quinta-feira, 30 de agosto de 2012

87 - Mera Utopia


1 - Olá! Quando um problema invade a colmeia humana, logo as abelhas de serviço inventam uma teoria para o solucionar. Mas como depois, passado pouco tempo, se averigua que o problema não ficou resolvido, logo se inventa uma outra teoria, contrapondo-se à primeira. Mas como ainda não foi desta que o problema concreto se resolveu, outra teoria mais se inventa … e assim por diante sem fim, sem jamais as abelhas encontrarem a desejada solução para o concreto problema que incomoda o enxame!

2 – As abelhas não encontram porque, sobrepondo-se as teorias umas contra as outras, mais as abelhas e as suas teorias se afastam do real problema concreto, para o qual pretendem encontrar solução.

3 - Ora experimentem as abelhas a mandar às malvas essas camadas e camadas de elucubrações mentais que em si foram amontoando, com elas encobrindo e fazendo esquecer o real problema concreto, problema que, tal como as abelhas, dadas sempre as novas circunstâncias, também vai mudando com o tempo. Olhem as abelhas directamente para o problema, sem empecilhos teóricos do intelecto, com a sua mente limpa; olhem para as causas do problema; olhem sobremaneira para si, conheçam-se melhor; vejam sobretudo como, com esse mais perfeito autoconhecimento, tal problema concreto surgiu na colmeia … e persiste. Sem levantar novas teorias! Só olhando, olhando de uma forma global, para si e para o problema; olhando não com o intelecto que separa conceptualmente, mas com a inteligência que engloba e leva à compreensão holística de nós, e também do problema objectivo que é nosso e faz mesmo parte de nós (ver texto 15)! Será que assim, e então, não ficará resolvido o problema? Mera utopia?

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

86 - Afinal, o meu Pai estava certo


1 - Olá! Naquele tempo frio de Inverno, o meu pai chamou e disse-me assim: Vais comigo amanhã à feira. Era isto nas férias do Natal do meu terceiro ano de seminário; era isto quando eu tinha treze anos e picos, e já era friorento; era ainda quando eu e os meus colegas passávamos lá dentro o tempo, ora sentados no salão de estudo a ler os livros e a bichanar com os colegas vizinhos, ora sentados no refeitório a beber o caldo e a comer a côdea de pão mas sem nunca passarmos fome nem sede, ora de joelhos ou sentados na capela - tão confortavelmente sentados que até escorregávamos dos bancos sonolentos -, ora ainda e finalmente à solta pelos recreios ou jogando à bola, a ela acorrendo em molho e algazarra.
Andas mal calçado, e por isso vou comprar-te umas botas novas. Eu delirei com este anúncio das botas novas, até porque nunca tinha tido botas, muito menos umas botas novas. Desde que me conheci, eu começara por andar descalço, depois a calçar tamancos ou alpercatas, e finalmente sapatos, mandados fazer por medida ao Domingos sapateiro, quando levantei asas e pousei no seminário. Mas botas, botas confortáveis e quentinhas, daquelas fofas por dentro e a subirem acima dos artelhos, nunca, mesmo nunca. De modo que logo me senti a não caber em mim de contente, já me imaginando com os pés dentro das botas fofas e novas!
Vou comprar-te umas botas um bocado avantajadas, porque já reparei que estás a começar a crescer. Bem visto era este pormenor, comecei a pensar. Bem visto porque, realmente, eu estava entrando na medrança para rapazola, estava a senti-lo muito bem, e por isso, era de presumir que também depressa me alongassem e alargassem os pés.

2 - E assim voltei para o meio dos colegas, pensando que ia fazer um figurão com umas botas novas. Pensava, mas logo as contas me saíram furadas: Eh pá, que botas grandes tu trazes! Tens pé que chegue para encher isso tudo? Ai, meu amigo - pensei eu para mim, já um tanto desiludido -, isto não está a correr nada bem! E como realmente os dedos dos pés não chegassem bem à ponta das botas, sucedeu que, com o contínuo andar e com uma topada ou outra nas pedras das calçadas, as pontas das botas deram em elevar-se, como fossem proas de barquinhos!
Ouve lá, onde arranjaste essas traineiras? São para ires à pesca? E de tanto e a tantos parecerem e até serem as botas umas traineiras, facilmente esse nome se descolou das botas e ficou colado ao seu dono!

3 - Nos princípios do terceiro período de cada ano lectivo, quando ainda nos sentíamos confortados com os ovos e os bolos e outras farturas da Páscoa, era costume realizar-se o campeonato de futebol inter-anos. Os alunos de cada um dos cinco anos escolhiam e organizavam a sua equipa, e os embates processavam-se com muita animação.
Os alunos do terceiro ano eram ainda todos franzinos, novinhos e pequenos. Todos, com excepção de um, o João Fernando, que já era um matulão, já entrado nos vinte, e que por isso até fazia parte da prefeitura dos alunos mais velhos, os alunos do quinto ano.
E quando foi para recrutarmos e organizarmos a nossa equipa do terceiro ano, o João Fernando tomou a dianteira e foi escolhendo este e aquele e aqueloutro, segundo as habilidades de cada um e com a anuência de todos. Foi escolhendo, começando logo por si para avançado-centro e artilheiro da equipa, até encalhar na escolha do derradeiro jogador, que devia servir a ponta-esquerda. E ao dizer a todos que, para esse posto, convinha arranjar-se um esquerdino, logo os olhos de todos se voltaram para mim. E eu que, embora já desse uns toques mas fosse muito franzino e mal pudesse com a pesada bola de couro, tive de aceitar, jogando de sapatilhas, claro está, como os outros, e não com o par das minhas botas.

4 - No dia do grande derby entre a nossa equipa do terceiro ano e a dos matulões do quinto, acossado pela guerra psicológica com que os quintanistas o tinham causticado nas vésperas, o João Fernando entrou furioso e destemido no campo e, logo abrindo brechas na muralha defensiva do adversário, meteu dois golos quase de rajada, nos primeiros dez minutos de jogo.
Mas o ímpeto guerreiro não nos ficou por aí, pois que, durante todo o primeiro tempo, houve outros trechos de luta, deveras encarniçados. Destes, o último nasceu de uma ardorosa escaramuça na grande área adversária, que desembocou numa bola para canto. E logo depois, como este canto se devia marcar do lado esquerdo, aí vai este escriba - nesses tempos menino franzino jogando a ponta esquerda - apontá-lo. O senhor árbitro apronta o esférico, colocando-o no sítio. E o menino, agora já atrás da bola, observa muito bem o sítio da baliza e a multidão de jogadores que enxameia a grande área, tendo ainda tempo para ver dois grandes braços levantados, e para ouvir, saindo de entre esses braços, a voz do João Fernando: Força, Traineira! E então, visando de novo o sítio da baliza, o menino recua um tanto para poder tomar balanço – só um tanto e não mais por haver atrás de si um bojudo e inamovível tronco de plátano –, e desfere um ardiloso biqueiro em direcção à baliza. E não é que, desenhando um arco, a bola vai entrar na baliza sem ninguém mais lhe tocar – talvez o bafo leve da aragem, talvez o acaso - fazendo o terceiro golo!
Instantaneamente, uma ovação gigante estrondeou à volta do recinto. Ovação que – creio eu agora – não coroava só este terceiro golo, mas também o primeiro e o segundo, três a zero, três golos da equipa dos miúdos, sem qualquer resposta dos graúdos! E então, lá dentro do campo, o João Fernando, - pesando bem o surpreendente score com que se estava terminando o primeiro tempo do jogo, e desforrando-se da ralação que os quintanistas lhe tinham infligido nas vésperas do jogo, gritou alto e bom som voltado para eles: Querendes ganhar mas num hendes!
A segunda parte do jogo não foi nada interessante, sobretudo se medirmos esse interesse com a medida do nosso gosto e desejo. O adversário meteu um, dois e por aí adiante até cinco golos, sendo que a nossa resposta foi sendo só e sempre o cansaço, ao qual depois se juntou o desalento, que é o pior dos cansaços.
Ah, mas já me esquecia de dizer que, depois que o tal menino metera sozinho aquela bola em arco, nunca ninguém mais o chamou senão com o seu nome de pia!

5 - Depois desses juvenis tempos outros tempos foram rolando, e das memórias, umas as mais antigas com esses tempos quase todas foram indo, outras as mais recentes ficando. E aconteceu que, numa dessas curvas em que a vida nos prega as suas partidas, adreguei de adoecer. Vai daí que, de entre outras coisas para meu agasalhamento nessa ocorrência, eu tenha providenciado comprar um bom par de botas. Sempre fui atreito ao frio de pés no Inverno; agora passava muitas horas sentado em casa; então, um bom par de botas seria um bom investimento.
Tem aqui este par, senhor. Experimente, porque é o número que calça. Sentado na cadeira, alargo os cordões às botas, afundo os pés dentro delas e atarraxo bem os atilhos, e finalmente levanto-me, ensaiando uns passos de experiência. Não há dúvida, elas são confortáveis e, embora um tanto justas, calçam-me bem.
Torno a sentar-me e, de repente, a minha cabeça ilumina-se com aquela história de infância, aquela do par de botas que o meu pai foi comprar comigo à feira. Nessa altura, os meus pés estavam a crescer, dizia ele; agora, eles não crescem mas vão avolumar mais, pela necessidade de lhes pôr mais um bom par de meias, a fim de que permaneçam quentinhos. Estas botas são-me um bocado apertadas, meu amigo! Traga-me um número acima, faz favor.
Afinal, o meu pai não estava assim tão errado! No fundo, fundo, até estava certo! E eu, pela experiência que vou tendo com estas novas botas um número acima calçadas - os pés lá dentro agasalhados com dois pares de meias bem quentinhas -, também não estou errado.

domingo, 19 de agosto de 2012

85 - As Últimas Tribulações em Marte


O pai da pátria está roído de saudades do seu país, mas ainda mais do seu planeta azul, onde está a sua nação. Ainda não passaram quatro dias inteiros – dos nossos, evidentemente -, e já está de rastos! Pois que, mesmo vivendo no deserto africano no meio de tuaregues guerrilheiros, ele se sentiria melhor do que neste inóspito planeta Marte. Mas a sua companheira e a criança ainda estão pior!
A ele, na verdade, e em primeiro lugar, já lhe está a fazer alguma falta o mando, já sente saudades da cadeira do poder. Por sua vez, à criança falta-lhe quase tudo, e até chora muitas vezes. Sente muitas saudades do seu gato, das bonecas e, mais que tudo, das suas queridas amiguinhas, por quem chama muito alto. Quanto à companheira, chorando mesmo às vezes sobre o ombro do companheiro, fazem-lhe muita falta as flores do seu jardim, ir ao cabeleireiro, variar de vestidos e adereços e estar com as amigas. Também se lembra de uma boa passeata pelas ruas da cidade a ver as montras e de ir a uma casa de perfumes para comprar e pôr aquele que mais fascina o companheiro.
Mas a ele, habituado a uma vida intensa e variada, falta-lhe, além do mando e do poder, ainda muita coisa. São os pratos favoritos comidos em casa com a família, uns saborosos petiscos comidos furtivamente numa tasca com os amigos, as tertúlias culturais, as reuniões com os seus colaboradores para tratarem de assuntos oficiais, as lustrosas e mundanas visitas de estado feitas a muitos países do mundo.
E com tanta falta, o pai da pátria dá em pensar que, lá na Terra, lá é que é bom viver! Por isso é que – pensa ainda – os países não se podem infernizar uns aos outros, mas sim colaborarem todos para defender e promover a vida, uma vida quanto possível boa para todos os cidadãos do planeta. Pois, que sentido tem procurarmos a vida noutros planetas se não a promovemos no nosso e, pelo contrário, até a matamos? Assim, ele vê com nitidez que é necessária uma economia global sustentável para o planeta e também uma economia que não dê lugar à especulação com o sangue das nações. Também vê ser necessário e urgente um entendimento intercultural tão vasto quantas as principais culturas do globo. Porque, com tantos desentendimentos e desigualdades existentes, se espatifarmos a vida do planeta onde ela tem tão boas condições para existir e se desenvolver, que autoridade temos nós para levar essa semente para outros planetas, se ela vai morrer na Terra?
Assim é, de facto, meu caro presidente! E quando todos os povos da Terra tiverem condições para viver e apreciar devidamente a vida e forem solidários, então, a nossa ida para os espaços será muito mais concertada e terá um bom significado e sentido: da superabundância de vida boa que a todos possuirá aqui na Terra, levá-la-emos a outros mundos onde possa desenvolver-se. Então, se assim acontecer, a vida toda de muitos mundos entoará um estrondoso e magnífico hino de louvor à própria vida – um estrondo tão magnífico como aquele que deu início ao Universo - a qual vida estará especialmente presente em cada um dos seres conscientes desses mundos todos, como já somos nós aqui na Terra.
Não se esqueça então de comunicar rapidamente com os seus cientistas de serviço, no sentido de vos mandar buscar quanto antes para o nosso querido planeta e, já agora, também para a Casa Branca. No resto deste mandato e no próximo (?), com a colaboração de altos responsáveis de outras nações, todos tendes aqui muito que fazer.

sábado, 18 de agosto de 2012

84 - Continuando numa Prainha em Marte


O pai da pátria levanta-se, aperta o cinto das calças e ensaia uns passos lentos. Mas é-lhe quase impossível mover as pernas, pelo peso que sente debaixo dos pés a agarrá-lo ao chão. Os cientistas de serviço bem lhe diziam que, com mais passadas, se iria habituando, mas ele sempre teve as suas desconfianças. Também sente muita dificuldade em respirar: duas ou três passadas são o bastante para ficar cansado. Mas como ele é uma pessoa muito determinada – não fosse ele o presidente da pátria mais voluntariosa do mundo -, insiste, anda mais um tanto.
Até que tem de parar e sentar-se num penedo vermelho, ali logo ao lado, a descansar. Senta-se da melhor maneira que pode e põe-se a ver imaginando de muito longe as nações da Terra, o que o leva a ganhar uma nova e mais exacta perspectiva em relação a essas realidades.
Pensando assim nos principais problemas das nações da Terra, ele vê que a sua maioria deriva de um exagerado optimismo da raça humana, assente no iluminismo, na ideia de um contínuo progresso, na razão positivista e na técnica omnipotente, e vê claramente que esses principais problemas são a financeirização descontrolada da economia, as criminosas negociatas com o dinheiro que é sempre o sangue da economia das nações, o consumismo, o egoísmo e o exacerbado patriotismo e orgulho das nações.
Ele sabe muito bem que, nesse seu planeta de origem, a selecção natural e a luta pela vida são próprias de toda a vida vegetal e animal, mas agora também vê nitidamente que o bicho humano tem a capacidade de deixar de ser lobo para o seu semelhante e tornar-se solidário.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

83 - Ainda em Marte

Ainda em Marte
No final do lanche, o pai da pátria fica comovido. Nunca um lanche lhe estivera tão apetitoso, nunca uma refeição lhe tinha assentado tão bem! E então, reparando bem na sua companheira ali a seu lado e também na criança emaranhada no papagaio, ele sente de uma forma bem intensa e nítida a presença e o valor do sentimento do amor humano.
Olha agora para o céu, alongando distâncias. Mas é um céu de chumbo, carregado, ameaçador, bem diferente do seu céu familiar. Só ao longe, na fímbria do horizonte, lhe desponta uma longínqua esperança: é um pequeno planeta de um azul ainda brilhante, batido pela doirada luz do sol. O pequenino planeta vai subindo no horizonte e, com os olhos presos no seu azul, o pai da pátria comove-se, suspira, e uma sombra no olhar se lhe nota, bem evidente.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

82 - Numa Prainha em Marte


Sentado ele numa imaginária praia marciana de fulvas areias e ondas mansas, a companheira desabotoa de uma sacola e serve um lanche apetitoso. É um real prato de “delícias do mar e da terra” para eles comerem com dois casqueiros de broa, mas tudo trazido do seu antigo planeta, enquanto a criança tenta, sempre em vão, levantar o seu papagaio no ar.
Num pequeno discurso de patriotismo comovido, dias antes – dos dias fora da Terra nunca sabemos a duração -, ele, o pai da pátria, tinha propalado urbi et orbi a façanha de terem posto em Marte o veículo Curiosidade, motivo de grande orgulho para a rica nação americana.
Mas mais uns tempos antes, quando acima de cem nações estiveram presentes ao mais alto nível na Conferência Rio­+20 para concertarem estratégias de desenvolvimento sustentável para o planeta azul, o pai da pátria não quis saber e primou por estar ausente!
Quer dizer, os bichos humanos não se entendem em salvar a vida no seu planeta, mas andam à procura dela num outro! Ou será mesmo por já não se entenderem que se apressam nesta demanda? E, já agora, não será também para espoliarem esse novo planeta, das suas riquezas minerais, se outras ainda não tiver? Porque falar de riqueza a esse grande país é como falar de manteiga em focinho de cão! Tiveram bons mestres, começando por Calvino, que os educaram nessa ambição!
É muito saudável e bom satisfazer-se a curiosidade, fazer a conquista do espaço e estender esta nossa vida complexa por outros cantos do Universo, sim senhor, mas haja decoro aqui na Terra, no respeito pela vida e na distribuição das riquezas.

sábado, 11 de agosto de 2012

81 - Em Comunhão com o Planeta


1 – Olá! Passeio por esta secreta estrada, silenciosa e lisa. O céu está azul, o sol resplandece sobre a Natureza, e a Terra prende-me a si, à exacta medida: não mais porque não poderia andar, não menos porque me perderia no Universo.
Descendo das primeiras partículas do Universo, de ainda antes do big bang, que dá início ao tempo. Elas expandiram-se, primeiro vertiginosamente; depois, já no tempo, de uma forma mais lenta. Elas deram origem às estrelas, aos planetas, às galáxias; delas se fizeram os átomos, as moléculas e também as células da vida, da qual participamos.

2 - Porque é que eu estou vivo, viva consciência de mim e do planeta e do Universo, ainda que com vida de não mais que um dia, efémera vida como a das rosas dos jardins de Adónis? Mas também há as não imaginárias rosas, as dos jardins dos humanos, feitas elas também de elementos com que se fazem e fizeram e farão as estrelas e os planetas e nós mesmos.
Perdidos no Universo, ou ligados a tudo aquilo que o constitui? Há vida consciente em outros lugares do Universo? Ou será daqui que ela um dia poderá passar para lá, por nós levada?

3 - O Problema é que, aqui na Terra, há o frenesim do desenfreado desenvolvimento insustentável! Mas para quê esse frenético desenvolvimento contínuo? Para quem? Só para alguns ou para benefício de todos, sobretudo os mais pobres? Com que prejuízos para o nosso planeta comum? Não está ele já carenciado de algumas matérias-primas? Não está também já cheio de lixos, tanto em terras como em oceanos e ares? Será possível reciclar os já existentes e depois os que hão-de vir? Quem irá pagar esses serviços? Até quando o planeta, já tão doente, aguentará estes desmandos e toda esta inconsciência dos bichos humanos?
Não nos sentiremos obrigados a salvar a vida? Não será urgente a comunhão com o planeta que é a nossa morada?

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

80 - O Brutamontes do Tempo


1 - Olá, amigas e amigos! Ainda não há muito tempo, a imprensa noticiou-nos que o romance A Visita do Brutamontes, de Jennifer Egan, ganhou, em 2011, “dois dos mais cobiçados prémios a que os escritores norte-americanos podem aspirar: o National Book Critics Circle Award e o Pulitzer de Ficção” (Expresso, 14-4-2012).
Nesse trabalho informativo, e já propriamente em relação ao livro em referência, o jornalista começa por dizer que, em parte, tais distinções se deverão à “natureza não linear do livro, uma reflexão sobre a passagem do tempo e os efeitos que ela provoca numa vasta galeria de personagens”. E logo a seguir, o jornalista inicia uma entrevista telefónica à autora, começando por afirmar e perguntar: “Este é um livro sobre o tempo, os seus efeitos e a forma como é percepcionado por pessoas muito diferentes. O que a levou a escolher este tema”? “Eu sinto que não escolhi propriamente o tema do livro”, responde a autora, “foi ele que me escolheu a mim (…) De certa forma, todos os romances são sobre o tempo. A passagem do tempo é sempre uma componente essencial de qualquer processo narrativo. Agora, em “A Visita do Brutamontes”, quis justamente fazer do tempo a questão central do livro”. A seguir, o jornalista alude a que “a narrativa vai da São Francisco dos anos 70 até à Nova Iorque dos anos 2020”. De facto, “algumas das histórias (do livro) projectam-se no futuro”, responde a autora, “mas não se pode abusar desse espreitar lá para a frente, que tem qualquer coisa de sádico”.
Já fora da entrevista, num texto que se lhe segue, o mesmo jornalista escreve: “O mais espantoso nesta ficção (…) é que Egan nunca perde o sentido do tema que atravessa todas as histórias dispersas do seu livro: o tempo enquanto agente de mudança que tanto pode maltratar-nos (é ele o “Brutamontes” do título) como redimir-nos, às vezes inesperadamente”. E completa o seu texto dizendo que “o livro termina numa Nova Iorque futura, na década de 2020, com um concerto junto ao “Ground Zero” reconstruído”; mas acrescenta que “a música que fica a pairar” é outra: é a do “zumbido da cidade, mistura de taipais a serem corridos, cães a ladrar roucamente e camiões a passar sobre as pontes, que é o som do tempo a passar”.

2 - É então o tempo um brutamontes, o brutamontes do tempo que a todos os momentos da nossa vida nos “visita”. Mas o que será um brutamontes? Segundo os dicionários – não é preciso investigar muito –, brutamontes é um “homem selvagem e estúpido”, uma “pessoa rude e malcriada”, um “alarve”, uma “pessoa grosseira e violenta”. Será então o tempo uma pessoa como essas, a quem nós podemos chamar Brutamontes? Autora e jornalista não chegam a esse ponto, mas vão dizendo que o tempo é um agente de mudança que tanto pode maltratar-nos como redimir-nos. Mas como a autora chama Brutamontes ao tempo, é de presumir que, às personagens e também a nós, ele provoque mais danos do que redenções. Aliás, aquilo de, por sistema, a autora ter evitado olhar e mostrar as personagens no seu futuro por isso lhe parecer um acto de sadismo, é prova disso mesmo.
Mas será que o tempo nos causa mais danos do que redenções? Lembremos o caso de um bebé acabado de nascer. Durante todo o seu crescimento, até à idade adulta, ele está sempre adquirindo novas competências, para se realizar o melhor possível, como pleno ser humano. E então, toda aquela permanente “visita” que o tempo lhe vai fazendo, não só durante esse seu crescimento como ainda durante os nove meses de gestação não lhe é especialmente favorável?
 Porque é que achamos que o tempo nos causa mais mal que bem? Entre o mais, não será porque não sabemos estimar os bens que ele nos dá, como é o caso da nossa saúde, a qual só a valorizamos devidamente quando a perdemos? Somos mais sensíveis ao mal que nos acontece, do que ao bem que vamos tendo, não é? E só responderemos cabalmente à questão de sabermos se o tempo nos faz mais mal que bem, ou o contrário, quando, simultaneamente, respondermos a uma outra … que afinal é a mesma: precisamente a de sabermos se vale a pena viver esta nossa vida mortal, ou não!
O que é então esse tempo que, durante toda a nossa vida, nos está visitando? Será ele um agente de mudança? Será mesmo ele que nos causa mal ou bem? Que entidade é essa, a do tempo?

3 - Se comparamos o ser do tempo a todos os outros seres do nosso mundo, seres materiais, o tempo não existe! Então, esse Brutamontes não existe? O que realmente existe são todos os seres materiais, seres corpóreos como também nós somos. E depois, nós humanos é que concebemos o tempo: porque o tempo é só uma nossa abstracção! Como seres concretos e materiais, nós somos seres feitos de vicissitudes ou mudanças, seres feitos de movimento tanto no corpo como na mente, para melhor ou para pior. Ora, nós concebemos o tempo precisamente para com ele podermos medir essas mudanças ou vicissitudes, medir esses movimentos na sua relação com o antes e o depois. De maneira que, como o tempo será só uma medida, não pode ser ele o agente das mudanças, nem será ele a causar-nos qualquer mal ou bem! O tempo é só a medida desse movimento. Se nós, seres humanos, não tivéssemos concebido o tempo, ou simplesmente não existíssemos, também ele não existiria; só existiria o movimento dos seres corpóreos, da Terra e do Universo. Os outros seres também sofrem e produzem mudanças em si mesmos e na sua envolvência, mas não medem e relacionam temporalmente esses movimentos (ver texto 62.2).
Hoje e agora mesmo, os outros seres materiais e nós também, todos somos e estamos de uma maneira, para logo a seguir sermos e estarmos doutra. Somos todos seres de barro, ou de energia e de matéria, se quisermos; seres sempre amassados de e em mudança; e o tempo é essa medida que inventámos para medir, para tentar medir essas mudanças, segundo o antes e o depois.
Não somos seres eternos, fora deste jogo, mas sim seres temporais, seres de tempo, a cada passo seres a nascer e/ou a morrer, a crescer e/ou a degradar-se. Mas não somos “seres-para-a-morte”, não, mas sim “seres-para-viver”, embora uma vida mortal. Viver vida mortal, não sozinhos, em solidão, mas como companheiros de todos os outros seres do mundo, especialmente com os humanos comendo o pão da vida que nos foi dado para comermos, pão feito de farinha, mas também de vicissitudes e tempo.
Vale a pena viver isso, viver assim? O Brutamontes espreita sempre, mas em rigor, ele não nos espreita nem “visita”! Não, porque ele está sempre dentro de nós, por sermos barro amassado em vicissitudes e tempo. Brutamontes, portanto, não propriamente inimigo mas companheiro do homem; Brutamontes, o homem mesmo!


sábado, 4 de agosto de 2012

79 - Presença

No vazio e no silêncio nascem as palavras
mas as palavras ferem o vazio e o silêncio

Para a esquerda
pelas pedras da vereda
entre silvas
as palavras vão
Para a direita
sopro leve de brisa
orvalho morno
nas altas cabeleiras das árvores
no macio musgo à beira do caminho
o almo silêncio cai
habita a sua tenda

Para a esquerda
ruídos sons grafemas significantes
ideias ideologias e coisas
À direita
o vazio e o silêncio
sós
em sua tenda avultam

Reconciliados
o coração e a razão
sábios
fulguram
Da inteligência
 se desprende
evidência intuição
silêncio manso álacre silêncio
silêncio louvor impassível silêncio
amor alto sábio conhecimento

Só as palavras sábias
não ferem o vazio e o silêncio