sexta-feira, 29 de novembro de 2013

193 - Almo Silêncio

O silêncio é como
 cera lisa
branda e dócil
onde sulcos
se abrem
 de sons,
não muitos,
levemente:

O som do arrulhar da rola,
do rouxinol suspenso
da beleza da manhã,
alguns pingos de som
de harpa, não mais,
o chilreio de uma criança.

Vêm depois a brisa leve
e a morna água da luz
delir bem esses sulcos,
outra vez deixando
lisa a cera
do silêncio

Porque nada mais pode
ferir o silêncio:
alma mãe
 da vida
o silêncio




Nota: Este texto tem afinidades com os textos 100, 103 e 138, e dedica-se especialmente a uma turma de ioga, incluindo, é claro, a Paula Duarte, uma professora sábia.

sábado, 23 de novembro de 2013

192.4-6 - Seis Rosas dos Jardins de Adónis

4 – Bento de Espinosa, polidor de lentes, filho de família judaica foragida do Portugal católico para a Holanda, diz que o nosso espírito é o conjunto das nossas ideias – confusas e imperfeitas quase todas por serem temporais, mas também algumas cristalinas, perfeitas e portanto eternas. E nós acrescentamos que o florir dessas ideias ou o iluminar dessas luzes, que é a actividade de pensar, também já é espírito.
Mas todas essas ideias, que são flores ou luzes, como também a actividade de pensar, tudo será temporal e nada eterno. A não ser que tudo seja eterno, sim, mas só com a eternidade de um dia, como as “rosas dos jardins de Adónis”, de Fernando Pessoa - Ricardo Reis, para as quais a luz é eterna porque “nascem nascido já o Sol, e acabam / antes que Apolo deixe / o seu curso visível”.

5 – Nós somos realmente dotados de espírito, o qual é a realidade espiritual que produz o pensamento. Mas os pensamentos são só pensamentos, os quais portanto, enquanto tais, só existem como abstracções. Portanto, mesmo as “ideias eternas e imutáveis” não são mais que simples ideias, puras abstracções, como aliás são também os números e as figuras geométricas. Por isso é que a Matemática e a Geometria são ciências puras, pois lidam só com abstracções. Será também o caso da Metafísica, porque o ser, enquanto tal, só existirá realmente nas concretas realidades.

6 – Mas é claro que as ideias da Filosofia e sobremaneira da Metafísica, nas nossas mentes, podem ser devastadoramente poderosas. “Nada detém uma ideia quando chega a sua hora”, como alguém dizia. Os horrores perpetrados contra a humanidade por Estaline e por Hitler e pelos seus sanguinários salafrários, horrores perpetrados em nome de hediondos ideais, estão aí indelevelmente vivos, na sua descarnada crueldade contra crianças, mulheres e homens concretos e inocentes. Assim como, felizmente, também concebemos ideias e ideais poderosamente bons e belos, como é o de pensarmos uma boa justiça, uma justiça eficaz para julgar os crimes cometidos contra a humanidade, bem como outras poderosas ideias que nos conduzem a mais esferas de beleza e de bondade, a fim de que a humanidade floresça e se ilumine.

As ideias não são coisas, coisas do mundo da física, pois que, sendo do domínio da “meta-física”, elas estão para além daquela. Não são do mundo físico, mas dele nascem e a ele conduzem. Ideias e coisas boas e belas, de preferência.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

192.1-3 - Seis Rosas dos Jardins de Adónis


Olá, amigas e amigos! Hoje oferecem-se rosas, e são para quem as quiser colher. São poucas, é verdade, mas dão para muitos.

1 Nós, os humanos, temos a capacidade de conhecer: não podemos considerar-nos absolutamente cépticos, apesar das ilusões que por vezes nos pregam os sentidos. Pois então, se os outros animais conhecem o suficiente para saberem governar a sua vida, nós não havíamos de conhecer e saber? Se assim não fosse, a evolução ter-nos-ia corrigido, seguindo outro caminho, o caminho certo para podermos conhecer e, assim, governarmos a nossa vida.

2 – Todo o animal, sobremaneira o humano, tem uma grande curiosidade em saber. O que é natural, pois se trata de conhecer suficientemente bem o mundo em que vive, o seu habitat. A evolução apetrechou-o dessa curiosidade necessária. Quanto ao homem, porém, a religião, logo desde o pecado original por se ter comido da árvore da ciência e do saber, luta contra essa congénita curiosidade, propondo a crença e limitando a ciência.


3 – Cobrimos de aura, de mito e de mistério as coisas, para darmos campo ao desejo, à imaginação e ao sonho. Chamam a isso mistério, ao qual se pode aderir pela fé. Esta será por exemplo a posição de João Maia, escrevendo sobre o pensador Alain (ver Enciclopédia Verbo). É também a posição de Pascal, de Kant e de Kung: para darem lugar à fé, interrompem o labor da razão. É o desejo a prevalecer sobre a razão.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

190 - Para Além do Limiar das Palavras

É doce passear agora pelos campos,
com os diospiros fulgurando ao sol
na mãe quase despida de folhagens;
os ouriços dos castanheiros se abrindo
para nos darem as filhas prometidas;
os vergéis húmidos pelas primeiras chuvas,
ávidos das habituais sementes …

Mas depois, já no abrigo aconchegado
de casa, pela tardinha, a delícia é outra:
em profundas e lentas expirações,
 descendo a gostosas apneias, me liberto
do que em mim é nocivo ou superflui,
me tornando em “consciência de ser”
num agora sem espaço nem tempo

No oceano da energia do universo,
úbere oceano, aí então navego
 solto, sem barco, como que indistinto,
aí navego e mergulho

No princípio de tudo e do tempo,
no limiar das palavras
e no agora que elas nos induzem,
bem mais fecundo  do que elas,
é sempre o verbo primordial,
o verbo da energia universal



sábado, 9 de novembro de 2013

189. 3-4 - A Excelência de um Eu

3 – Falando de pessoas com um eu exemplar, o mesmo autor escreve: “As pessoas que brilharam no seu eu desenvolveram-no intuitivamente: Buda, Confúcio, Espinosa (…) Mas há uma pessoa em particular que analisei e me deixou embasbacado. O seu eu era tão fascinante que escolheu uma das piores espécie de alunos para ensinar as funções mais complexas da inteligência”. E como sobreviesse ao mestre uma inopinada e iminente aproximação da morte, “com os alunos tão mal preparados, era-lhe impossível ensinar por palavras funções tão complexas”. Assim, e “para assombro da psicologia e da ciência de educação moderna, quando as suas palavras seriam estéreis, ele transformou-se numa metáfora viva e bombástica”. Como nessa altura, nesse inolvidável “Lava Pés, nunca o silêncio gritou tão alto e gerou em tão pouco tempo os mais nobres raciocínios complexos, abstractos e indutivos; nunca o amor deixou o eco das palavras e se materializou para alcançar pessoas que não conheciam a arte de amar”.
         Mas em alturas mais calmas da sua vida – dizemos agora nós -, o mesmo mestre Jesus, com palavras que por certo foram mesmo por ele proferidas, soube firmemente condenar a retaliação e propor o amor aos inimigos (Mt, 5 e textos 59 e 184), isto é, superar a antiga e tão de hoje “lei de talião”, a lei do “olho por olho e dente por dente”, e também propor “o amor aos inimigos”, coisa bem mais difícil do que o amor a quem nos ama.
         Que se saiba, nunca ninguém tinha ensinado tais doutrinas, essas pedras de escândalo sobretudo para as sociedades bem pensantes e poderes deste mundo, isso constituindo, como é evidente, prova insofismável de que tais doutrinas são autênticas e próprias desse Jesus, assim constituído como grande mestre da humanidade. Na verdade, não retaliar e também amar os inimigos é a única (impossível?) maneira de pararmos a violência, tanto ao nível individual, no relacionamento de cada um consigo e com os outros, como também entre as nações do mundo.
         E se, em alguma ocasião, tivermos de optar entre ser agredido ou ser o agressor – oxalá nunca aconteça – bem melhor será para nós ser agredido, porque não há nada que pague a paz da alma, a paz do nosso eu bem formado.

         4 – Mas Cluny faz questão de dizer que não fala de Jesus, do lado de dentro de uma religião, mas simplesmente do lado da história humana e na perspectiva de um psicólogo e psicoterapeuta.
         De facto, esse mestre está ou pode estar presente na história humana e na nossa memória pelas palavras como as que enunciaram a quebra da retaliação e o amor aos inimigos; pelos gestos sem palavras como o do Lava Pés; pelo pão e pelo vinho que os humanos podem comer e beber em memória dele; também pelas palavras ardentes e pelos vigorosos gestos que expulsaram os vendilhões do templo da humanidade, tão actuais entre nós nestes dias tão tristes. Presente ainda pela cruz e pela morte, não porque por elas nos tenha salvo, mas por elas serem sinal daquilo que as causou - aqui sim, a salvação -, a saber, os seus gestos e palavras de amor, como os que atrás enunciámos. Na verdade, não é o sofrimento e a morte que salvam, mas aquilo que se quer fazer e faz mesmo, por amor, ainda que, para tanto, seja preciso sofrer e até morrer numa cruz.
         Assim, se Jesus salvou a humanidade, isso foi por lhe ter ensinado, por surpreendentes atitudes, gestos, palavras e silêncios, como ela se poderá salvar a si própria. Porque nem Deus lhe poderá fazer aquilo que a ela mesma compete fazer.
Lembremos ainda que, se esse mestre amou assim tão profundamente a humanidade, é porque também profundamente a soube conhecer … por conhecimento de amor (texto 187).


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

189. 1-2 - A Excelência de um Eu

1 - Olá, amigas e amigos! O eu mental do ser humano é a realidade mais fascinante que os humanos desde sempre já encontraram, ou melhor, já vislumbraram no Universo. A realidade mais fascinante, mas também a mais complexa. E no entanto, o eu de cada um é só uma realidade mental, resumindo-se basicamente a um frágil feixe de percepções de experiências que foram acontecendo e que, ligadas pela memória, (eu) posso dizer que aconteceram comigo, assim me constituindo.
         Tão importante é ele que, no que toca ao aperfeiçoamento espiritual dos humanos, uns dizem que o temos de apagar, de o ir apagando, e outros de o ir constituindo e aperfeiçoando. É o que já referimos no texto 177, onde também explicitámos a nossa humilde opinião: afirmá-lo e aperfeiçoá-lo - sim, senhor -, mas, a espaços, também o sabermos esquecer para abraçarmos o mundo, para sermos só esse mesmo abraço. Sim, durante alguns momentos, quantas vezes quisermos, sermos só esse abraço ao mundo, essa consciência amorosa do universo.
         Na realidade, o eu não é uma “coisa-em-si”, no sentido de nele haver um miolo ou substância metafisicamente a nós inacessível, mas tão só aquilo que dele nos vai aparecendo – e pouco ainda é - começando pela sua base: a mais ou menos unificada memória de percepções que posso chamar minhas, conforme já acenámos em vários textos (169, 171, 173, 180).
         Andamos à procura de riquezas e de jóias no universo, olhando para fora, para o macrocosmos, e não temos olhado para a jóia quase divina que se esconde no mais íntimo de nós! Jóia, sim, a mais bela e melhor do mundo, se o eu for bem constituído e formado. Mas também ao contrário, se ele for mal constituído e deformado, ele redundará naquilo que de mais horrendo existe.

         2 - Quem escreveu de uma forma profunda e sublime sobre como construir e aperfeiçoar o nosso eu foi Augusto Cury, em A Fascinante Construção do Eu.
         Entre o muito que o autor diz sobre o assunto, consideremos aqui a forma como o eu deve reagir com quem lhe faz ou fez mal, sabendo nós, de antemão, que muitas vezes o pior inimigo do eu é ele próprio. E então, o autor diz que, em todos os casos, “desviar o pensamento ou tentar distrair-se para superar conflitos e traumas pessoais é a pérola das técnicas populares”. Mas isso muitas vezes não resulta, acrescenta ele, e até pode recalcar mais o problema porque “o registo na memória não depende do eu, e tudo o que evitamos ansiosamente será intensamente arquivado”.

         Em relação aos outros – no caso da calúnia ou de outro mal que por eles nos possa ser causado – Cluny diz que não podemos “pautar as nossas relações pelo binómio bateu-levou”. E sobre este assunto, na nossa relação connosco mesmos e com os outros, ele aconselha nunca tentarmos apagar os nossos arquivos mentais, porque tentar apagar é afundar o sulco negativo já existente na mente.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

188 - Elogio da Vida

Há o líquido e lento
marulhar da água
num recanto marinho
entre areias e rochas
e os pés de uma criança

Há a luminosa estrela
entrando numa gruta
marinha, pela cúpula,
se banhando e mergulhando
nas azuladas águas de cristal

Baila o barco nas águas
elas bailantes na alta gruta
até às paredes onde crescem
sombras líquidas réstias de sol
a morna luz de ouro da tarde
em demanda de búzios e de estrelas
de conchas se abrindo em pérolas
profundas brilhantes
no liso fundo de areia

Alternando com o sol, fria e bela
vem a lua nocturna
juntar-se ao líquido baile
toalha de leite a ondear
na gruta brandamente,
sombras raiadas de láctea luz
nas paredes, bailando com o silêncio

Líquida beleza
diurna nocturna
tanta
em ambiente marinho
 berço morno da vida



Nota: Este texto foi escrito em memória de meus pais: Manuel Agostinho e Maria da Glória.