quarta-feira, 8 de agosto de 2012

80 - O Brutamontes do Tempo


1 - Olá, amigas e amigos! Ainda não há muito tempo, a imprensa noticiou-nos que o romance A Visita do Brutamontes, de Jennifer Egan, ganhou, em 2011, “dois dos mais cobiçados prémios a que os escritores norte-americanos podem aspirar: o National Book Critics Circle Award e o Pulitzer de Ficção” (Expresso, 14-4-2012).
Nesse trabalho informativo, e já propriamente em relação ao livro em referência, o jornalista começa por dizer que, em parte, tais distinções se deverão à “natureza não linear do livro, uma reflexão sobre a passagem do tempo e os efeitos que ela provoca numa vasta galeria de personagens”. E logo a seguir, o jornalista inicia uma entrevista telefónica à autora, começando por afirmar e perguntar: “Este é um livro sobre o tempo, os seus efeitos e a forma como é percepcionado por pessoas muito diferentes. O que a levou a escolher este tema”? “Eu sinto que não escolhi propriamente o tema do livro”, responde a autora, “foi ele que me escolheu a mim (…) De certa forma, todos os romances são sobre o tempo. A passagem do tempo é sempre uma componente essencial de qualquer processo narrativo. Agora, em “A Visita do Brutamontes”, quis justamente fazer do tempo a questão central do livro”. A seguir, o jornalista alude a que “a narrativa vai da São Francisco dos anos 70 até à Nova Iorque dos anos 2020”. De facto, “algumas das histórias (do livro) projectam-se no futuro”, responde a autora, “mas não se pode abusar desse espreitar lá para a frente, que tem qualquer coisa de sádico”.
Já fora da entrevista, num texto que se lhe segue, o mesmo jornalista escreve: “O mais espantoso nesta ficção (…) é que Egan nunca perde o sentido do tema que atravessa todas as histórias dispersas do seu livro: o tempo enquanto agente de mudança que tanto pode maltratar-nos (é ele o “Brutamontes” do título) como redimir-nos, às vezes inesperadamente”. E completa o seu texto dizendo que “o livro termina numa Nova Iorque futura, na década de 2020, com um concerto junto ao “Ground Zero” reconstruído”; mas acrescenta que “a música que fica a pairar” é outra: é a do “zumbido da cidade, mistura de taipais a serem corridos, cães a ladrar roucamente e camiões a passar sobre as pontes, que é o som do tempo a passar”.

2 - É então o tempo um brutamontes, o brutamontes do tempo que a todos os momentos da nossa vida nos “visita”. Mas o que será um brutamontes? Segundo os dicionários – não é preciso investigar muito –, brutamontes é um “homem selvagem e estúpido”, uma “pessoa rude e malcriada”, um “alarve”, uma “pessoa grosseira e violenta”. Será então o tempo uma pessoa como essas, a quem nós podemos chamar Brutamontes? Autora e jornalista não chegam a esse ponto, mas vão dizendo que o tempo é um agente de mudança que tanto pode maltratar-nos como redimir-nos. Mas como a autora chama Brutamontes ao tempo, é de presumir que, às personagens e também a nós, ele provoque mais danos do que redenções. Aliás, aquilo de, por sistema, a autora ter evitado olhar e mostrar as personagens no seu futuro por isso lhe parecer um acto de sadismo, é prova disso mesmo.
Mas será que o tempo nos causa mais danos do que redenções? Lembremos o caso de um bebé acabado de nascer. Durante todo o seu crescimento, até à idade adulta, ele está sempre adquirindo novas competências, para se realizar o melhor possível, como pleno ser humano. E então, toda aquela permanente “visita” que o tempo lhe vai fazendo, não só durante esse seu crescimento como ainda durante os nove meses de gestação não lhe é especialmente favorável?
 Porque é que achamos que o tempo nos causa mais mal que bem? Entre o mais, não será porque não sabemos estimar os bens que ele nos dá, como é o caso da nossa saúde, a qual só a valorizamos devidamente quando a perdemos? Somos mais sensíveis ao mal que nos acontece, do que ao bem que vamos tendo, não é? E só responderemos cabalmente à questão de sabermos se o tempo nos faz mais mal que bem, ou o contrário, quando, simultaneamente, respondermos a uma outra … que afinal é a mesma: precisamente a de sabermos se vale a pena viver esta nossa vida mortal, ou não!
O que é então esse tempo que, durante toda a nossa vida, nos está visitando? Será ele um agente de mudança? Será mesmo ele que nos causa mal ou bem? Que entidade é essa, a do tempo?

3 - Se comparamos o ser do tempo a todos os outros seres do nosso mundo, seres materiais, o tempo não existe! Então, esse Brutamontes não existe? O que realmente existe são todos os seres materiais, seres corpóreos como também nós somos. E depois, nós humanos é que concebemos o tempo: porque o tempo é só uma nossa abstracção! Como seres concretos e materiais, nós somos seres feitos de vicissitudes ou mudanças, seres feitos de movimento tanto no corpo como na mente, para melhor ou para pior. Ora, nós concebemos o tempo precisamente para com ele podermos medir essas mudanças ou vicissitudes, medir esses movimentos na sua relação com o antes e o depois. De maneira que, como o tempo será só uma medida, não pode ser ele o agente das mudanças, nem será ele a causar-nos qualquer mal ou bem! O tempo é só a medida desse movimento. Se nós, seres humanos, não tivéssemos concebido o tempo, ou simplesmente não existíssemos, também ele não existiria; só existiria o movimento dos seres corpóreos, da Terra e do Universo. Os outros seres também sofrem e produzem mudanças em si mesmos e na sua envolvência, mas não medem e relacionam temporalmente esses movimentos (ver texto 62.2).
Hoje e agora mesmo, os outros seres materiais e nós também, todos somos e estamos de uma maneira, para logo a seguir sermos e estarmos doutra. Somos todos seres de barro, ou de energia e de matéria, se quisermos; seres sempre amassados de e em mudança; e o tempo é essa medida que inventámos para medir, para tentar medir essas mudanças, segundo o antes e o depois.
Não somos seres eternos, fora deste jogo, mas sim seres temporais, seres de tempo, a cada passo seres a nascer e/ou a morrer, a crescer e/ou a degradar-se. Mas não somos “seres-para-a-morte”, não, mas sim “seres-para-viver”, embora uma vida mortal. Viver vida mortal, não sozinhos, em solidão, mas como companheiros de todos os outros seres do mundo, especialmente com os humanos comendo o pão da vida que nos foi dado para comermos, pão feito de farinha, mas também de vicissitudes e tempo.
Vale a pena viver isso, viver assim? O Brutamontes espreita sempre, mas em rigor, ele não nos espreita nem “visita”! Não, porque ele está sempre dentro de nós, por sermos barro amassado em vicissitudes e tempo. Brutamontes, portanto, não propriamente inimigo mas companheiro do homem; Brutamontes, o homem mesmo!


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