terça-feira, 8 de maio de 2012

62.8 - O nosso Desejo de Deus


8 Falemos agora do nosso desejo de Deus, isto é, do desejo que temos e sentimos de haver para nós um Deus. Adversários da fé dizem que Deus é simplesmente uma projecção dos nossos desejos e não uma realidade, mas Kung afirma, com acerto, que o nosso desejo de Deus “pode corresponder inteiramente a um Deus real”. E depois acrescenta: “E por que razão não poderei eu desejar que nem tudo acabe com a morte? Que haja um sentido profundo na minha vida, na história da humanidade, resumindo, que Deus exista?”( p. 68)?
Há de facto, na humanidade, o desejo de Deus: somos feitos de congénita incompletude (textos 49 e 50), o que pode levar o instinto e o coração a pedi-lo. (Porque, se não houvesse esse desejo, mesmo existindo essa divina realidade, nós seríamos indiferentes a essa mesma realidade). Mas, nas palavras de Kung, não se deseja só Deus; deseja-se muito mais, e tudo oferecido por esse Deus!
Segundo Kung, pela razão pura ou teórica, eu não posso chegar a Deus porque ele não é do meu mundo experimental. Mas depois, é na minha experiência de vida, pela minha razão prática e pelo coração, que eu posso confirmar a verdade e a presença desse Deus, por quem me decidi, num mergulho de liberdade responsável, de “confiança esclarecida ou racional”. Dei o mergulho da fé porque isso me sacia os meus mais profundos desejos e também porque essa é uma boa maneira de explicar o universo.
Por ser profundamente desejado, esse Deus bíblico não me pode ser indiferente: aliás, segundo Kung, ele é um Deus omnipotente, sumamente bom, criador, salvador, que faz vencer a morte e me dá a vida eterna, em suma, me dá um sentido pleno à minha vida. Por isso, inspirados na sabedoria popular, podemos agora perguntar: toda esta fartura de satisfação de desejos não levará a que o pobre desconfie – a desconfiança vem da razão pura ou teórica –, desconfie por a esmola ser tão grande? Isto é, satisfazem-se os desejos e o coração, com certeza; mas também ficará satisfeita a razão? Ela poderá ser cúmplice nesse mergulho em que foram decisivos o desejo e o coração?
Semelhante mergulho, ousado e arracional mergulho, é aquele que, por profundo amor, eu faço num outro ser humano, conforme já falámos no texto (14). Neste meu ousado mergulho de amor e por amor, noutro ser humano, eu crio a realidade que corresponde ao conceito (recíproco) que formulei: eu penso que a realidade “amor” existe no outro para comigo, como existe em mim para com ele. E é claro que depois, pela vida fora, tanto eu como o outro teremos sempre ocasião de reformular o nosso pensar e a nossa conduta a respeito desse recíproco amor. Estamos sempre à prova, no que toca a essa amorosa reciprocidade!
Mas naquele outro mergulho de fé e de amor nesse Deus – esta fé não pode deixar de ser também amor -, mergulho nesse Deus que nunca tivemos ao nosso lado nem vimos nem ouvimos nem tocámos e só temos uma ideia ou conceito porque o fazemos à nossa imagem como também ele nos fez à sua, haverá também  lugar para essa recíproca realidade do amor? Podemos falar com ele e até escrever-lhe cartas (ver por exemplo texto 20), mas a resposta que nos dá, se der, não será só o eco da nossa voz? Se a própria Bíblia é feita (só) de palavra humana a testemunhar a divina, como nos diz Kung, o que será então uma carta de Deus, de resposta a uma carta de um simples ser humano? Não será só o eco da voz da criatura? Como podemos mergulhar no amor a quem nunca vimos nem ouvimos nem nunca ninguém viu ou ouviu ou tocou e portanto nem é sequer humano, para além de, antes de tudo isso e se for o caso, termos ousado mergulhar na sua existência?
Estamos naturalmente equipados para, habitualmente, conhecer através de conceitos, que directa ou indirectamente sempre se fundam em realidades terrestres, coisas do nosso mundo e não de outro. Averiguamos das causas e dos efeitos dessas mesmas realidades, do que elas são ou como nos aparecem, do seu sentido intra-mundano, porque só para esse âmbito nós estamos competentemente equipados. De outras realidades e mundos, se é que existem, podemos dizer alguma coisa? Podem os nossos telúricos conceitos servir para isso ou hipostasiar-se em entidades hiperurânicas? A haver um conceito de Deus, não será ele só um conceito meramente negativo?
Inclua-se aqui aquela também extra-mundana vida para além da morte, tão desejada não só por Kung mas também pela generalidade dos seres humanos. Como poderá ela ser possível se o “eu”ou centro espiritual da pessoa humana floresce primariamente do cérebro, o qual se extinguirá com a morte do corpo? Vida para além da morte é uma excelsa realidade desejada acreditada e pedida a esse Deus da Bíblia. Tão excelsa realidade desejada e acreditada, que esse Deus quase só existe para que ela para nós também possa existir! E, no entanto, como será isso possível? Porque não é preciso só acreditar! É preciso que isso seja mesmo possível! O homem não é pó, e em pó não se há-de tornar? Tenho uma identidade feita de e na mudança (texto 8) - estando, eu vou; e indo, eu estou - , e por isso, como posso continuar idêntico, como posso reconhecer-me a mim mesmo, fora do tempo? Tudo o que é criado é feito de mudança, é temporal. Ora, no fim do tempo de cada ser, no fim dos tempos do universo, como é que cada um destes seres, ele mesmo, na sua identidade, poderá subsistir? Por milagre? Mas Kung não aceita milagres! Além de que só no tempo eles poderiam acontecer.

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