sábado, 1 de dezembro de 2012

113 - D. Quixote


Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste ou Heróica Figura

1 – Olá! Um dos mais belos e significativos livros da literatura mundial é, sem dúvida, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, de Cervantes (1547-1616). Tão belo e significativo que, no ano em que saiu a lume (1605), logrou logo várias edições em castelhano e em português, nesses tempos só ultrapassado pela Bíblia. Tão belo e tão plurissignificativo é ele que, ao longo do tempo, cada época o tem interpretado diversamente, sempre à sua própria maneira. Mas digamos que, em todo o caso, o que mais ressuma da obra é um contínuo e intenso fio de ironia que deriva do confronto entre o ideal e a realidade. Será que, no limite, a imaginação ou o ideal cria as próprias realidades, ou são as realidades, sobretudo quando necessárias, que submetem o ideal? Por outras palavras mais concretas: aquilo que o cavaleiro D. Quixote imagina e quer são (vão ser) mesmo realidades que ele vê (verá) à sua volta, ou são mera fantasia que ele alongou fora dele? Em suma: D. Quixote deve ser para nós um modelo de herói, ou, pelo contrário, ele é só “o cavaleiro da triste figura”?
Cada época viu de facto a obra à sua maneira, se é que, na mesma época, ela não foi vista de diversas e até opostas maneiras! Foi isto que aconteceu na famosa geração de 98 em Espanha, em que, de um lado, entre outros intelectuais, apareceu Miguel de Unamuno (1864-1936), e do outro surgiu Ortega Y Gasset (1883-1955).

2 - Segundo Unamuno, “a grande rebeldia é a recusa da necessidade da morte e a apetência da imortalidade”; é “a luta para alcançar a fé entre a vontade que não quer morrer e o cepticismo racional que verifica a inevitabilidade universal da morte” (F. Savater; ver também aqui o texto 18). Mas ao contrário de Unamuno, que valoriza o valor da crença, Gasset, que é laico e racionalista, prefere a razão, a “razão vital”, pela qual ele diz: “eu sou eu e a minha circunstância; se a não salvo a ela, não me salvo a mim”.
E então, para Unamuno, a ardorosa personagem D. Quixote, em vez de, pelos seus ideais e visões, ser uma caricatura posta a ridículo ao longo de toda a obra, é antes herói e modelo para os outros homens, enquanto que, para Gasset, (e também para o autor Cervantes) ela é uma figura ridícula, ela é “o cavaleiro da triste figura”, que, em vez de sábio, é louco.
Para Unamuno e para a personagem D. Quixote, o cavalo que devemos montar é a imaginação e a crença, e é montados nesse cavalo que eles criam e vêem as suas “realidades”, que, afinal, na outra perspectiva que é a de Gasset, são puras ilusões. Na verdade, para este e para Cervantes, e também para a personagem Sancho, o cavalo que nos deve servir é a razão, a “razão vital”, que nos faz a destrinça entre aquilo que simplesmente imaginamos e depois acreditamos, e aquilo que realmente existe, ou seja, aquilo que são as realidades necessárias, razão essa que, portanto, nos sabe distinguir entre ilusões e realidades. A personagem Sancho, companheiro inseparável do protagonista D. Quixote, chama-o constantemente à razão e às realidades, convida-o incessantemente (mas sempre em vão) a assentar os pés no chão. Porque, para o seu amo e também para Unamuno, é a imaginação, o impulso do desejo e do coração e da vontade, tudo isso é que cria as realidades. Para Sancho, estas realidades são mera fantasia.

3 - D. Quixote é o “cavaleiro da triste figura”, como diz Cervantes e sugere Gasset, ou ele é o “cavaleiro da heróica figura”, como ele próprio pensa e como pede Unamuno? Não haverá realidades que resistam aos ideais do cavaleiro, ou seja, é tudo só como ele imagina e quer, ou, pelo contrário, ele baterá um dia com a cabeça nas realidades?
Para Cervantes, ironicamente, “nenhum cavaleiro foi tão bem servido de donzelas como D. Quixote”! Também é por semelhante razão que um terrorista “mártir” tem mil virgens à sua espera! E não será ainda por semelhante motivo que os crentes esperam com firmeza uma vindoura e gloriosa bem-aventurança? Não custa nada imaginarmos existir aquilo que mais desejamos.

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