágeis nós somos! Mas, ainda assim, palavras com as
quais podemos crescer e nos irmos humanizando, tomando posse delas e usufruindo
do seu recheio. Palavras também que, ao contrário, nos podem distrair e até pôr
receosos pelo enorme séquito de pensamentos e ideologias que arrastam consigo e
nos entulham e perturbam a alma … Porque o melhor de tudo para nós …ainda é o
silêncio!
Laica
celebração é esta, ou ela é a celebração realmente mais sagrada que todos os
humanos podem fazer?