1 - Olá! Naquele tempo frio de
Inverno, o meu pai chamou e disse-me assim: Vais
comigo amanhã à feira. Era isto nas férias do Natal do meu terceiro ano de
seminário; era isto quando eu tinha treze anos e picos, e já era friorento; era
ainda quando eu e os meus colegas passávamos lá dentro o tempo, ora sentados no
salão de estudo a ler os livros e a bichanar com os colegas vizinhos, ora
sentados no refeitório a beber o caldo e a comer a côdea de pão mas sem nunca
passarmos fome nem sede, ora de joelhos ou sentados na capela - tão
confortavelmente sentados que até escorregávamos dos bancos sonolentos -, ora
ainda e finalmente à solta pelos recreios ou jogando à bola, a ela acorrendo em
molho e algazarra.
Andas mal calçado, e por isso vou comprar-te umas botas novas. Eu delirei com este anúncio das
botas novas, até porque nunca tinha tido botas, muito menos umas botas novas.
Desde que me conheci, eu começara por andar descalço, depois a calçar tamancos
ou alpercatas, e finalmente sapatos, mandados fazer por medida ao Domingos
sapateiro, quando levantei asas e pousei no seminário. Mas botas, botas
confortáveis e quentinhas, daquelas fofas por dentro e a subirem acima dos
artelhos, nunca, mesmo nunca. De modo que logo me senti a não caber em mim de
contente, já me imaginando com os pés dentro das botas fofas e novas!
Vou comprar-te umas botas um bocado avantajadas, porque já reparei que
estás a começar a crescer. Bem visto era este pormenor, comecei a pensar. Bem visto porque,
realmente, eu estava entrando na medrança para rapazola, estava a senti-lo
muito bem, e por isso, era de presumir que também depressa me alongassem e
alargassem os pés.
2 - E assim voltei para o meio dos
colegas, pensando que ia fazer um figurão com umas botas novas. Pensava, mas
logo as contas me saíram furadas: Eh pá,
que botas grandes tu trazes! Tens pé que
chegue para encher isso tudo? Ai, meu amigo - pensei eu para mim, já um
tanto desiludido -, isto não está a correr nada bem! E como realmente os dedos
dos pés não chegassem bem à ponta das botas, sucedeu que, com o contínuo andar
e com uma topada ou outra nas pedras das calçadas, as pontas das botas deram em
elevar-se, como fossem proas de barquinhos!
Ouve lá, onde arranjaste essas traineiras? São para ires à pesca? E de tanto e a tantos parecerem e
até serem as botas umas traineiras, facilmente esse nome se descolou das botas
e ficou colado ao seu dono!
3 - Nos princípios do terceiro
período de cada ano lectivo, quando ainda nos sentíamos confortados com os ovos
e os bolos e outras farturas da Páscoa, era costume realizar-se o campeonato de
futebol inter-anos. Os alunos de cada um dos cinco anos escolhiam e organizavam
a sua equipa, e os embates processavam-se com muita animação.
Os alunos do terceiro ano eram ainda
todos franzinos, novinhos e pequenos. Todos, com excepção de um, o João
Fernando, que já era um matulão, já entrado nos vinte, e que por isso até fazia
parte da prefeitura dos alunos mais velhos, os alunos do quinto ano.
E quando foi para recrutarmos e
organizarmos a nossa equipa do terceiro ano, o João Fernando tomou a dianteira
e foi escolhendo este e aquele e aqueloutro, segundo as habilidades de cada um
e com a anuência de todos. Foi escolhendo, começando logo por si para
avançado-centro e artilheiro da equipa, até encalhar na escolha do derradeiro
jogador, que devia servir a ponta-esquerda. E ao dizer a todos que, para esse
posto, convinha arranjar-se um esquerdino, logo os olhos de todos se voltaram
para mim. E eu que, embora já desse uns toques mas fosse muito franzino e mal
pudesse com a pesada bola de couro, tive de aceitar, jogando de sapatilhas,
claro está, como os outros, e não com o par das minhas botas.
4 - No dia do grande derby entre a
nossa equipa do terceiro ano e a dos matulões do quinto, acossado pela guerra
psicológica com que os quintanistas o tinham causticado nas vésperas, o João
Fernando entrou furioso e destemido no campo e, logo abrindo brechas na muralha
defensiva do adversário, meteu dois golos quase de rajada, nos primeiros dez
minutos de jogo.
Mas o ímpeto guerreiro não nos ficou
por aí, pois que, durante todo o primeiro tempo, houve outros trechos de luta,
deveras encarniçados. Destes, o último nasceu de uma ardorosa escaramuça na
grande área adversária, que desembocou numa bola para canto. E logo depois,
como este canto se devia marcar do lado esquerdo, aí vai este escriba - nesses
tempos menino franzino jogando a ponta esquerda - apontá-lo. O senhor árbitro
apronta o esférico, colocando-o no sítio. E o menino, agora já atrás da bola, observa
muito bem o sítio da baliza e a multidão de jogadores que enxameia a grande
área, tendo ainda tempo para ver dois grandes braços levantados, e para ouvir, saindo
de entre esses braços, a voz do João Fernando: Força, Traineira! E então, visando de novo o sítio da baliza, o
menino recua um tanto para poder tomar balanço – só um tanto e não mais por
haver atrás de si um bojudo e inamovível tronco de plátano –, e desfere um
ardiloso biqueiro em direcção à baliza. E não é que, desenhando um arco, a bola
vai entrar na baliza sem ninguém mais lhe tocar – talvez o bafo leve da aragem,
talvez o acaso - fazendo o terceiro golo!
Instantaneamente, uma ovação gigante
estrondeou à volta do recinto. Ovação que – creio eu agora – não coroava só
este terceiro golo, mas também o primeiro e o segundo, três a zero, três golos
da equipa dos miúdos, sem qualquer resposta dos graúdos! E então, lá dentro do
campo, o João Fernando, - pesando bem o surpreendente score com que se estava
terminando o primeiro tempo do jogo, e desforrando-se da ralação que os
quintanistas lhe tinham infligido nas vésperas do jogo, gritou alto e bom som voltado
para eles: Querendes ganhar mas num
hendes!
A segunda parte do jogo não foi nada
interessante, sobretudo se medirmos esse interesse com a medida do nosso gosto
e desejo. O adversário meteu um, dois e por aí adiante até cinco golos, sendo
que a nossa resposta foi sendo só e sempre o cansaço, ao qual depois se juntou
o desalento, que é o pior dos cansaços.
Ah, mas já me esquecia de dizer que,
depois que o tal menino metera sozinho aquela bola em arco, nunca ninguém mais
o chamou senão com o seu nome de pia!
5 - Depois desses juvenis tempos
outros tempos foram rolando, e das memórias, umas as mais antigas com esses
tempos quase todas foram indo, outras as mais recentes ficando. E aconteceu
que, numa dessas curvas em que a vida nos prega as suas partidas, adreguei de
adoecer. Vai daí que, de entre outras coisas para meu agasalhamento nessa
ocorrência, eu tenha providenciado comprar um bom par de botas. Sempre fui
atreito ao frio de pés no Inverno; agora passava muitas horas sentado em casa;
então, um bom par de botas seria um bom investimento.
Tem aqui este par, senhor. Experimente, porque é o número que calça. Sentado na cadeira, alargo os
cordões às botas, afundo os pés dentro delas e atarraxo bem os atilhos, e
finalmente levanto-me, ensaiando uns passos de experiência. Não há dúvida, elas
são confortáveis e, embora um tanto justas, calçam-me bem.
Torno a sentar-me e, de repente, a
minha cabeça ilumina-se com aquela história de infância, aquela do par de botas
que o meu pai foi comprar comigo à feira. Nessa altura, os meus pés estavam a
crescer, dizia ele; agora, eles não crescem mas vão avolumar mais, pela
necessidade de lhes pôr mais um bom par de meias, a fim de que permaneçam
quentinhos. Estas botas são-me um bocado
apertadas, meu amigo! Traga-me um número acima, faz favor.
Afinal, o meu pai não estava assim
tão errado! No fundo, fundo, até estava certo! E eu, pela experiência que vou
tendo com estas novas botas um número acima calçadas - os pés lá dentro
agasalhados com dois pares de meias bem quentinhas -, também não estou errado.