8 Falemos agora do nosso desejo de Deus, isto é, do desejo que
temos e sentimos de haver para nós um Deus. Adversários da fé dizem que Deus é
simplesmente uma projecção dos nossos desejos e não uma realidade, mas Kung
afirma, com acerto, que o nosso desejo de Deus “pode corresponder inteiramente
a um Deus real”. E depois acrescenta: “E por que razão não poderei eu desejar
que nem tudo acabe com a morte? Que haja um sentido profundo na minha vida, na
história da humanidade, resumindo, que Deus exista?”( p. 68)?
Há de facto,
na humanidade, o desejo de Deus: somos feitos de congénita incompletude (textos
49 e 50), o que pode levar o instinto e o coração a pedi-lo. (Porque, se não
houvesse esse desejo, mesmo existindo essa divina realidade, nós seríamos
indiferentes a essa mesma realidade). Mas, nas palavras de Kung, não se deseja
só Deus; deseja-se muito mais, e tudo oferecido por esse Deus!
Segundo Kung,
pela razão pura ou teórica, eu não posso chegar a Deus porque ele não é do meu
mundo experimental. Mas depois, é na minha experiência de vida, pela minha
razão prática e pelo coração, que eu posso confirmar a verdade e a presença
desse Deus, por quem me decidi, num mergulho de liberdade responsável, de
“confiança esclarecida ou racional”. Dei o mergulho da fé porque isso me sacia
os meus mais profundos desejos e também porque essa é uma boa maneira de
explicar o universo.
Por ser
profundamente desejado, esse Deus bíblico não me pode ser indiferente: aliás,
segundo Kung, ele é um Deus omnipotente, sumamente bom, criador, salvador, que
faz vencer a morte e me dá a vida eterna, em suma, me dá um sentido pleno à
minha vida. Por isso, inspirados na sabedoria popular, podemos agora perguntar:
toda esta fartura de satisfação de desejos não levará a que o pobre desconfie –
a desconfiança vem da razão pura ou teórica –, desconfie por a esmola ser tão
grande? Isto é, satisfazem-se os desejos e o coração, com certeza; mas também
ficará satisfeita a razão? Ela poderá ser cúmplice nesse mergulho em que foram
decisivos o desejo e o coração?
Semelhante
mergulho, ousado e arracional mergulho, é aquele que, por profundo amor, eu
faço num outro ser humano, conforme já falámos no texto (14). Neste meu ousado
mergulho de amor e por amor, noutro ser humano, eu crio a realidade que
corresponde ao conceito (recíproco) que formulei: eu penso que a realidade
“amor” existe no outro para comigo, como existe em mim para com ele. E é claro
que depois, pela vida fora, tanto eu como o outro teremos sempre ocasião de
reformular o nosso pensar e a nossa conduta a respeito desse recíproco amor.
Estamos sempre à prova, no que toca a essa amorosa reciprocidade!
Mas naquele
outro mergulho de fé e de amor nesse Deus – esta fé não pode deixar de ser
também amor -, mergulho nesse Deus que nunca tivemos ao nosso lado nem vimos
nem ouvimos nem tocámos e só temos uma ideia ou conceito porque o fazemos à
nossa imagem como também ele nos fez à sua, haverá também lugar para essa recíproca realidade do amor?
Podemos falar com ele e até escrever-lhe cartas (ver por exemplo texto 20), mas
a resposta que nos dá, se der, não será só o eco da nossa voz? Se a própria
Bíblia é feita (só) de palavra humana a testemunhar a divina, como nos diz
Kung, o que será então uma carta de Deus, de resposta a uma carta de um simples
ser humano? Não será só o eco da voz da criatura? Como podemos mergulhar no amor
a quem nunca vimos nem ouvimos nem nunca ninguém viu ou ouviu ou tocou e
portanto nem é sequer humano, para além de, antes de tudo isso e se for o caso,
termos ousado mergulhar na sua existência?
Estamos
naturalmente equipados para, habitualmente, conhecer através de conceitos, que
directa ou indirectamente sempre se fundam em realidades terrestres, coisas do
nosso mundo e não de outro. Averiguamos das causas e dos efeitos dessas mesmas
realidades, do que elas são ou como nos aparecem, do seu sentido intra-mundano,
porque só para esse âmbito nós estamos competentemente equipados. De outras
realidades e mundos, se é que existem, podemos dizer alguma coisa? Podem os
nossos telúricos conceitos servir para isso ou hipostasiar-se em entidades
hiperurânicas? A haver um conceito de Deus, não será ele só um conceito
meramente negativo?
Inclua-se aqui
aquela também extra-mundana vida para além da morte, tão desejada não só por
Kung mas também pela generalidade dos seres humanos. Como poderá ela ser
possível se o “eu”ou centro espiritual da pessoa humana floresce primariamente
do cérebro, o qual se extinguirá com a morte do corpo? Vida para além da morte
é uma excelsa realidade desejada acreditada e pedida a esse Deus da Bíblia. Tão
excelsa realidade desejada e acreditada, que esse Deus quase só existe para que
ela para nós também possa existir! E, no entanto, como será isso possível?
Porque não é preciso só acreditar! É preciso que isso seja mesmo possível! O
homem não é pó, e em pó não se há-de tornar? Tenho uma identidade feita de e na
mudança (texto 8) - estando, eu vou; e indo, eu estou - , e por isso, como
posso continuar idêntico, como posso reconhecer-me a mim mesmo, fora do tempo?
Tudo o que é criado é feito de mudança, é temporal. Ora, no fim do tempo de
cada ser, no fim dos tempos do universo, como é que cada um destes seres, ele
mesmo, na sua identidade, poderá subsistir? Por milagre? Mas Kung não aceita
milagres! Além de que só no tempo eles poderiam acontecer.
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