Dom Quixote, o Cavaleiro
da Triste ou Heróica Figura
1 – Olá! Um dos mais belos e
significativos livros da literatura mundial é, sem dúvida, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha , de Cervantes (1547-1616). Tão belo e
significativo que, no ano em que saiu a lume (1605), logrou logo várias edições
em castelhano e em português, nesses tempos só ultrapassado pela Bíblia. Tão
belo e tão plurissignificativo é ele que, ao longo do tempo, cada época o tem
interpretado diversamente, sempre à sua própria maneira. Mas digamos que, em todo
o caso, o que mais ressuma da obra é um contínuo e intenso fio de ironia que
deriva do confronto entre o ideal e a realidade. Será que, no limite, a
imaginação ou o ideal cria as próprias realidades, ou são as realidades, sobretudo
quando necessárias, que submetem o ideal? Por outras palavras mais concretas:
aquilo que o cavaleiro D. Quixote imagina e quer são (vão ser) mesmo realidades
que ele vê (verá) à sua volta, ou são mera fantasia que ele alongou fora dele?
Em suma: D. Quixote deve ser para nós um modelo de herói, ou, pelo contrário,
ele é só “o cavaleiro da triste figura”?
Cada época viu de facto a obra à sua
maneira, se é que, na mesma época, ela não foi vista de diversas e até opostas
maneiras! Foi isto que aconteceu na famosa geração de 98 em Espanha, em que, de
um lado, entre outros intelectuais, apareceu Miguel de Unamuno (1864-1936), e
do outro surgiu Ortega Y Gasset (1883-1955).
2 - Segundo Unamuno, “a grande
rebeldia é a recusa da necessidade da morte e a apetência da imortalidade”; é
“a luta para alcançar a fé entre a vontade que não quer morrer e o cepticismo
racional que verifica a inevitabilidade universal da morte” (F. Savater; ver
também aqui o texto 18). Mas ao contrário de Unamuno, que valoriza o valor da crença,
Gasset, que é laico e racionalista, prefere a razão, a “razão vital”, pela qual
ele diz: “eu sou eu e a minha circunstância; se a não salvo a ela, não me salvo
a mim”.
E então, para Unamuno, a ardorosa personagem
D. Quixote, em vez de, pelos seus ideais e visões, ser uma caricatura posta a
ridículo ao longo de toda a obra, é antes herói e modelo para os outros homens,
enquanto que, para Gasset, (e também para o autor Cervantes) ela é uma figura
ridícula, ela é “o cavaleiro da triste figura”, que, em vez de sábio, é louco.
Para Unamuno e para a personagem D.
Quixote, o cavalo que devemos montar é a imaginação e a crença, e é montados
nesse cavalo que eles criam e vêem as suas “realidades”, que, afinal, na outra
perspectiva que é a de Gasset, são puras ilusões. Na verdade, para este e para
Cervantes, e também para a personagem Sancho, o cavalo que nos deve servir é a
razão, a “razão vital”, que nos faz a destrinça entre aquilo que simplesmente
imaginamos e depois acreditamos, e aquilo que realmente existe, ou seja, aquilo
que são as realidades necessárias, razão essa que, portanto, nos sabe
distinguir entre ilusões e realidades. A personagem Sancho, companheiro
inseparável do protagonista D. Quixote, chama-o constantemente à razão e às
realidades, convida-o incessantemente (mas sempre em vão) a assentar os pés no
chão. Porque, para o seu amo e também para Unamuno, é a imaginação, o impulso
do desejo e do coração e da vontade, tudo isso é que cria as realidades. Para
Sancho, estas realidades são mera fantasia.
3 - D. Quixote é o “cavaleiro da
triste figura”, como diz Cervantes e sugere Gasset, ou ele é o “cavaleiro da
heróica figura”, como ele próprio pensa e como pede Unamuno? Não haverá realidades
que resistam aos ideais do cavaleiro, ou seja, é tudo só como ele imagina e
quer, ou, pelo contrário, ele baterá um dia com a cabeça nas realidades?
Para Cervantes, ironicamente, “nenhum
cavaleiro foi tão bem servido de donzelas como D. Quixote”! Também é por
semelhante razão que um terrorista “mártir” tem mil virgens à sua espera! E não
será ainda por semelhante motivo que os crentes esperam com firmeza uma
vindoura e gloriosa bem-aventurança? Não custa nada imaginarmos existir aquilo
que mais desejamos.
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