1 - Olá! É bem sabido que a
sociedade actual, sociedade do materialismo individualista, das multidões e do dinheiro
– poucos indivíduos, cada vez com mais, e, quase todos, cada vez com menos -,
se fez uma sociedade laica, secular. Mas não que o subterrâneo impulso das
religiões não desponte sempre, não cresça e até, aqui e além, violentamente
recrudesça. Porque os seres humanos sempre tiveram e terão de satisfazer duas
necessidades profundas: a de nos sentirmos ligados, integrando uma comunidade,
e a de termos consolo na dor, no sofrimento e em relação à necessária morte
individual. Mas esta nossa relativamente recente sociedade secular, bem mais
materialista que espiritual, ainda não soube olhar demoradamente para estas duas
necessidades profundas e por isso ainda não sabe satisfazê-las. Ao contrário,
as religiões, com a sua sabedoria milenar, sempre souberam - à sua maneira, é
claro – atendê-las e dar-lhes satisfação.
2 - Tomemos o caso da religião que nos é
mais próxima, o cristianismo. Em relação àquela primeira necessidade, ela
convida para o culto divino em assembleia, no qual sobressai a celebração da
missa, a qual, nos primeiros séculos, fora uma simples mas muito especial
refeição – por isso chamada ágape –
na qual se congregavam crentes para, com a comida e a bebida, celebrarem conjuntamente
o amor. Ela oferece e ministra sete sacramentos que, para além de marcarem as
três principais fases da vida individual (baptismo para o nascimento, crisma
para a juventude, Última Unção para a extrema velhice e a morte), alimentam de
pão espiritual e de perdão (Eucaristia e Penitência) e ainda abrem os fiéis
para funções particularmente sociais (Ordem e Matrimónio). Ela convida a aderir
a movimentos espirituais ou de acção social ou missionária. Há também o ensino
da catequese, com uma organização semelhante e quase paralela ao ensino civil.
Há ainda um código doutrinário aprendido na catequese e depois professado no
culto, e não faltam também festas religiosas populares para alegrarem o
pessoal. Mas a força congregadora e comunitária da Igreja sobe ao auge quando,
ela própria, se considera um corpo místico ou uma comunidade espiritual – nada
materialista e secular - onde cabem todos os seus fiéis. Melhor ainda, ela é o
corpo místico de Cristo, já que Cristo, enquanto tal, não pode ter corpo físico
mas tão só espiritual ou místico, que são os que nele acreditam.
Quanto à outra profunda necessidade
humana, esta religião não só consola na dor, no sofrimento e na morte, como
ainda oferece aos seus fiéis o sentido do sofrimento e da morte, não fosse
através dele e dela que eles foram salvos no sofrimento e na morte de Jesus, e
que terão a vida eterna.
3 – Portanto, as religiões têm
muitas coisas boas que os não crentes desta nossa sociedade secular podem
aproveitar para as suas vidas, sem que tenham de aceitar os dogmas religiosos.
Porque se pode ser não crente, em termos religiosos, mas ser profundamente
espiritual.
No sentido de aproveitar o que há de
bom nas religiões, vem o livro Religião
para Ateus, de Alain de Botton. Filho de pais judeus laicos e também ele
ateu confesso, Botton surpreende-se com o enorme manancial de produtos pedagógico-didácticos
que as religiões foram inventando para satisfazer aquelas duas já referidas
necessidades fundamentais dos seus fiéis, produtos que, em grande parte, também
hoje se podem oferecer aos não crentes desta nossa sociedade secular. O caso da
ágape ou refeição do amor, na qual se
podem congregar pessoas desconhecidas e de diversas raças e estratos sociais é
um belo e importante exemplo (ver texto 95). Note-se que ser ateu é não poder
aceitar, em consciência, as teóricas verdades ou dogmas de fé que as religiões
professam; mas isto não impede, obviamente, que ele possa recolher e utilizar,
de forma laica, grande parte das práticas que os fiéis usavam e ainda usam para
se animarem, para se sentirem em comunidade, para conhecerem o sentido da dor e
da necessária morte.
Mas o caso é que, por incrível que
pareça e como já vimos em alguns textos (35 e 62.10), também hoje muitos
crentes e mesmo algumas comunidades cristãs procedem de forma semelhante, isto é,
obliterando os princípios da fé e só valorizando as práticas. Já se perguntou a
condutores de algumas dessas assembleias se eles, na pregação, não insistiam nos
alicerces dogmáticos da religião, e eles responderam que isso, actualmente, não
interessa às comunidades.
E então, o que acontece é que
crentes e não crentes podem ter semelhantes práticas para se alimentarem espiritualmente
na vida, mas, no que toca a doutrinas, enquanto os não crentes liminarmente
rejeitam os dogmas de fé, muitos crentes simplesmente não fazem caso deles.
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