segunda-feira, 1 de outubro de 2012

95 - Uma Ágape Laica


1 - Olá! Há descrentes que olham com fascínio para as religiões por verem que, ao contrário da sua e nossa sociedade secular, elas têm sabido cativar as atenções das pessoas, acolhê-las e acompanhá-las por todo o curso da sua vida, satisfazer enfim as suas duas profundas necessidades existenciais, que são necessidades de todo o ser humano: cada um sentir-se ligado a outros integrando uma comunidade, e cada um descobrir o sentido do sofrimento e da morte.
Por isso, nesta nossa sociedade das grandes e megacidades mas que vive em solidão, nesta sociedade que a todo o transe quer fugir à dor e ao sofrimento mas se martiriza a si própria e sobretudo desconhece o sentido da morte, não poucos descrentes já existem que, ávidos de sabedoria para viverem e muito embora não aceitem os dogmas das religiões, destas procuram recolher muitas das suas boas práticas.
Este é o caso de Alain de Botton, em seu livro Religião para Ateus, o qual me trouxe inspiração para esta como que, e sem ofensa, “Missa Laica”. Em parêntese digamos que, nos primórdios do cristianismo, ágape era a refeição-convívio em que os primeiros cristãos recordavam a vida, a morte e também a ressurreição de Jesus, a qual refeição deu depois a missa dos cristãos.

2.1 – À entrada do salão de festas, o mestre-de-cerimónias – mestre e não celebrante porque todos os convivas é que vão ser os celebrantes – acolhe toda a gente que quis vir e participar no encontro. E depois de já todos estarem sentados, ainda o mesmo profere algumas breves mas sentidas palavras de entrada na celebração, provavelmente em mais que uma língua já que haverá concelebrantes de várias nações e línguas, talvez até desconhecidos uns dos outros, e também de diversos estratos sociais.
         No primeiro passo da celebração, o mestre-de-cerimónias convida os presentes a limparem de maldades e inutilidades as suas mentes, a perdoarem-se uns aos outros e a si mesmos, a sentirem-se tranquilos e em harmonia consigo mesmos e com toda a vida, tudo isto em breves momentos de profundo silêncio.

2.2 - Vem depois, propriamente, a “Liturgia da Palavra”, em cujas leituras se presentifica o sagrado que há na vida, em toda a vida do planeta, nossa casa comum: o sagrado que faz acordar os abrolhos das plantas no início da Primavera; o que leva uma gatinha a proteger as suas crias transportando-as nos dentes para lugar seguro quando em perigo; o que decide o ser humano a dar a sua vida para salvar um outro ser humano; ainda o que leva a acusarmos de sacrílego quem ofende mortalmente um indefeso desconhecido.

2.3 - Chega agora o momento de uma prédica, que, também nestes casos, será habitual. E então, como neste dia estão presentes vários professores, o mestre-de-cerimónias dá a palavra a uma senhora professora para falar a toda a gente: “Nós, que somos professores de Humanidades – de Filosofia, Literaturas, Geografia Humana, Artes, Antropologia, História – chegámos à conclusão de que não podemos ensinar as matérias aos alunos de uma forma neutra, só teórica, mas de forma que as matérias sejam úteis, sejam ligadas à vida dos alunos.
“Ao contrário da sociedade medieval, em que a religião era exímia em inventar instrumentos públicos de educação moral e doutrinal – via-sacra, quadros e painéis murais nas igrejas e nas ruas das cidades e aldeias, onde ainda se vêem cruzeiros, nichos, alminhas, muitos exemplos de toponímia, e sem ainda esquecermos todo o culto e os mandamentos e os sacramentos, com tudo isso impregnando a vida na sua totalidade -, a nossa sociedade secular não admite intromissões públicas na vida privada. Não admite, mas ela própria, em contradição, vive submersa em propaganda publicitária de todo o género: é a política, a económica, a financeira, a alimentar, a de muitos outros campos até aos mais íntimos, sempre tentando convencer e criar hábitos às pessoas.
“Quer dizer, em comparação com a religião, noutros tempos, a cultura de hoje ainda não sabe educar, isto é, não sabe orientar, humanizar, consolar as pessoas. Não sabe porque, muito embora tenha muitos e bons materiais para o efeito, nunca se interessou, utilizando esses meios, por ensinar a viver. Em suma, nas nossas universidades, a cultura não tem estado ao serviço da sabedoria. Ora, é mesmo isto que nós pretendemos começar a fazer. Em cada uma das nossas especialidades humanísticas, em conteúdos e métodos, há muito por onde proporcionar aos alunos esse conhecimento gostoso e bom para guiar e alimentar espiritualmente a vida, o qual é a sabedoria”.
No final das palavras da professora, e depois de alguns colegas presentes darem breves exemplos práticos relacionados com as suas especialidades, estabeleceu-se um breve diálogo entre todos os comensais. Uma opinião por todos apreciada foi a do professor de Artes quando se referiu aos museus: que, em vez de serem só “espaços para expor objectos belos”, os museus deviam ser lugares que usam objectos belos para “tentar tornar-nos bons e sábios”.


2.4 - Na Carta dos alimentos a servir e presente em todas as mesas, pode ler-se, antes de mais, que todos os alimentos são de origem biológica, dados portanto directamente por esta nossa querida Terra, sem quaisquer aditivos nem contravalor acrescentado. A temperar os alimentos há várias ervas aromáticas colhidas de uma horta comunitária, vai comer-se pão integral cozido em forno a lenha, beber-se sumo de uva e não propriamente vinho, e também água de uma ainda não contaminada fonte de montanha.
Mas na Carta onde constam os alimentos do repasto, há também alguns conselhos, se não são mesmo ordens. “Durante a refeição, não se fale de política, nem de agências de rating, nem da Troika, nem de taxas interbancárias, nem dos sentimentos (!) das Bolsas a subir e a descer, enfim, nada que se prenda com dinheiro. Quando muito – e isto até convirá fazer-se – deve jurar-se que o dinheiro é o sangue da economia e das nações, e que não se pode negociar com o sangue”. E ao invés de se falar daqueles e de outros assuntos perturbadores, procure criar-se um ambiente de maior interioridade e até intimidade, com base em perguntas como: “O que é que lamenta especialmente no mundo de hoje? Quais são os seus principais temores? Em que casos é que não consegue perdoar?”.

2.5 - A sala está singelamente adornada, mas de forma muito significativa. Na parede do fundo, há um belo quadro de uma senhora jovem e doce com um menino ao colo. Não é a Virgem Santa Maria dos cristãos, nem é a Ísis dos egípcios, nem a Deméter dos gregos, mas sim e simplesmente uma intemporal figura feminina, imagem ideal de mãe que nos pode saciar a fome de ternura que desde a infância e até hoje nos ficou. No outro topo da sala, na parede que aí se levanta do lado da entrada – vê-se daqui muito bem -, avulta simplesmente uma grinalda de flores e de folhagens, das que a pródiga Natureza ainda nos vai oferecendo pelos campos, apesar dos ultrajes que nela estamos perpetrando.
 Mas nas outras duas paredes, o adorno é outro. Em folhas de cartão grosso e branco coladas à parede, podem ler-se máximas que por certo nos orientarão na vida: “É melhor sermos pessimistas moderados do que exageradamente optimistas”. “A Astronomia é uma grande fonte de sabedoria. É que nós, os humanos, não somos a medida de todas as coisas, pois muito no Universo nos transcende. As estrelas são-nos valiosas também “para enfrentarmos a nossa megalomania, auto-piedade ou ansiedade””. “A nossa sociedade secular pode conhecer uma imensidão de coisas, mas ela não é sábia”. “A maior falha do nosso mundo é o seu exagerado optimismo. Por isso, o pecado original continua a ser uma fábula educativa”.
E a rematar todo o adorno existente a envolver os comensais, vê-se no tecto da sala uma imagem espacial da Terra, o nosso pequenino planeta azul, entre outros planetas e muitas estrelas.

2.6 - Introduz-se agora, na sala, o assim denominado “pão da partilha”. É um pão grande enriquecido de ervas doces e amargas, a ser partido em pequeninos para todos os companheiros presentes. Mas antes de ser partido, o mestre-de-cerimónias lembra que cada fragmento do pão representa a Humanidade inteira e partilhada que, cada um, com respeito e pundonor, deve guardar e promover em si e na sua relação com os outros humanos e também com todo o planeta. E então, depois de o partirem, a cada um e a cada uma é levada e oferecida uma pequenina fatia - alimento espiritual desta nossa vida humana amarga e doce -, e todos a comem em silêncio, num silêncio em que cada um com certeza sente, profundamente, o palpitar da sua própria respiração, da respiração da vida por todos partilhada, coisa mais bela e básica, para nós, que todas as congeminações mentais que habitualmente formulamos e depois costumamos reter, entupindo as nossas mentes.
Termina-se a celebração com o abraço da vida, da vida breve que nos possui neste planeta azul, conforme já se refere no subtítulo deste blog.

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