VIII - A Sabedoria de
Jesus
1 – Olá! Há dois caminhos bem diversos, cada qual com
resultados bem distintos, para se falar da sabedoria de Jesus. Primeiro - Se
aceitarmos que Jesus é o Cristo, por um motivo de fé, então a sua sabedoria tem
o toque da excelência de um génio porque, além de ser simplesmente humana, ela
tem também uma fonte divina. Segundo - Mas, se entendermos que ele se fica só pela
linear natureza humana de que todos somos feitos – uma simples figura histórica
que até só podemos conhecer pelo contexto em que viveu, como pensa Aslan –
então a sua sabedoria, em qualidade, é semelhante à de qualquer outro messias
humano do seu tempo.
Começando nós pela segunda hipótese e incidindo a atenção em
Aslan, pode dizer-se que o relato que produz sobre este assunto é quase
arrasador. Provavelmente, diz ele, Jesus era um judeu sem instrução e até
analfabeto (p.72): talvez não soubesse ler nem escrever e só falasse aramaico,
embora tivesse alguns rudimentos de grego. Aqueles dois episódios de Jesus
“sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas” (Lc 2,46) e
ainda na (inexistente!) sinagoga de Nazaré, aí “entrando em dia de sábado e
levantando-se para ler” (Lc 4,16), são simplesmente fábulas.
Na adolescência e primeira juventude, Jesus terá sido uma
espécie de (ajudante de) pedreiro na construção da depois próspera cidade de
Séforis, não muito distante de Nazaré. Vemo-lo depois na companhia de João
Baptista, que terá sido seu amigo e mentor. Provindo de uma culta família
sacerdotal, João trocou essa sua condição por uma vida ascética no deserto, e
foi aqui e então que Jesus passou muito tempo, aprendendo com ele. Não sabemos
exactamente qual era a cultura de João e o que terá ensinado a Jesus. Mas com
certeza que, tendo sido oriundo de uma família sacerdotal, ele conheceria muito
bem as Escrituras e, assim, nelas terá introduzido Jesus, não sem que para isso
mesmo lhe ensinasse a ler e a escrever.
É claro que aquilo que os evangelhos da infância (e não só)
de Jesus pretendem - por força da fé dos evangelistas e depois também da dos
seus destinatários - é impor à figura de Jesus um toque de excepcionalidade,
mesmo até ao divino: a sua infância não fora igual à das outras crianças,
porque ele era, desde o seu nascimento e até antes dele, o Filho do Homem, o
Filho de Deus.
Mas Aslan não cede: não fugindo de uma rigorosa visão só
histórica e terrena, ele estuda os locais e o contexto histórico em que Jesus
vivera, concluindo depois que Jesus fora um simples agitador social e religioso
com repercussões políticas, como outros judeus do seu tempo.
2 - Quem tem páginas sublimes sobre a excelência do eu
psicológico de Jesus, assim denunciando a rara cultura desse mestre, é Augusto
Cury, quando, na sua obra A Fascinante
Construção do Eu, escreve sobre o gesto singular do Lava-Pés (Jo 13 ; ver texto 189).
Se perguntarmos em qual dos dois caminhos acima referidos se
encontrará este psicólogo e psiquiatra brasileiro, teremos de dizer que não
propriamente em nenhum, mas entre os dois, ou simultaneamente nos dois. Porque,
embora diga que não quer entrar em assuntos de fé e de religião, ele acede ao
episódio através do evangelho de João, que é uma fonte de fé e o menos
histórico e mais tardio dos evangelhos.
Na véspera ou vésperas da sua morte, tendo notado que, tardos
de entendimento como eram, os apóstolos ainda não tinham entendido a
profundidade do mandamento que lhes queria deixar – as palavras ensinam sempre
muito menos do que os gestos – pediu uma toalha e uma bacia com água, mandou-os
sentar em fila num banco e, de joelhos no chão, lavou-lhes os pés.
Este gesto específico atribuído a Jesus não deve ter sido
histórico, mas simplesmente inventado pelas primeiras comunidades
judaico-cristãs, que até já tinham na tradição gestos semelhantes. Mas tal
gesto insere-se naquilo que, de essencial, o Jesus histórico queria deixar aos
discípulos, e que era eles ficarem e estarem sempre ao serviço dos outros. E agora, sim. Agora, a outorga deste
mandamento por parte de Jesus deve ter sido mesmo histórica, porque, ao
contrário do episódio do Lava-Pés,
que só vem em João, ela consta também dos três evangelhos sinópticos (Mateus,
Marcos e Lucas).
E tal historicidade pode ser ainda mais vincada se
considerarmos que, para Tiago, irmão de Jesus e primeiro chefe da igreja de
Jerusalém e das demais igrejas cristãs já existentes, o que de mais importante
devia ser feito pelos cristãos era precisamente eles estarem ao serviço e
servissem mesmo os outros, começando pelos mais pobres e doentes. Parece não
haver dúvidas, portanto, de que Jesus tenha pregado e praticado o serviço aos
outros.
3 – No seu largo e profundo trabalho de desmitificação do Jesus
dos evangelhos – embora talvez nele ainda tendo deixado alguns dos seus próprios
mitos como já vimos no texto anterior, mas mesmo assim seguindo o primeiro
referido caminho que é o caminho da fé -, Bultmann, reflectindo sobre quais de
entre as muitas palavras dos evangelhos atribuídas a Jesus possam ser
autênticas, não tem dúvidas em seleccionar como tais as palavras de Mt5,38-48,
com as quais Jesus propõe a rejeição da retaliação e o amor aos inimigos (ver
texto 184).
Nunca ninguém até então, que se saiba, tinha proposto tal
doutrina. Palavras espantosas e radicais, com certeza, e que, se algum dia e
sobretudo hoje nesta barbárie vigorassem, seriam os fundamentos de uma
fraternidade universal. Não é fácil entender que tais palavras possam ter
nascido de uma indiferenciada comunidade, mas tão só de uma personalidade
forte, e também de um “manso e humilde coração”, que nelas se arrisque a si
própria e comprometa.
Aqui levanta-se, porém, de entre as páginas de O Zelota, a voz do seu autor a clamar
que é um “fantasioso disparate” atribuirem-se a Jesus a rejeição da retaliação
e o amor aos inimigos, já que esta doutrina e sobretudo a sua prática, nunca
vigoraram nas relações entre o povo judaico e as outras nações, por natureza
inimigas, pois não faziam parte do Reino de Deus.
Clama, mas com certeza sem razão! Porque, não sendo Jesus um
universalista – ele veio só para a Casa de Israel – ele está a pensar, não num
relacionamento entre nações ou povos, mas nas relações dos judeus entre si,
dentro do seu reino. É evidente que cada um dos judeus, dentro da sua pátria,
não seria anjo nenhum – anjo bom, evidentemente – para os outros. Bem sabemos
como é a natureza humana, mesmo entre irmãos de sangue ou de raça.
Pregou e praticou Jesus o serviço aos outros, ou seja, o
amor, e o mesmo fez Tiago por sua própria convicção e também por incumbência do
irmão Jesus. Eles quereriam completar a lei judaica; eles não quereriam fundar
uma nova religião.