3 – Falando de pessoas com um eu exemplar, o mesmo autor escreve: “As pessoas que brilharam no
seu eu desenvolveram-no
intuitivamente: Buda, Confúcio, Espinosa (…) Mas há uma pessoa em particular
que analisei e me deixou embasbacado. O seu eu
era tão fascinante que escolheu uma das piores espécie de alunos para ensinar
as funções mais complexas da inteligência”. E como sobreviesse ao mestre uma
inopinada e iminente aproximação da morte, “com os alunos tão mal preparados,
era-lhe impossível ensinar por palavras funções tão complexas”. Assim, e “para
assombro da psicologia e da ciência de educação moderna, quando as suas
palavras seriam estéreis, ele transformou-se numa metáfora viva e bombástica”.
Como nessa altura, nesse inolvidável “Lava Pés, nunca o silêncio gritou tão
alto e gerou em tão pouco tempo os mais nobres raciocínios complexos,
abstractos e indutivos; nunca o amor deixou o eco das palavras e se
materializou para alcançar pessoas que não conheciam a arte de amar”.
Mas em alturas
mais calmas da sua vida – dizemos agora nós -, o mesmo mestre Jesus, com
palavras que por certo foram mesmo por ele proferidas, soube firmemente
condenar a retaliação e propor o amor aos inimigos (Mt, 5 e textos 59 e 184),
isto é, superar a antiga e tão de hoje “lei de talião”, a lei do “olho por olho
e dente por dente”, e também propor “o amor aos inimigos”, coisa bem mais
difícil do que o amor a quem nos ama.
Que se saiba,
nunca ninguém tinha ensinado tais doutrinas, essas pedras de escândalo
sobretudo para as sociedades bem pensantes e poderes deste mundo, isso
constituindo, como é evidente, prova insofismável de que tais doutrinas são
autênticas e próprias desse Jesus, assim constituído como grande mestre da
humanidade. Na verdade, não retaliar e também amar os inimigos é a única
(impossível?) maneira de pararmos a violência, tanto ao nível individual, no
relacionamento de cada um consigo e com os outros, como também entre as nações
do mundo.
E se, em
alguma ocasião, tivermos de optar entre ser agredido ou ser o agressor – oxalá
nunca aconteça – bem melhor será para nós ser agredido, porque não há nada que
pague a paz da alma, a paz do nosso eu
bem formado.
4 – Mas Cluny
faz questão de dizer que não fala de Jesus, do lado de dentro de uma religião,
mas simplesmente do lado da história humana e na perspectiva de um psicólogo e
psicoterapeuta.
De facto, esse
mestre está ou pode estar presente na história humana e na nossa memória pelas
palavras como as que enunciaram a quebra da retaliação e o amor aos inimigos;
pelos gestos sem palavras como o do Lava Pés; pelo pão e pelo vinho que os
humanos podem comer e beber em memória dele; também pelas palavras ardentes e
pelos vigorosos gestos que expulsaram os vendilhões do templo da humanidade,
tão actuais entre nós nestes dias tão tristes. Presente ainda pela cruz e pela
morte, não porque por elas nos tenha salvo, mas por elas serem sinal daquilo
que as causou - aqui sim, a salvação -, a saber, os seus gestos e palavras de
amor, como os que atrás enunciámos. Na verdade, não é o sofrimento e a morte
que salvam, mas aquilo que se quer fazer e faz mesmo, por amor, ainda que, para
tanto, seja preciso sofrer e até morrer numa cruz.
Assim, se
Jesus salvou a humanidade, isso foi por lhe ter ensinado, por surpreendentes
atitudes, gestos, palavras e silêncios, como ela se poderá salvar a si própria.
Porque nem Deus lhe poderá fazer aquilo que a ela mesma compete fazer.
Lembremos ainda que, se esse mestre
amou assim tão profundamente a humanidade, é porque também profundamente a
soube conhecer … por conhecimento de amor (texto 187).