9 - O meu espírito brota do meu cérebro, antes de mais, mas também do resto
do meu corpo e da minha dimensão social. Em última instância, ele deriva do
universo, do qual eu – corpo e espírito – sou um grãozinho de areia dessa praia
sem fim. E aqui, pode entrar a fé, segundo Kung, explanada neste livro: o cosmos, desde o início e sempre até
ao fim, tem uma dimensão espiritual
(p.202), e Cristo, palavra de Deus, palavra amorosamente
criadora e também redentora do mundo e do homem (pp. 136-7), esse “Jesus
concreto crucificado enquanto Cristo vivo” (p.208) é, sem excluir outras luzes, “a
luz, o brilho interior, o espírito”, aos crentes oferecendo ainda “um novo horizonte de sentido” (p. 208).
No
epílogo do livro, falando do fim do mundo e entre o mais que sobre o assunto
expõe, Kung aceita claramente a terrível hipótese de a humanidade se destruir a
si mesma. Também nós, como já vimos, consideramos que isso é uma possibilidade,
cuja concretização seria uma nefanda tragédia para a humanidade. Mas, se se
desse esse caso horrível, o planeta, embora também ele tremendamente
maltratado, poderia continuar. E também, por maioria de razão, todo o cosmos.
Por isso, poderia aqui perguntar-se: se isso acontecesse, como é que poderia o
universo continuar a ter como sentido a própria humanidade, como diz Kung, para
a qual o universo foi criado? É claro que a pergunta não teria cabimento porque
é o ser humano que cria todos os sentidos, e sobremaneira os da fé. Só há
sentido se existirem seres humanos. Porque o sentido que nós atribuímos ao
mundo, o sentido do mundo, não é do mundo mas é nosso.
Na
derradeira parte do epílogo, a qual designou por “Morrer dentro da luz”, o autor continua a manifestar a sua fé:
“Jesus de Nazaré não morreu no nada, mas morreu em Deus” (p. 217). Mas Kung não
aceita a ressurreição de Jesus como habitualmente se entende, segundo a
doutrina oficial da Igreja Católica, que ela professa e manda professar aos
fiéis. Às narrativas da ressurreição de Jesus, presentes nos evangelhos e em
Paulo, ele chama “configurações lendárias da mensagem bíblica da ressurreição”
(p. 217). E então, perguntemos: que ressurreição de Jesus é essa, assim de todo
fora do nosso mundo experimental e portanto inconcebível? Não será o mesmo que
nada?
E
um pouco mais adiante, quase a terminar o seu livro, declarando ter assumido a
aposta em Deus, como fez Pascal, o autor afirma: “mesmo que perca a aposta na
morte, nada terei perdido para a minha vida: terei sempre vivido melhor, mais
feliz, e com mais sentido” (p. 217). Vemos assim que bem diversa é esta posição
da de Paulo, o qual ensina que, se Cristo não ressuscitou – e da maneira como
ele a entendia e bem assim todo o cristianismo e a Igreja Católica -, os
cristãos seriam os mais miseráveis de todos os homens (1 Cor, 15 e texto 40).
“Mesmo que perca a aposta na morte”, Kung terá sempre vivido …”com mais
sentido”. Mas, nesse caso, que sentido?
Apostando
na fé, Kung afirma que não perde nada e ganha tudo, ou ao menos o melhor. Na
realidade, a sua aposta não é de todo uma aposta ao de leve, mas profundamente
séria, comprometendo o homem–todo, e por isso, essa opção deve ser respeitada.
No entanto, é uma aposta, uma aposta em Deus! E será que uma aposta é a maneira
mais digna de alguém chegar a Deus? Não haverá uma outra forma melhor? Deus
aceitará de bom grado – falemos de forma antropomórfica, pois que até nem teremos
outra –, aceitará de bom grado alguém que se tornou crente através de uma
aposta? Um crente apostador?
A
aposta de Pascal, na qual se filia a aposta de Kung, é um argumento débil, além
de não ser um argumento para provar a verdade da fé, mas tão só intentar provar
a sua utilidade: intenta, mas de uma forma muito débil. Pascal entende, e muito
bem, que nós nada podemos conhecer para além do nosso mundo experimental.
Designadamente, nós não podemos saber se Deus existe e como ele é, porque tudo
isso nos transcende. Por isso, não há outro caminho para chegar a Deus, a não
ser apostar nele. Mas apostar nele, porquê? Para quê? Não será porque Pascal já
sabe que ele é bom e generoso, a ponto de lhe prometer uma vida eterna? Por que
se, à partida, Deus não lhe fosse bom e generoso e ele não o entendesse assim,
Pascal não apostava, e então, até a existência de Deus lhe seria indiferente! E
agora perguntemos: de onde lhe vem ele saber que Deus é bom e generoso? Não
estará em contradição com aquele seu primeiro entendimento? Primeiro
entendimento – não esqueçamos – que é também perfilhado por Kung.
E agora, só
mais um pormenor em relação a esta aposta de Pascal. Para acreditarmos em Deus,
assim nele apostando, teremos de começar a agir como se já acreditássemos,
iniciando pela prática de pequenas devoções. E depois, o mesmo pensador francês
escreve: “isto irá fazer-nos acreditar naturalmente e enfraquecer a nossa
agudeza de espírito”. Ora, este “enfraquecimento da agudeza” da razão não terá
semelhanças com a limitação do labor da razão praticada por Kant e acima
referida? Mas poderá a fé viver do enfraquecimento ou limitação do trabalho da
razão? A razão com que Deus nos criou não servirá também para averiguar da
fidedignidade dos saberes recebidos por testemunhos? (S. Blackburn, Pense, Gradiva, 2001,pp.192-196).