sábado, 29 de dezembro de 2012

121 - Imparidades



De um só jornal de 22-12-12,
ao invés de mais ondas deste mar solidário,
o cidadão anónimo, generoso e inocente
ficou a saber:

Afronta-se a família,
berço de gerações solidárias,
pondo novos contra idosos
que seguraram com o Estado a sua velhice

500 grandes clientes do BPN deixaram de pagar,
monstro que não pára de engordar;
só lá para 2020 nos veremos
livres dessa chaga. Veremos mesmo?

E mais e mais ficou ele a saber

Não caia a sua alma … na latrina

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

120 - Transcenda-se



Olá, amigas e amigos! Cada um de nós tem o seu mundo, mas o mundo de cada um deve estar continuamente a expandir-se, sempre em virtude de um renovado olhar cada vez mais generoso. Assim, partindo da sua inércia (que é vida sem arte) ou feia (não áurea) mediocridade, abre-se à transcendência:

         1 – Aquele(a) que, sentindo-se a olhar de forma mesquinha e egoísta o seu caso, é capaz de abrir perspectivas mais largas;
         2 – Aquele que, tendo consciência de que é cinza, logo acrescenta que é cinza de estrelas;
         3 – Aquele que sabe que os seus pensamentos são meras subjectividades, mas também que “quando chega a sua hora, ninguém vence a força de uma ideia”;
         4 – Aquele que aproveita uma pequena leitura ou uma conversa breve para alargar horizontes e poder dizer: “Olha, nunca tinha pensado nisto!”;
         5 – Aquele que vê uma pessoa necessitada mas ainda assim a ser generosa, muito mais do que ele costuma ser;
         6 – Aquele que acredita num mundo de transcendência divina, ou, não acreditando, abre a sua pequenez à transcendência do Universo;
         7 – Aquele que, muito embora já tenha alcançado vários níveis de transcendência, sabe que ainda há muitos mais a que subir;  
         8 – Quem se empolga com um belo livro, uma pintura, um filme, uma escultura, uma peça de música; se encanta enfim com a beleza pura, que nos torna grandes e bons;
         9 – Quem se inebria com a imensidão do mar e a imponência da montanha, que nos enchem a nossa pequenez e nos quebram os seus limites;
         10 – Quem, no meio do imensamente grande ou pequeno, sabe encontrar a grandeza da sua pequenez;
         11 – Quem vence a encarniçada resistência de preconceitos, muitas vezes mais custosa do que mover montanhas;
         12 – Aquele que, muito embora se empertigando como Job, sabe depois pôr-se no seu devido lugar de quase insignificância cósmica;
         13 – Aquele que, perante uma aporia da vida, uma dificuldade intransponível, dá um passo atrás para reflectir, a fim de contornar a situação e vencer;
         14 – Quem sabe que a transcendência também é transcender a importância egoica do seu caso, reduzindo as suas aspirações só àquilo que é possível;
         15 – Aquele que cultiva a sua exacta medida no grande universo, em vez de se entregar a miragens ilusórias.      
16 – Aquele que vê, no deserto e na privação, o lado de fora da libertação e da transcendência.
17 – Aquele que ama a sabedoria, não se cansando de subir essa montanha sagrada.
         …

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

119 - Natal


Enquanto uns muito poucos
vivem no paraíso
em paraíso fiscal
outros muitos vivem mal
por viverem no aperto
de um inferno fiscal

Bom é que o burro e a vaquinha
remoendo a palha ardida
possam os dois contemplar
o milagre da vida!
Como os do inferno fiscal
eles suportam muito bem
o mau cheiro da pobreza
e da própria natureza
de todos nós nascermos
de entre fezes e urinas

Ainda assim uma flor
de um rebento de roseira,
ou luz ou asa ou o amor,
outrora nasceu nasce agora
e depois a qualquer hora
milagre de vida brotando
dessa abençoada estrumeira

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

118 - Belo, Bom, Verdadeiro e Sabedoria


1 - Olá! Falemos hoje do belo, do bom e do verdadeiro, e também da relação que têm entre si e com a sabedoria.
Começando pelos antigos medievais, eles diziam que aqueles três primeiros se convertem uns nos outros, tal é a íntima relação que têm entre si.
E agora, no caso de um homem e de uma mulher de sempre e também de hoje, é geralmente pela beleza corporal e espiritual que os dois caminham para a certeza de que, no outro, cada um encontrará o amor, que é o bem ou o bom por excelência, entre os mortais humanos.

2 - Coisa semelhante tem acontecido também com a religião, sobretudo medieval e de depois do Concílio de Trento. Sábia sempre como tem sido – a seu modo, naturalmente -, ela sabe muito bem que é pela beleza das igrejas, dos rituais, das imagens, das pinturas, da música, enfim de todo esse multiforme e muitas vezes encantatório adorno, que ela consegue cativar a atenção dos seus fiéis para o verdadeiro, para as verdades essenciais, e enfim para a existência do sagrado e do Sumo Bem.
É certo que houve alguns religiosos da Reforma, com Calvino à cabeça, que, despojando de todas as formas belas a religião, protestavam que o essencial era só a Bíblia, mesmo que fosse pregada num despido e feio barracão. Mas logo a religião mais antiga, renascida da Contra-Reforma, pôs as coisas como estavam antes, se é que não exagerou nos enfeites, com toda aquela exuberância da talha doirada em que nos perdemos em vez de nos encontrarmos.

3 - Mas agora, nesta sociedade secular em que vivemos, também já muitos não crentes sabem que o caminho para a sabedoria passa pelo belo, pelo bom e pelo verdadeiro.
Sabedoria é o fruto da inteligência, e a inteligência é amor e conhecimento. Amar/ conhecer e conhecer / amar o bom, o belo e o verdadeiro, isso é saborear a bondade, a beleza e a verdade em realidades existentes, isso é a sabedoria. Estes são os frutos espirituais que o homem sábio terá gosto em saborear e comer.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

117 - Celebração da Palavra



         Olá! Ocorre hoje, aqui em Carapelhos (Mira), na sede da Confraria Nabos e Companhia, uma laica celebração da palavra. Houve a feliz iniciativa de organizar e publicar uma antologia de textos produzidos por ficcionistas gandareses, e agora leva-se a efeito o lançamento dessa obra ao público, o qual acorreu em grande número, sublinhando assim a importância que para si tem o evento.

         1 - Está ali, no meio da assembleia, uma mamã recente com o seu bebé ao colo, aconchegado ao lado esquerdo do seu peito. Ele ainda sentirá desse lado a fala antiga do coração materno, uma fala que ele conhece e reconhece muito bem, que sempre lhe fez companhia e lhe deu a necessária segurança, e ainda agora o põe mais sossegado do que em qualquer outro lugar.
         Mas não é dessa fala que ora vamos falar. O bebé terá de se integrar na comunidade dos seres humanos, e só geralmente através das palavras, que tem uma face significante e sensível e outra significada e abstracta, ele se poderá ir constituindo como pleno ser humano. A primeira face das palavras, seja no texto oral ou no escrito, pertence ao domínio do sensível, é objecto material para estimular os sentidos, mas a segunda face é abstracta, é conceptual, e portanto cada um de nós tem de a ir concebendo e moldando na sua mente, embora confrontando sempre com os seus iguais o produto desse íntimo labor.
         Por isto é que aquela querida mamã poderia estar ansiosa em relação ao futuro mais ou menos próximo do rebento que tem reclinado ao seu peito. Começará ele, já por estes dias, a articular os sons da palavra “mamã”, e a associá-los àquele imenso mundo de afecto que tão bem sente e conhece, agora já concretizado no vulto que ora o estreita ao coração ora está perante si ou o embala nos seus braços? Irá ele sabendo ligar, a cada palavra concreta que vai ouvindo, o significado ou significados que os seus familiares e outros lhe atribuem, e depois ligá-los ás suas correspondentes realidades? Que se irá passar quando ele descobrir os sons da palavrinha “Eu”, tão pequenina mas também tão prenhe de possíveis significados? Será que, como acontece com quase todas as crianças, ele a irá descobrir por volta dos três anitos, e depois nunca mais, pelo menos nos primeiros tempos após a descoberta, a deixará de proferir insistentemente? Que amplitude de significados irá dando ele a essa correspondente abstracção, aplicada a si próprio ao longo da sua vida? Os sons da palavra “Liberdade” remetê-lo-ão, através da abstracção que é o respectivo conceito, para algo de realmente concreto na sua vida, ou a liberdade permanecerá para ele só puro conceito, fumo leve que a aragem logo leva, e portanto sem consistência de realidade? Como ressoarão no seu íntimo os sons da palavra “Morte”? Será a significada realidade cruelmente vivenciada pelo precoce passamento de algum dos seus familiares, ou será ela uma realidade branca, a aceitar em todo o caso sem ressentimentos nem temores, como expressão última da ordenada harmonia do Universo?
         Poderia estar ansiosa a mamã, em relação ao futuro do seu bebé, mas não está! Ela só teria razões de sobra para estar ansiosa, se não confiasse na Natureza; se não tivesse fé nas capacidades da criança para aprender (ver textos 17.3 e 25); se não contasse com o espanto que há-de vir e a curiosidade dela face ao novo, que ela irá receber tão avidamente como pano seco em contacto com a água. Curiosidade e espanto pelas incontáveis realidades do mundo que a envolvem e constituem, logo querendo associar a cada uma delas a palavra que a sua falante comunidade usa para a nomear.

         2 - Quando o Sócrates de Atenas descobriu os conceitos, que estavam do lado de lá dos sons das palavras, muita gente mofou dele! Houve até um malandreco comediógrafo seu contemporâneo que injustamente o figurou em palco no ar, no braço levantado de uma grua, como se estivesse dizendo à assembleia que o filósofo andava na lua, ou melhor, nas “Nuvens”, em vez de trazer os pés bem assentes na terra.
         Injustamente acusado, sim, porque, se os conceitos nada são de real e terreno a não serem conceitos, e portanto algo só mental ou abstracto e de alguma forma aéreo, eles são abstracções que fazemos a partir de realidades mundanas, mas para depois os fazermos descer e aplicar a realidades do mundo. São como papagaios de papel que adejam no ar, mas fabricados na terra e presos às realidades da terra, e por isso também terrenos.
         Ao contrário desse Sócrates, quem pôs os conceitos no ar e no céu e lhes deu consistência de realidades do hiperurânio foi o seu discípulo Platão, que os tornou ideias arquétipo, mesmo reais, de todas as entidades que nos aparecem, que são as realidades mundanas. Para este, as verdadeiras realidades são as luminosas ideias ou conceitos, porque o resto, o mundano, é só sombras e aparências.
         Felizmente, Aristóteles, por sua vez discípulo de Platão, não seguiu a esteira do seu mestre, pois voltou às verdadeiras realidades mundanas, ao nosso mundo das coisas (ver texto 21).
         Veio muito mais tarde Abelardo, de novo protestando que os conceitos eram puras abstracções e não tinham consistência real, fora do nosso mundo. Foi um protesto que ele chegou mesmo a fazer à frente de um convento, cujo prior-mor tinha opinião contrária, e que depois foi santo (texto 1). É tudo isto uma questão que ainda não está definitivamente resolvida. Porém, o mais provável será que haja simplesmente esta nossa realidade mundana, sendo todas as abstracções, que são os conceitos ou significados das palavras, parte desta nossa mundana realidade, mas só enquanto abstracções que são.

         3 - Celebramos então a festa das palavras. Palavras feitas de significantes e significados; de sons ou letras a anunciar conceitos; palavras feitas de terra mas também etéreas; agarradas à pedra do chão mas também esvoaçando ao vento no diáfano ar, como papagaios de criança. Afinal, palavras por nós fabricadas de barro e espírito, à nossa imagem e semelhança.
         Ouve-se o repousante rumor do vento nas cristas dos pinheiros da Gândara; a sonante brisa nos canaviais de Pan, sobre os cabeços dos córregos; ouve-se ainda o domado vento na linguagem das aves e de outros animais; enfim ouve-se o artefacto da palavra humana, pelo Homem inventada e produzida, feita símbolo não só para comunicarmos entre nós no dia-a-dia, mas também para fazermos arte, como é o caso da obra literária, com seus mundos imaginários e belos.
         Palavras frágeis, é certo, como frágeis nós somos! Mas, ainda assim, palavras com as quais podemos crescer e nos irmos humanizando, tomando posse delas e usufruindo do seu recheio. Palavras também que, ao contrário, nos podem distrair e até pôr receosos pelo enorme séquito de pensamentos e ideologias que arrastam consigo e nos entulham e perturbam a alma … Porque o melhor de tudo para nós …ainda é o silêncio!
         Laica celebração é esta, ou ela é a celebração realmente mais sagrada que todos os humanos podem fazer?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

116 - Neste Rio da Vida


Um salgueiro parado na margem
brancamente silencioso
dá-nos conta de que vamos:
nós somos, indo
nós vamos, sendo

 Marta que estás sentada
à beirinha deste rio,
 não estarás tu também no rio
onde também tu vais sendo, indo?

 Por certo que pressentes
que também indo vou, sentada
pois quem está sentado és tu
quem vai no rio sou eu

Turbulentas ou calmas
opacas ou cristalinas
águas profundas ou baixas
enxurradas pestilentas
toalhas de luz transparente
ora vão lestas ou lentas
nunca parando a corrente

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

115 - Faz Frio


Em Nazaré ou Belém
- já não sei bem -
ou até nos dois sítios em simultâneo,
eu, o José, e aqui a minha Maria
de esperanças redondinha,
aqui estamos agora
nesta pobre casinha
à espera dessa hora.

Faz muito frio, lá fora;
e aqui dentro, faz-nos falta
 o bafo quente e antigo
do burro e da vaquinha,
ao menos quando vier a feliz hora.

Faz frio:
virá ao menos essa luz,
quando romper de dentro dela,
da minha Maria, a mais bela,
aquecer-nos?



Note Bem: Se o amigo seguidor ou casual leitor encalhar nos três primeiros versos da fala de José e não os perceber, não lhe vá logo pedir esclarecimentos porque ele agora está ocupado com quem mais precisa dele! Consulte, sim, o texto 23 - ou mais precisamente 23.1.2 - aqui deste blog (O Fascínio do Clube dos poetas vivos). Mas, se esses sintomas de dúvida persistirem, consulte ainda, não o médico ou farmacêutico, mas o autor deste blog, sempre disponível para o atender. Muito obrigado e … muito Boas Festas para todos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

114 - A Nudez das Coisas


De altos mitos
decorrem-nos lendas
para a vida
e, pela vida,
cavalgamos ilusões
… de mitos

Quão melhor seriam realidades
realidades nuas
e nós, perante elas,
nus!

O dia amanhece
 e o sol esplende
espraiando na luz
a nitidez das coisas

Apaziguemo-nos com elas

sábado, 1 de dezembro de 2012

113 - D. Quixote


Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste ou Heróica Figura

1 – Olá! Um dos mais belos e significativos livros da literatura mundial é, sem dúvida, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, de Cervantes (1547-1616). Tão belo e significativo que, no ano em que saiu a lume (1605), logrou logo várias edições em castelhano e em português, nesses tempos só ultrapassado pela Bíblia. Tão belo e tão plurissignificativo é ele que, ao longo do tempo, cada época o tem interpretado diversamente, sempre à sua própria maneira. Mas digamos que, em todo o caso, o que mais ressuma da obra é um contínuo e intenso fio de ironia que deriva do confronto entre o ideal e a realidade. Será que, no limite, a imaginação ou o ideal cria as próprias realidades, ou são as realidades, sobretudo quando necessárias, que submetem o ideal? Por outras palavras mais concretas: aquilo que o cavaleiro D. Quixote imagina e quer são (vão ser) mesmo realidades que ele vê (verá) à sua volta, ou são mera fantasia que ele alongou fora dele? Em suma: D. Quixote deve ser para nós um modelo de herói, ou, pelo contrário, ele é só “o cavaleiro da triste figura”?
Cada época viu de facto a obra à sua maneira, se é que, na mesma época, ela não foi vista de diversas e até opostas maneiras! Foi isto que aconteceu na famosa geração de 98 em Espanha, em que, de um lado, entre outros intelectuais, apareceu Miguel de Unamuno (1864-1936), e do outro surgiu Ortega Y Gasset (1883-1955).

2 - Segundo Unamuno, “a grande rebeldia é a recusa da necessidade da morte e a apetência da imortalidade”; é “a luta para alcançar a fé entre a vontade que não quer morrer e o cepticismo racional que verifica a inevitabilidade universal da morte” (F. Savater; ver também aqui o texto 18). Mas ao contrário de Unamuno, que valoriza o valor da crença, Gasset, que é laico e racionalista, prefere a razão, a “razão vital”, pela qual ele diz: “eu sou eu e a minha circunstância; se a não salvo a ela, não me salvo a mim”.
E então, para Unamuno, a ardorosa personagem D. Quixote, em vez de, pelos seus ideais e visões, ser uma caricatura posta a ridículo ao longo de toda a obra, é antes herói e modelo para os outros homens, enquanto que, para Gasset, (e também para o autor Cervantes) ela é uma figura ridícula, ela é “o cavaleiro da triste figura”, que, em vez de sábio, é louco.
Para Unamuno e para a personagem D. Quixote, o cavalo que devemos montar é a imaginação e a crença, e é montados nesse cavalo que eles criam e vêem as suas “realidades”, que, afinal, na outra perspectiva que é a de Gasset, são puras ilusões. Na verdade, para este e para Cervantes, e também para a personagem Sancho, o cavalo que nos deve servir é a razão, a “razão vital”, que nos faz a destrinça entre aquilo que simplesmente imaginamos e depois acreditamos, e aquilo que realmente existe, ou seja, aquilo que são as realidades necessárias, razão essa que, portanto, nos sabe distinguir entre ilusões e realidades. A personagem Sancho, companheiro inseparável do protagonista D. Quixote, chama-o constantemente à razão e às realidades, convida-o incessantemente (mas sempre em vão) a assentar os pés no chão. Porque, para o seu amo e também para Unamuno, é a imaginação, o impulso do desejo e do coração e da vontade, tudo isso é que cria as realidades. Para Sancho, estas realidades são mera fantasia.

3 - D. Quixote é o “cavaleiro da triste figura”, como diz Cervantes e sugere Gasset, ou ele é o “cavaleiro da heróica figura”, como ele próprio pensa e como pede Unamuno? Não haverá realidades que resistam aos ideais do cavaleiro, ou seja, é tudo só como ele imagina e quer, ou, pelo contrário, ele baterá um dia com a cabeça nas realidades?
Para Cervantes, ironicamente, “nenhum cavaleiro foi tão bem servido de donzelas como D. Quixote”! Também é por semelhante razão que um terrorista “mártir” tem mil virgens à sua espera! E não será ainda por semelhante motivo que os crentes esperam com firmeza uma vindoura e gloriosa bem-aventurança? Não custa nada imaginarmos existir aquilo que mais desejamos.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

112 - O Fisco e as Vespas



O fisco é semelhante
a um enxame de vespas
os dois muito impertinentes
muito perigosos os dois

Quando atacam uma presa
por todos os lados a descoberto atacam
para espetarem o ferrão
sem dó nem piedade ferram

Semelhantes mas não iguais pois que

Pior ainda é o fisco porque pode
rapinar também as calças e a camisa
tudo ficando ao léu para ferrar
levando também a roupa para cobrir
a falida e pálida nudez
da figura do Estado

domingo, 25 de novembro de 2012

111 - Bebés


Marta está de esperanças
e como não as deseja
recorre ao hospital
e todo o serviço é gratuito.

Rosa está de esperanças
ardentemente desejadas
mas advindo-lhe problema grave
vai também ao hospital
não sendo gratuito, neste caso, o serviço.

Não há políticas para se reporem gerações
um desastre social está iminente
incluída a perda de identidade nacional.

É por isso que
uma ave canta no ventre da alma
da Rosa que não tem medo do futuro.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

110 - Da Imbecilidade ou Fraqueza de Sexo


1 - Olá! Sabem porque é que, em termos linguísticos, o báculo dos bispos e a imbecilidade estão intimamente relacionados? Não que aos bispos se deva atribuir a imbecilidade, por si mesmos ou pelo báculo que usam! É até precisamente o contrário.
Então, é assim. Na língua latina, língua mãe da nossa língua, havia a palavra baculum, que significava pau, da qual se formou o diminutivo bacillum, que queria dizer pauzinho (um bacilo é um micróbio com a forma de um minúsculo pauzinho), de onde se originou o qualificador imbecillus ou imbecillis que, por oposição a valens ou firmus (valente ou firme), tinha o significado de fraco, sem força, sem apoio, sem pau, tudo sentidos referidos tanto ao corpo como à mente. Deste qualificador, ainda em latim, não tardou a formar-se a palavra imbecillitas, naturalmente com o significado de fraqueza (de corpo e ou mente), com base na qual o direito romano cunhou a expressão “imbecillitas sexus” (imbecilidade ou fraqueza de sexo), figura jurídica pela qual, às senhoras, são diminuídos ou limitados os direitos, por comparação com os homens, os quais portanto, em termos de sexo e na perspectiva do direito romano, não costumam ser imbecis.
Agora, quanto ao báculo dos bispos, a sua força ou firmeza advém-lhe de ele ser, em suas mãos, o símbolo da autoridade ou firmeza jurídica, doutrinal e pastoral, em relação aos crentes que lhes são confiados. Crentes que, portanto, ao contrário dos bispos, têm necessidade de ser confirmados na fé … por serem débeis, por não serem firmes, por não serem “autó-nomos”. Porque se fossem autónomos, sabiam orientar-se pela sua própria lei.

2 – Num contexto económico e social em que nenhum trabalho era mecanizado e portanto quase tudo na vida tinha de ser feito a poder da força física, era natural que a sociedade concedesse maior valia ao homem, e ela própria, a sociedade, fosse mesmo mais ou menos patriarcal. Mas isso acontecia, principalmente, não em razão de o homem ser dotado de maiores competências mentais, em comparação com a mulher, mas precisamente em virtude da sua força física.
Mas isso era num passado cada vez mais distante. Porque hoje, com o trabalho quase todo mecanizado - e muito embora vivendo nós numa sociedade ainda com laivos de regime patriarcal, -, as mulheres, já em completa igualdade jurídica com o homens, podem ocupar e ocupam mesmo lugares de relevância nos mais variados sectores da vida nacional. As meninas constituem a maioria e com melhores resultados nas escolas secundárias e universidades; na vida política, nas empresas, na administração pública, no ensino em todos os graus, nas magistraturas e em praticamente todas as outras profissões, as mulheres desempenham o seu papel com igual ou até maior competência e dedicação que os homens; elas ocupam mesmo lugares de topo, como é o caso do Ministério Público, do Ministério da Justiça, da Assembleia da República e até da Universidade Católica, se bem que, neste último caso, ainda tenha sido necessário pedir a aprovação da Santa Sé.

3 – Assim se constata que as altas cúpulas do poder religioso ainda não são acessíveis às senhoras.
Mas, se as religiões do Livro tivessem sido implantadas, não em sociedades patriarcais mas em sociedades matriarcais e continuassem a vigorar em sociedades ainda com alguns vestígios de matriarcado, tais religiões não seriam bem diversas do que são hoje? Se isto tivesse acontecido (porque seria possível), teria sido a Deusa Grande Mãe - não por império da vontade e da palavra, mas de forma natural e silenciosa como é própria de uma mãe -, a gerar todas as coisas e o primeiro par humano; teria sido também ela a inspirar e a acompanhar os humanos ao longo de todo o Livro e para além dele, talvez até com muito menos conflitos nessa longa história dos povos, sempre numa perspectiva matriarcal. Assim, até a concepção trinitária da Divindade seria diversa: primeiro dois nomes femininos, sendo que o terceiro permaneceria, por já transcender os dois géneros existentes na humanidade.
E se, nesta hipótese de os humanos terem vivido em sociedades matriarcais e ainda vivêssemos nelas embora já só com laivos desse tipo, e agora estivéssemos em condições de ter à frente da Universidade Católica um homem reitor e não uma senhora reitora como teria sido a tradição até aqui, quem nos teria concedido, na Santa Sé, essa aprovação? Já um religioso homem, ou ainda uma religiosa senhora? Talvez que, se fosse ainda senhora, de todo não seria necessário procedermos à referida diligência!
 Mas, fosse tudo de uma maneira ou doutra, nada do que é essencial à religião mudaria.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

109 - As Boas Utopias


1 - A propósito de “A Esquerda Radical” e porventura também da Convenção do Bloco de Esquerda que viria no dia seguinte (Expresso, 11-11-12), Henrique Monteiro escreve: “O que a mim me interpela é haver ainda quem, de forma genuína – quero crer -, acredite em ideais salvadores organizados a partir do Estado; em sociedades igualitárias impostas sem ditaduras (assim o dizem); em utopias que, quando foram levadas à prática, acabaram em regimes autocráticos ou terroristas, baseados em oligarquias e – sem qualquer exceção – no empobrecimento geral e súbito dos cidadãos”.
E depois de dizer que “o corte da direita com o fascismo se manteve total depois da II Guerra”, acrescenta: “aceitamos hoje a extrema esquerda como nunca aceitámos a extrema direita”. E, de facto, na nossa Assembleia da República – dizemos agora nós – mais à direita da direita conservadora e democrática nada existe, enquanto que as esquerdas à esquerda do P.S. defendem ideais utópicos que, na prática, ou ainda não foram testados, ou, tendo sido, deram naquilo que H.M. refere.
Ponto importante é que o Estado seja para os cidadãos e não os cidadãos para o Estado; portanto, eles é que decidirão sempre quanto e qual Estado querem, sempre só na medida das possibilidades reais e democráticas.

         2 - Mas há utopias que vale a pena alimentar, ainda que só, por enquanto, como referências utópicas: a de se eliminar o salteador capitalismo financeiro; a de o dinheiro ser considerado o sangue das nações e portanto ninguém poder dele usar com usuras; a de os políticos serem todos honestos e terem eles o poder de promover e distribuir esse sangue, começando pelas pessoas mais carenciadas; enfim a de o ser humano deixar de ser lobo dos outros seres humanos, mas irmão na humanidade que é pertença de todos.
Alimentar estas utopias, ainda que por enquanto só como referências utópicas, sim senhor, mas a concretizar mesmo num futuro mais ou menos longínquo. Porque estas utopias, se levadas à prática, não gerarão ditaduras nem empobrecimento dos povos, mas irão robustecer as democracias e a riqueza material e espiritual das nações (ver texto 87).

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

108 - Já Lá Dizia Luís Vaz


1 - Olá, amigas e amigos! Lembram-se daquele Luís Vaz que espalhou a nossa glória por todas as nações, não lembram? Daquele que, com engenho e arte - isto é, com habilidades naturais mas também com as qualidades adquiridas da arte e do talento –, cantou e espalhou por “toda a parte” a nossa gesta marítima da Índia e, a par dela, toda a nossa história pátria até então?
Pois é! Ele cantou, mas também chorou! Também chorou e lamentou grandes desmandos em que já nessa altura andávamos metidos. Ora vejam, por exemplo, logo no final do primeiro canto (estrofe 106); vejam aí o poeta que, para fugir da alta procela que eram as dificuldades e perigos por que passava – a qual para nós hoje são sobretudo a gula dos mercados e a ganância do Estado – se lamenta e pergunta: “onde pode acolher-se um fraco humano, / onde terá segura a curta vida, /que não se arme e se indigne o céu sereno / contra um bicho da terra tão pequeno?”
Ele canta, sim, canta e espalha a boa fama de “as armas e os barões assinalados”, mas de todo não canta e só lamenta aqueles que sucumbem em indignidades, como se vê no canto sétimo (84-86): “Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse / a quem ao bem comum e do seu rei / antepuser seu próprio interesse, / immigo da divina e humana lei…// …Nem quem …veio, / por contentar o rei, no ofício novo, / a despir e roubar o próprio povo! // Nem quem acha que é justo e que é direito / guardar-se a lei do rei severamente, / e não acha que é justo e bom respeito / que se pague o suor da servil gente; nem quem cuida que é prudente taxar, com mão rapace e escassa, os trabalhos alheios que não” sabe avaliar com justiça.
Porque, na verdade, já então, como se vê no final do canto oitavo ( 96-99), o que o poeta mais lamenta na pátria é o muito que “pode o vil interesse e sede immiga / do dinheiro, que a tudo nos obriga”. O dinheiro e também o ouro, esse “avaro vício”, esse “metal luzente e louro”, esse que “faz traidores e falsos os amigos;/ “a mais nobres faz fazer vilezas”, “corrompe virginais purezas”, “os juízos cegando e as consciências”.

2 - Com tudo isto, não é que o vate despreze o dinheiro e o ouro, em si próprios. O que diz é que, por serem tão tentadores, por criarem nos humanos tanta fome e tanta sede de cobiça, eles facilmente corrompem, como já então acontecia. E tanto que, já quase no final do canto décimo, o poeta parece desanimar no intento do seu canto: “Não mais, musa, não mais, que a lira tenho / destemperada e a voz enrouquecida, / e não do canto, mas de ver que venho / cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais se acende o engenho / não no dá a pátria, não, que está metida / no gosto da cobiça e na rudeza / de uma austera, apagada e vil tristeza” (145).
Do abismo do desânimo, porém, ele ainda se levanta no final do poema, para incutir coragem ao rei – o imberbe reizinho Sebastião -, ao rei e à sua e nossa nação de então, para continuarem essa gesta heróica, não fosse acontecer aquilo que não podíamos permitir: “Fazei, Senhor, que nunca os admirados / alemães, galos, ítalos e ingleses, / possam dizer que são para mandados, / mais que para mandar, os portugueses” (152).
Parece que, realmente, em Alcácer-Quibir, o reizinho não cumpriu este pedido heróico e muito menos agora ele se poderá cumprir – não mandássemos agora nós em ninguém, não fossem mesmo os outros a mandarem em nós.

3 - Acima de todos, entre os mandantes, está esse monstro de mil cabeças que dá pelo nome de capitalismo selvagem, esse demónio que, com todos os seus oficiantes, põe as naus das nações a pique, sugando-lhes o sangue. Porque o dinheiro, como já noutros lugares ficou dito (texto 73, por exemplo), é o sangue das nações, com o qual, por ser sangue, não se pode negociar, pelo menos com usura.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

107 - No Cabeleireiro de Nações & Associados



(No balcão de entrada há réguas e esquadros, fitas métricas e tesouras. Ao fundo, sentado a uma mesa de vidro, um oficial de barbearia conta moedas de ouro, que brilham à luz crua da loja. Ao lado do oficial, há uma menina pequena pondo a mão esquerda no braço direito dele, enquanto chucha num dedo da mão direita.)

Senhor Primeiro – Bom dia, senhor!
Oficial de barbearia -  Bom dia, Senhor! Em que poderei servi-lo?
                            - Olhe aqui: eu preciso que me faça um corte de cabelo ao Estado, no valor de 4 mil milhões. Pode ser?
                            - Claro que pode ser, meu amigo! Estamos aqui para o servir!
                            - Espero que o senhor seja competente para fazer o corte. Olhe que é muita responsabilidade: trata-se de refundar o Estado!
                            - Com certeza, Senhor Primeiro! E quanto à competência, olhe que nós temos longa e larga experiência nessas operações.
                             - Mas o senhor está a falar da experiência da firma que serve, mas não da sua própria. Que credenciais pode apresentar, para me provar a sua competência?
                             - Creio que bastará dizer-lhe que eu próprio vivi intensamente a explosão da recente crise financeira que estalou na América e vi com os meus olhos o poderoso Lehman Brothers a descer aos infernos. Quer mais credenciais do que estas?
                             - Ah, não! Estou a ver que essas são muito significativas! Então, vamos fazer isto?
                             - Mas olhe que isso tem de ser muito bem pensado, de preferência com os parceiros sociais e políticos do seu país. Em vez de ter já na cabeça uma determinada conta a cortar, seria conveniente ter um plano, ter uma visão global do problema, para depois definir a quantia do corte. Não o fazer deste modo, pode ser uma grande tolice.
                              - Mas deixe-me dizer-lhe, meu amigo, deixe-me dizer-lhe que eu tenho urgência neste corte de cabelo. Preciso de entrar em cheio na refundação do Estado!
                              - Senhor Primeiro, olhe que só com uma boa combinação de cortes se pode potenciar um bom efeito de conjunto! Se eu cortar o cabelo na nuca e não for aos parietais, se eu cortar à frente e não atrás …
                              - Deixe-me dizer-lhe, deixe-me dizer-lhe que essa combinação que refere é importante, mas ela pode ser feita rapidamente e muito bem por você e pelos seus colegas, não é verdade? Eu também posso ajudar. Tenho pressa!
(E despediu-se, deixando a sós, na loja, o oficial e a menina pequena.)
  Menina Pequena – Ó pai, tu chamaste “tolo” a este homem, não chamaste?
                                - Não, filha, não chamei! (E agora falando baixinho e a sós consigo mesmo e com os seus botões dourados) Mas acontece que, nestes assuntos, há estados de alma que raiam a demência! Às vezes a minha língua, pela força da verdade, atraiçoa-me. Em termos profissionais, porém, eu devia resistir sempre a essa traição.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

106 - Uma Limusina Preta



Uma limusina preta
repuxada de lustro
vidros foscos biqueira longa
pelos altos portões do palácio
entra lenta

Sua excelência o primeiro convocou
para assunto urgente e necessário
sua excelência a sua sombra

Sobre a mesa está o Estado
sobre a mesa uns mil milhões
sobre a mesa o impasse

Metido na sua casinha
atiçando o lume no borralho
o povo vê toma nota

a limusina preta o palácio
os milhões e a pobreza
o impasse

Faz frio no país
 o povo sente
 o povo vê toma nota

domingo, 4 de novembro de 2012

105 - Estado, Pessoa de Bem



1 - Olá, amigas e amigos! As palavras em epígrafe parecem constituir uma afirmação, mas, na realidade, elas formulam uma pergunta. E a pergunta é: será que o Estado é mesmo uma “pessoa de bem”, como nos costumam inculcar?
Mas falemos primeiro só de “Estado”, deixando para depois essa “pessoa de bem” que dizem ele ser. O que é o Estado? Em termos muito gerais, o Estado é uma entidade abstracta representada por algumas pessoas, com a qual entidade muitas pessoas fazem um contrato social que as torna todas cidadãos da mesma cidade (as cidades-Estado) ou nação, e pelo qual as duas partes assumem reciprocamente direitos e deveres. O Estado não nasce com as pessoas mas é, desde o princípio, uma criação delas.

2 – Que é uma criação das pessoas vai ver-se já por este pedacinho de história política. Um cidadão inglês – Hobbes de seu nome (1588-1679) – afirma que os seres humanos são naturalmente depravados, a ponto de cada um ser lobo para os outros. Assim, diz ele, só com um Estado eles poderão socializar-se e conviver. Mas para um cidadão francês, chamado Rousseau (1712-1778), os seres humanos são naturalmente bons e a sociedade é que os estraga. De maneira que, diz ele ainda, só com um contrato social que fazem com o Estado, eles poderão viver em sociedade. Os dois pensadores, portanto, cada um à sua maneira, justificam a existência do Estado, já que os indivíduos precisam dele. E porque precisam, criaram-no e, quando necessário, reformulam-no.

3 - Falemos então da tal “pessoa”, e “pessoa de bem”, que dizem ser o Estado para nós. Antes de mais, ser o Estado uma “pessoa”.
Já para aquele Hobbes acima referido, como nos diz Scruton, a “comunidade política” é uma espécie de organismo que nasce, cresce e morre; mas quem primeiro concebeu o Estado propriamente como pessoa parece ter sido o também já citado Rousseau, o qual depois veio a inspirar no mesmo sentido o alemão, ou melhor, o prussiano Hegel (1770-1831). De facto, para este último, a comunidade política, tal como uma pessoa, tem uma vontade própria, possui razão, tem direitos e deveres. Mas ainda diz mais: diz que o Estado tem direitos que uma pessoa vulgar não pode ter, como é o direito de exigir a morte de cidadãos. É que, para Hegel, que foi considerado o filósofo do Estado prussiano, o Estado é a grande incarnação da razão e da ideia absoluta, doutrina esta que, para desgraça do mundo, irá desembocar na estatolatria, que, como sabemos, tão horrendas consequências teve para a Europa no século passado.

4 – Que dizer agora daquele “de bem” que qualifica a pessoa que é o Estado, portanto “Estado, pessoa de bem”? Sem dúvida que este não poderá ser um Estado-pessoa à maneira de Hegel, para fazer as coisas horríveis que esse Estado já fez.
Somos uma sociedade organizada, uma sociedade política; precisamos de um Estado que seja realmente uma “pessoa de bem”, que portanto cumpra honradamente o contrato social celebrado com os cidadãos. Precisamos de um Estado, mas o Estado é para nós e não nós para o Estado! Porque é que o nosso Estado não se propõe renegociar a sua e nossa dívida? Note-se que se trata da renegociação dos juros e não propriamente da dívida-base que, honradamente, temos sempre de pagar!
Um Estado que descura o desenvolvimento do país e só acentua a austeridade, que não cumpre a Constituição da República que é o contrato social que fez com os cidadãos, e que, na apertada situação em que estamos, não pede aos credores uma honrada renegociação dos usurários juros bem como uma dilação da maturidade da dívida, como sugere Cadilhe (Expresso, 20-10-12), não poderá ser considerado uma “pessoa de bem”, pois não cumpre a sua função.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

104 - Poema do Optimismo e da Cinza


1
Triunfantes filhos do iluminismo:
o excesso de optimismo
o incessante progresso
o exagero na ambição
no sucesso e no mercado
o poder impuro

2
Há o tão olvidado lembrete
és cinza
à cinza reverterás

3
Cinza de estrelas

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

103 - Elogio do Vazio e do Silêncio


Quando se está só
habita-se o vazio e o silêncio.

No vazio e no silêncio
está a fonte da vida;
já todo o pensamento
é ocupação e barulho.

Tanto posso descer ao meu
Eu profundo,
como sentir-me a renascer
desse vazio, em cada agora.

Tudo e todos, no Universo,
estamos sempre saindo do vazio,
mas a ele também regressando
a ele nos acolhendo.

Guardado na concha da memória,
anda o meu eu psicológico:
abstrair-me dele é estar só,
é desaguar no Eu profundo.

Alimentemo-nos de vazio e de silêncio,
percamo-nos nesse imenso Oceano,
quase nos esquecendo que
somos ondas desse mar.

Entrar no santuário do vazio e do silêncio
não é perder tempo, é ir para além dele;
não é ficar ocioso ou fugir à vida:
é encontrar o amor e o saber mais profundos.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

102 - No Limiar de Novembro


Como podem os seus meninos
ministra cristas
surfar seguros nas vagas deste mar
se por debaixo delas
 há ossadas de caravelas
botes de pescadores tristemente naufragados
barcos de pescadores incautamente abatidos?

Como podem a pé descalço os desportistas
vitorianos esfaimados sem vintém
por caminhos escalavrados e tortuosos
correr todos os passos da maratona
sentindo ao lado em campo verde e a bom recato
os tacos de golfe calculistas?

Como podem os três meninos
ministra cristas
a menina e os dois meninos
lavrar os campos esquecidos
se agora avulta neles
 ondulante e altiva
longa seara de crisantos
a flor de ouro a flor sagrada a flor dos mortos?

Não vai também alastrando
pelo campo europeu
a mesma flor de ouro a mesma flor dos mortos? 

sábado, 27 de outubro de 2012

101 - Doutrinas e Práticas Espirituais


1 - Olá! É bem sabido que a sociedade actual, sociedade do materialismo individualista, das multidões e do dinheiro – poucos indivíduos, cada vez com mais, e, quase todos, cada vez com menos -, se fez uma sociedade laica, secular. Mas não que o subterrâneo impulso das religiões não desponte sempre, não cresça e até, aqui e além, violentamente recrudesça. Porque os seres humanos sempre tiveram e terão de satisfazer duas necessidades profundas: a de nos sentirmos ligados, integrando uma comunidade, e a de termos consolo na dor, no sofrimento e em relação à necessária morte individual. Mas esta nossa relativamente recente sociedade secular, bem mais materialista que espiritual, ainda não soube olhar demoradamente para estas duas necessidades profundas e por isso ainda não sabe satisfazê-las. Ao contrário, as religiões, com a sua sabedoria milenar, sempre souberam - à sua maneira, é claro – atendê-las e dar-lhes satisfação.

         2 - Tomemos o caso da religião que nos é mais próxima, o cristianismo. Em relação àquela primeira necessidade, ela convida para o culto divino em assembleia, no qual sobressai a celebração da missa, a qual, nos primeiros séculos, fora uma simples mas muito especial refeição – por isso chamada ágape – na qual se congregavam crentes para, com a comida e a bebida, celebrarem conjuntamente o amor. Ela oferece e ministra sete sacramentos que, para além de marcarem as três principais fases da vida individual (baptismo para o nascimento, crisma para a juventude, Última Unção para a extrema velhice e a morte), alimentam de pão espiritual e de perdão (Eucaristia e Penitência) e ainda abrem os fiéis para funções particularmente sociais (Ordem e Matrimónio). Ela convida a aderir a movimentos espirituais ou de acção social ou missionária. Há também o ensino da catequese, com uma organização semelhante e quase paralela ao ensino civil. Há ainda um código doutrinário aprendido na catequese e depois professado no culto, e não faltam também festas religiosas populares para alegrarem o pessoal. Mas a força congregadora e comunitária da Igreja sobe ao auge quando, ela própria, se considera um corpo místico ou uma comunidade espiritual – nada materialista e secular - onde cabem todos os seus fiéis. Melhor ainda, ela é o corpo místico de Cristo, já que Cristo, enquanto tal, não pode ter corpo físico mas tão só espiritual ou místico, que são os que nele acreditam.
Quanto à outra profunda necessidade humana, esta religião não só consola na dor, no sofrimento e na morte, como ainda oferece aos seus fiéis o sentido do sofrimento e da morte, não fosse através dele e dela que eles foram salvos no sofrimento e na morte de Jesus, e que terão a vida eterna.

3 – Portanto, as religiões têm muitas coisas boas que os não crentes desta nossa sociedade secular podem aproveitar para as suas vidas, sem que tenham de aceitar os dogmas religiosos. Porque se pode ser não crente, em termos religiosos, mas ser profundamente espiritual.
No sentido de aproveitar o que há de bom nas religiões, vem o livro Religião para Ateus, de Alain de Botton. Filho de pais judeus laicos e também ele ateu confesso, Botton surpreende-se com o enorme manancial de produtos pedagógico-didácticos que as religiões foram inventando para satisfazer aquelas duas já referidas necessidades fundamentais dos seus fiéis, produtos que, em grande parte, também hoje se podem oferecer aos não crentes desta nossa sociedade secular. O caso da ágape ou refeição do amor, na qual se podem congregar pessoas desconhecidas e de diversas raças e estratos sociais é um belo e importante exemplo (ver texto 95). Note-se que ser ateu é não poder aceitar, em consciência, as teóricas verdades ou dogmas de fé que as religiões professam; mas isto não impede, obviamente, que ele possa recolher e utilizar, de forma laica, grande parte das práticas que os fiéis usavam e ainda usam para se animarem, para se sentirem em comunidade, para conhecerem o sentido da dor e da necessária morte.
Mas o caso é que, por incrível que pareça e como já vimos em alguns textos (35 e 62.10), também hoje muitos crentes e mesmo algumas comunidades cristãs procedem de forma semelhante, isto é, obliterando os princípios da fé e só valorizando as práticas. Já se perguntou a condutores de algumas dessas assembleias se eles, na pregação, não insistiam nos alicerces dogmáticos da religião, e eles responderam que isso, actualmente, não interessa às comunidades.
E então, o que acontece é que crentes e não crentes podem ter semelhantes práticas para se alimentarem espiritualmente na vida, mas, no que toca a doutrinas, enquanto os não crentes liminarmente rejeitam os dogmas de fé, muitos crentes simplesmente não fazem caso deles.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

100 - Elogio do Estar Só



Estar só não é ser solitário
nem estar em solidão;
não é não ter pessoas por perto,
mas ter vazia e limpa a nossa mente.

Para melhor apreciarmos o saboroso
gosto de estar só,
é bom de quando em vez
mergulharmos no ruído.

Quando estamos sós, podemos
ouvir as vozes do silêncio;
podemos estar em comunhão
com tudo.

De vazio e de silêncio
se sustentam os seres,
e só lá os podemos encontrar;
só lá avultam as formas
e o poder dos seres.

Só podemos extasiar-nos
com a Beleza
se estivermos habituados
a estar sós.

Somos ondas de energia
do grande Oceano do Universo:
mas quando estamos sós, mais nos sentimos
só água e Oceano.

No puro estar só,
que é a anulação do eu,
descobrimos ser pura relação:
o amor é o fruto deste estado.

Estar só … é estar presente.