quinta-feira, 31 de maio de 2012

68 - Montra do Monstro


Um tronco a engrossar
a engrossar a engrossar
em volta de um tubo digestivo
digestivo tubo
cloacas mil e duas estacas
em baixo
balão em cima
balão de bocas
espetado num pescoço
balão inflado de cobiça
inflado de cobiça.

Quem tem medo do monstro
vampiro mostrengo
mostrengo vampiro monstro
que suga o sangue
o sangue suga
das nações
?

domingo, 27 de maio de 2012

67 - Saudades de meu Pai


1 - Olá, amigas e amigos! Venho aqui confessar a toda a gente, do alto desta tribuna, que tenho muitas saudades de meu pai. De meu pai, não, de meu paizinho! De meu paizinho porque, lá em casa, todos nós, os cinco garotos masculinos seus filhos, o tratávamos assim. Mas não só em relação ao nosso pai nós dobrávamos a língua, pois que, também e sobretudo a nossa mãe, a mãezinha, se pelava por esse apelativo doce! E é assim que os dois ficaram bem vivos na memória dos cinco, até porque continuamos a tratá-los com esse carinhoso diminutivo.
Quando pelos nossos quintais e às horas de calor trepávamos às árvores, em busca de ginjas ou maçãs ou peras ou laranjas para comer, o paizinho dizia sempre: “Tenham cuidado: não comam a fruta quente”. Mas eu nunca fiz caso deste afável aviso e também já não sei se algum dia, ou noite, a fruta quente me fez mal à barriga.
Com o rodar do tempo, ele foi deixando de nos lançar esse aviso, ainda que, à sua frente, continuássemos a trepar a essas benditas árvores, mesmo em horas de calor. Mas uma vez, a última, sempre na sua afabilidade mansa, ele insistiu em dizer-me: “Não devias ter apanhado a fruta pelo calor! Vai-te fazer mal”. “Não faz, paizinho, não faz porque eu vou deixar que arrefeça, antes de a comer”! E foi assim que consegui dar a volta ao benigno argumento de autoridade paterna, e o meu pai também aprendeu com isso. Aprendeu porque, além de cumprir o seu dever de dar aos filhos o seu exemplo de dignidade e honra e dedicação ao trabalho e bonomia, também soube ser tocado por alguma juvenil fosforescência dos filhos.

2 - Porque o que importa é pensarmos pela nossa cabeça, em vez de aceitarmos passivamente o que nos propõem a Autoridade e a Tradição. Pensar é muito melhor – porque mais humano e humanizante - do que acreditar!
Aquele luminoso Sócrates ateniense, nas outras pessoas, em liberdade, intentava o universal, isto é, intentava fazer delas simplesmente seres pensantes e não seres de crenças, com as quais se preparariam médicos, políticos, militares ou mesmo filósofos. Porque, para tudo isto, seriam precisas doutrinas, crenças. Mas ele só queria – como besouro a importuná-las - acordar as pessoas para a sua actividade de pensar.
È certo que, sobretudo hoje, vivemos muito mais de crenças do que de pensamento. E então, o que nos será necessário é, tanto quanto possível, fazer baixar (ou subir) as crenças recebidas ao cadinho do nosso pensar, e aí, passá-las ao crivo fino da reflexão, assim as recebendo e fazendo nossas, ou simplesmente rejeitando.
Porque o crente fecha a porta ao pensamento, ao labor da razão: acredita, e pronto. Ao passo que o pensante alimenta-se sobretudo de dúvidas, a elas voltando sempre que necessário. Também tem certezas, mas as dúvidas são o seu principal alimento. 

terça-feira, 22 de maio de 2012

66 - Estado Social


1 - Olá! Numa rua de aldeia de um município deste país, em estrada velha com melhorias várias vezes prometidas mas sempre adiadas, uma brigada de colaboradores da autarquia procedeu recentemente à substituição da conduta de água ao domicílio. Procedeu, isto é, foi procedendo, porque estes trabalhos assim, geridos e praticados directamente pelo município e por empresa ou empresas públicas, demoram sempre o seu tempo.
O trecho de rua intervencionado não fora muito longo, mas a intervenção prolongou-se por quase três meses inteiros, meses de sentidos proibidos e de buracos e de poeira e de lama para transeuntes e habitantes. Nesta obra, porém, também participou uma empresa privada, à qual coube a derradeira parte dos trabalhos, compactando e cilindrando o fechamento do buraco, que finalmente asfaltou. Mas enquanto estes trabalhadores de empresa privada demoraram só três dias a cumprir a sua parte, porque deram sempre o litro das suas oito horinhas de trabalho diário, aqueles, os funcionários da autarquia, demoraram todo o outro tempo porque, diárias, lá na obra, eles foram trabalhando sempre só à volta de quatro horas e meia por dia.

2 - Ainda não há, neste país, bem arreigada, a cultura do bem comum, que é o bem público ou social. Ainda se não generalizou a consciência de que só alcançaremos em pleno o nosso bem particular quando por igual cuidarmos do bem que é de todos. Porque nós somos, por natureza, indivíduos, sim, mas indivíduos sociais. Veja-se, por exemplo, o caso da nossa fala, que a um tempo está na origem do nosso individual desenvolvimento mental, mas também possibilita e concretiza a comunicação com os outros. E a fala será até o nosso ou um dos nossos primeiros bens sociais! Porque, quando eu digo a alguém que agora me está a doer a cabeça, a dor e a cabeça são só minhas, mas a língua é de todos. Só desenvolveremos digna e plenamente a nossa individualidade se nos ligarmos aos outros, e assim também estes se ligarem a nós.

3 - Estado Social? Claro que sim! Nem pode ser de outra forma, se o Estado for o que deve ser! Ele tem de estar ao serviço de todos na nossa realização de indivíduos sociais. A questão agora está em sabermos de que modo ele deverá cumprir essa missão que os cidadãos lhe confiam. Preferentemente por empresas públicas? Por empresas público-privadas? Por empresas privadas?
Como ainda, como já vimos, não estamos devidamente educados em termos sociais, de modo a valorizarmos o bem comum como valorizamos o nosso bem privado – o que de algum modo já acontece por exemplo nos países nórdicos –, o nosso Estado deve tendencialmente preferir as empresas privadas, em concorrência, com as quais celebrará rigorosos contratos, depois rigorosamente seguidos e supervisionados até ao fim.

4 - Estado Social na Europa mais desenvolvida, segundo diz Henrique Raposo (Expresso de 28-4-12), é o Estado impor seguro de saúde obrigatório a quem pode, e garantir seguro de saúde a quem é carenciado; é também a Segurança Social obrigar “o cidadão a fazer descontos complementares para PPRs privados, tendo por base um plafonamento de pensões no sistema público”; é ainda o Estado ajudar “uma criança pobre a frequentar o ensino privado”, em “colégios privados com contrato de associação”. Em suma, “o dinheiro dos impostos deve financiar pessoas, e não estruturas estatais”. Resta-nos assim um Estado, também um Estado Social, como deve ser, ou seja, um Estado (Social) leve, e por isso também ágil e ainda democraticamente forte para observar, acompanhar e decidir, sempre de forma independente, eficaz e justa.

5 - Mas quando entre nós houver políticos e gestores e colaboradores que se disponham a trabalhar em empresas públicas com a mesma dedicação e produtividade com que se trabalha em prósperas empresas privadas, isto é, a trabalhar quase ou mesmo como se estivessem a trabalhar para o seu próprio bem, então sim, então o Estado até deverá preferir as empresas públicas porque estas - em virtude de não terem de ser necessariamente lucrativas como têm de ser as privadas -, até ficarão mais em conta para os contribuintes. As empresas públicas não visam o lucro, não podem consentir aproveitamentos privados de ninguém, porque só visam o bem comum.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

65 - Ainda o Piano a Ressoar


Como todas estas imensas galáxias do Universo não nos servem para mais nada, ao menos nelas e entre elas façamos ressoar o piano do Bernardo! Só por gozo o façamos e gozemos, que talvez deste gozo ninguém mais aproveite, a não ser o pianista!

sala imensa
o universo
para ressoar
tão pouco utilizada
para ressoar
a sala

na sala ressoa
o ressoar
nem alto nem baixinho
está bem assim
 o ressoar
na sala

música de palavras
a ressoar
na sala
tão pouco utilizada
a sala
para ressoar
o piano das palavras da música

quinta-feira, 17 de maio de 2012

64 - Uma Teoria sobre o Beijo


         1 - Olá! Para o ser humano e logo desde o seu nascimento, a primeira coisa boa ou o primeiro bem é o leite materno e tudo o que lhe está directamente associado: antes de mais, portanto, a própria chucha puxada pelos lábios e saboreada pela língua, mas depois também as duas fontes que são os seios e todo o corpo da mãe. Ao contrário, a primeira coisa má ou o primeiro mal, para o bebé, é ele tomar algum alimento deteriorado, que portanto fará mal à sua vida.
Para o bebé, portanto, mamar é amar e amar é mamar, sendo eles sempre a acção que o conduz para o seu bem, o leite, o primeiro bem e amor de todos os seus bens e amores; enquanto que odiar é a acção que o leva à rejeição do que já é mau para si, ou seja, a comida corrompida, pois que esta lhe irá prejudicar a sua vida, a qual, logo desde a nascença, é o sumo bem que ele procura defender e promover.
Para o bebé, porém, há-de vir o tempo – como há muito já chegou para a mamã - o tempo em que amar não tem só e especialmente um sentido centrípeto, um sentido que olha para a sua vida e o seu eu, mas sobretudo um sentido centrífugo, que se volta para os outros. Portanto, não é que o amor e o amar deixem de constituir para os dois, já adultos, agora o bem e o alimento espirituais das suas vidas, mas porque, então, o amor e a vida boa, para eles, e afinal para todos os humanos, está mais no dar que no receber.

2 - Aquela posição dos lábios juntos, com a língua por perto – lábios na posição de haurirem o leitinho materno, e língua sempre pronta para gostar e sentir se esse precioso e primeiro bem está em boas condições – é também, segundo acha o inspirado Alain, a posição dos lábios que beijam. O beijo, assim, é um gesto natural e cultural, um gesto simbólico com que presentificamos um ou mais bens que, por serem mental alimento da vida, queremos dar e/ou receber.
Quando uma mamã, dos seus seios, pode dar de beber ao seu bebé e não dá, ela está a negar-lhe a primícia dos bens e dos sabores daquilo que é realmente bom na vida, e bem assim a subtrair-lhe a nascente do sentido que deverá ter depois o beijo dele a algo ou alguém. A posição dos lábios do bebé para receber o leite da sua vida é a mesma que ele irá usar depois para beijar, sendo que as duas acções, uma e outra, deverão servir sempre para receber e/ou dar bens que vão alimentar vidas humanas.
De todos os beijos que damos ou daremos na vida, os primeiros são nas maminhas da nossa mãe, puxando do seu leite, o qual é, de todos os bens da vida, o primeiro e o melhor. E também odiaremos sempre o mal porque, tal como já fizemos naqueles primeiros beijos, o que sempre queremos é, em última instância, agarrar-nos à vida e defender dos perigos esse grande bem que temos.
Porque o bem e o mal, para os seres humanos, não são só e sobretudo abstracções. Aliás, realmente, o bem e o mal só existem em entidades concretas. Desde o leite bom ou leite deteriorado, até à bondade e à maldade, as quais sempre só podem existir em coisas ou pessoas boas e más.

terça-feira, 15 de maio de 2012

63 - Um Piano Toca


Olhando para miudezas
Os nossos olhos perdem a perspectiva
Não se levantam para longes

Deixamos de ouvir cosmólogos astrónomos
 biólogos  físicos …

Estamos sozinhos no Universo
Por acaso tudo isto evolui e vivemos

O Universo pensa através de nós
Somos a consciência do Universo

Um piano toca
O do Bernardo

Um piano ecoa em todo o Universo
Em todas as galáxias estamos a ouvi-lo
Sozinhos

domingo, 13 de maio de 2012

62.10 - As Diversas Vias de Saída



10 - Quase a terminar também, e porque, ao contrário de Kant, não podemos abandonar em qualquer caso a condição de ser um ser interrogante - ainda que isso nos traga algum desconforto ao coração -, aqui deixamos uma outra posição, bem diversa da de Kant e de Kung, defendida por muitos mas aqui explicitada nas palavras do filósofo Fernando Savater, extraídas da sua obra “A Vida Eterna” (p.69): “Como poderia (a morte) ser um mal, se ela é necessária e inevitável? (…) Só é um verdadeiro mal o capricho tortuoso da vontade humana que se opõe à harmonia ordenada do universo” (citado no texto 1 deste blog).
Mas ainda há uma outra posição ou terceira via – melhor diríamos anti-via, por comparação com as duas primeiras -  já vislumbrada aqui em diversos textos ( por exemplo 16), a via do poeta cantor das Old Ideas, Leonard Cohen, falando do seu mestre budista de 104 anos lúcidos, sem nada ainda conceder à velhice: “Este velho professor nunca fala de religião. Trata do estudo da natureza das coisas, do modo como sujeito e objecto se separam e do modo como se encontram. (…) Não há dogma, não há adoração. É apenas uma forma de viver em comunidade e ser extremamente cuidadoso e atento aos próprios sentimentos e aos sentimentos dos outros. É mais esse tipo de actividade do que algo que possamos associar à religião. Não há fé, não há crença. Há apenas actividade”. E a um insistente jornalista que lhe perguntava “o que será na sua próxima vida”, Cohen, sorrindo, responde:”Se existir uma tal coisa, gostaria de regressar como o cão da minha filha” (“Expresso” de 4 de Fevereiro de 2012).
Muito em voga está uma última posição - tão em voga que até já se infiltrou em estratos religiosos conservadores - segundo a qual, na religião, não há lugar para a verdade e para a falsidade. É a posição em que predominam águas de “pensamento débil” pós-moderno, de acento religioso, nas quais navegam Vattimo e também Unamuno, com a sua “vontade de acreditar”, e ainda navega a imortal personagem D. Quixote, criada por Cervantes para ser o “Cavaleiro da Triste Figura”, mas que, aos olhos de Unamuno, em vez de louco é sábio, e portanto modelo intelectual e ético. Assim, o que na religião importa não são as suas verdades ou falsidades, mas só a sua intrínseca beleza e a beleza dos seus rituais, aliadas à conveniência social de a ela e a eles aderirmos. Tal como, precisamente, também não se pergunta pela verdade ou falsidade quando se está perante um poema ou um pôr-do-sol. Sem verdades ou falsidades, a religião e os seus rituais serão portanto só e simplesmente entidades belas e também convenientes em termos sociais: celebrar-se-á então, sobremaneira, a jubilosa entrada e presença de uma criança no seio da sua família e no círculo de amigos mais próximo; também a jubilosa notícia do amor entre dois jovens a quererem declarar que vão constituir família e que nessa condição desejam ser aceites pelos amigos e pela sociedade; ainda a ocasião da sentida morte de uma pessoa querida, altura em que a sua vida se manifesta na sua globalidade e plenitude e se entranha na vida dos amigos e conhecidos, se acaso a vida dela tiver sido um exemplo de humanidade a seguir, assim continuando a viver dentro deles. A religião será então como que um jardim suspenso, sem objectivas raízes de realidades significadas de que possa derivar, mas ainda assim um jardim belo e também apetecível pela sua conveniência (ver texto 35).
Mas é claro que estas e outras considerações pós-modernas de tal posição, para além de não serem facilmente aceitáveis em termos epistemológicos, também estão bem longe de poderem ser aceitas pela tradição religiosa do Vaticano, com o seu inconcusso depósito de verdades de fé, a remeterem para objectivas realidades.
E quanto à profunda e sincera obra de Hans Kung – tão sincera ela é que parece um testamentário grito de fidelidade e honra – deixamos simplesmente uma pergunta: para quê a nossa tão aguda necessidade de conhecermos “o princípio de todas as coisas”, se, das próprias coisas, ainda tão pouco sabemos? Mas tudo fica em aberto, pois não é assunto para encerrarmos mas talvez para a ele um dia voltarmos (ver texto 18), tal como o oceano que, depois de avançar para terra, se recolhe brincando com o rosário das suas conchas profundas, e com elas meditando, para depois, de novo, se chegar à praia e abraçar a terra.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

62.9 - O Espírito, a Aposta em Deus



9 - O meu espírito brota do meu cérebro, antes de mais, mas também do resto do meu corpo e da minha dimensão social. Em última instância, ele deriva do universo, do qual eu – corpo e espírito – sou um grãozinho de areia dessa praia sem fim. E aqui, pode entrar a fé, segundo Kung, explanada neste livro: o cosmos, desde o início e sempre até ao fim, tem uma dimensão espiritual (p.202), e Cristo, palavra de Deus, palavra amorosamente criadora e também redentora do mundo e do homem (pp. 136-7), esse “Jesus concreto crucificado enquanto Cristo vivo” (p.208) é, sem excluir outras luzes, “a luz, o brilho interior, o espírito”, aos crentes oferecendo ainda “um novo horizonte de sentido” (p. 208).
            No epílogo do livro, falando do fim do mundo e entre o mais que sobre o assunto expõe, Kung aceita claramente a terrível hipótese de a humanidade se destruir a si mesma. Também nós, como já vimos, consideramos que isso é uma possibilidade, cuja concretização seria uma nefanda tragédia para a humanidade. Mas, se se desse esse caso horrível, o planeta, embora também ele tremendamente maltratado, poderia continuar. E também, por maioria de razão, todo o cosmos. Por isso, poderia aqui perguntar-se: se isso acontecesse, como é que poderia o universo continuar a ter como sentido a própria humanidade, como diz Kung, para a qual o universo foi criado? É claro que a pergunta não teria cabimento porque é o ser humano que cria todos os sentidos, e sobremaneira os da fé. Só há sentido se existirem seres humanos. Porque o sentido que nós atribuímos ao mundo, o sentido do mundo, não é do mundo mas é nosso.
            Na derradeira parte do epílogo, a qual designou por “Morrer dentro da luz”, o autor continua a manifestar a sua fé: “Jesus de Nazaré não morreu no nada, mas morreu em Deus” (p. 217). Mas Kung não aceita a ressurreição de Jesus como habitualmente se entende, segundo a doutrina oficial da Igreja Católica, que ela professa e manda professar aos fiéis. Às narrativas da ressurreição de Jesus, presentes nos evangelhos e em Paulo, ele chama “configurações lendárias da mensagem bíblica da ressurreição” (p. 217). E então, perguntemos: que ressurreição de Jesus é essa, assim de todo fora do nosso mundo experimental e portanto inconcebível? Não será o mesmo que nada?
            E um pouco mais adiante, quase a terminar o seu livro, declarando ter assumido a aposta em Deus, como fez Pascal, o autor afirma: “mesmo que perca a aposta na morte, nada terei perdido para a minha vida: terei sempre vivido melhor, mais feliz, e com mais sentido” (p. 217). Vemos assim que bem diversa é esta posição da de Paulo, o qual ensina que, se Cristo não ressuscitou – e da maneira como ele a entendia e bem assim todo o cristianismo e a Igreja Católica -, os cristãos seriam os mais miseráveis de todos os homens (1 Cor, 15 e texto 40). “Mesmo que perca a aposta na morte”, Kung terá sempre vivido …”com mais sentido”. Mas, nesse caso, que sentido?
            Apostando na fé, Kung afirma que não perde nada e ganha tudo, ou ao menos o melhor. Na realidade, a sua aposta não é de todo uma aposta ao de leve, mas profundamente séria, comprometendo o homem–todo, e por isso, essa opção deve ser respeitada. No entanto, é uma aposta, uma aposta em Deus! E será que uma aposta é a maneira mais digna de alguém chegar a Deus? Não haverá uma outra forma melhor? Deus aceitará de bom grado – falemos de forma antropomórfica, pois que até nem teremos outra –, aceitará de bom grado alguém que se tornou crente através de uma aposta? Um crente apostador?
            A aposta de Pascal, na qual se filia a aposta de Kung, é um argumento débil, além de não ser um argumento para provar a verdade da fé, mas tão só intentar provar a sua utilidade: intenta, mas de uma forma muito débil. Pascal entende, e muito bem, que nós nada podemos conhecer para além do nosso mundo experimental. Designadamente, nós não podemos saber se Deus existe e como ele é, porque tudo isso nos transcende. Por isso, não há outro caminho para chegar a Deus, a não ser apostar nele. Mas apostar nele, porquê? Para quê? Não será porque Pascal já sabe que ele é bom e generoso, a ponto de lhe prometer uma vida eterna? Por que se, à partida, Deus não lhe fosse bom e generoso e ele não o entendesse assim, Pascal não apostava, e então, até a existência de Deus lhe seria indiferente! E agora perguntemos: de onde lhe vem ele saber que Deus é bom e generoso? Não estará em contradição com aquele seu primeiro entendimento? Primeiro entendimento – não esqueçamos – que é também perfilhado por Kung.
E agora, só mais um pormenor em relação a esta aposta de Pascal. Para acreditarmos em Deus, assim nele apostando, teremos de começar a agir como se já acreditássemos, iniciando pela prática de pequenas devoções. E depois, o mesmo pensador francês escreve: “isto irá fazer-nos acreditar naturalmente e enfraquecer a nossa agudeza de espírito”. Ora, este “enfraquecimento da agudeza” da razão não terá semelhanças com a limitação do labor da razão praticada por Kant e acima referida? Mas poderá a fé viver do enfraquecimento ou limitação do trabalho da razão? A razão com que Deus nos criou não servirá também para averiguar da fidedignidade dos saberes recebidos por testemunhos? (S. Blackburn, Pense, Gradiva, 2001,pp.192-196).
            

terça-feira, 8 de maio de 2012

62.8 - O nosso Desejo de Deus


8 Falemos agora do nosso desejo de Deus, isto é, do desejo que temos e sentimos de haver para nós um Deus. Adversários da fé dizem que Deus é simplesmente uma projecção dos nossos desejos e não uma realidade, mas Kung afirma, com acerto, que o nosso desejo de Deus “pode corresponder inteiramente a um Deus real”. E depois acrescenta: “E por que razão não poderei eu desejar que nem tudo acabe com a morte? Que haja um sentido profundo na minha vida, na história da humanidade, resumindo, que Deus exista?”( p. 68)?
Há de facto, na humanidade, o desejo de Deus: somos feitos de congénita incompletude (textos 49 e 50), o que pode levar o instinto e o coração a pedi-lo. (Porque, se não houvesse esse desejo, mesmo existindo essa divina realidade, nós seríamos indiferentes a essa mesma realidade). Mas, nas palavras de Kung, não se deseja só Deus; deseja-se muito mais, e tudo oferecido por esse Deus!
Segundo Kung, pela razão pura ou teórica, eu não posso chegar a Deus porque ele não é do meu mundo experimental. Mas depois, é na minha experiência de vida, pela minha razão prática e pelo coração, que eu posso confirmar a verdade e a presença desse Deus, por quem me decidi, num mergulho de liberdade responsável, de “confiança esclarecida ou racional”. Dei o mergulho da fé porque isso me sacia os meus mais profundos desejos e também porque essa é uma boa maneira de explicar o universo.
Por ser profundamente desejado, esse Deus bíblico não me pode ser indiferente: aliás, segundo Kung, ele é um Deus omnipotente, sumamente bom, criador, salvador, que faz vencer a morte e me dá a vida eterna, em suma, me dá um sentido pleno à minha vida. Por isso, inspirados na sabedoria popular, podemos agora perguntar: toda esta fartura de satisfação de desejos não levará a que o pobre desconfie – a desconfiança vem da razão pura ou teórica –, desconfie por a esmola ser tão grande? Isto é, satisfazem-se os desejos e o coração, com certeza; mas também ficará satisfeita a razão? Ela poderá ser cúmplice nesse mergulho em que foram decisivos o desejo e o coração?
Semelhante mergulho, ousado e arracional mergulho, é aquele que, por profundo amor, eu faço num outro ser humano, conforme já falámos no texto (14). Neste meu ousado mergulho de amor e por amor, noutro ser humano, eu crio a realidade que corresponde ao conceito (recíproco) que formulei: eu penso que a realidade “amor” existe no outro para comigo, como existe em mim para com ele. E é claro que depois, pela vida fora, tanto eu como o outro teremos sempre ocasião de reformular o nosso pensar e a nossa conduta a respeito desse recíproco amor. Estamos sempre à prova, no que toca a essa amorosa reciprocidade!
Mas naquele outro mergulho de fé e de amor nesse Deus – esta fé não pode deixar de ser também amor -, mergulho nesse Deus que nunca tivemos ao nosso lado nem vimos nem ouvimos nem tocámos e só temos uma ideia ou conceito porque o fazemos à nossa imagem como também ele nos fez à sua, haverá também  lugar para essa recíproca realidade do amor? Podemos falar com ele e até escrever-lhe cartas (ver por exemplo texto 20), mas a resposta que nos dá, se der, não será só o eco da nossa voz? Se a própria Bíblia é feita (só) de palavra humana a testemunhar a divina, como nos diz Kung, o que será então uma carta de Deus, de resposta a uma carta de um simples ser humano? Não será só o eco da voz da criatura? Como podemos mergulhar no amor a quem nunca vimos nem ouvimos nem nunca ninguém viu ou ouviu ou tocou e portanto nem é sequer humano, para além de, antes de tudo isso e se for o caso, termos ousado mergulhar na sua existência?
Estamos naturalmente equipados para, habitualmente, conhecer através de conceitos, que directa ou indirectamente sempre se fundam em realidades terrestres, coisas do nosso mundo e não de outro. Averiguamos das causas e dos efeitos dessas mesmas realidades, do que elas são ou como nos aparecem, do seu sentido intra-mundano, porque só para esse âmbito nós estamos competentemente equipados. De outras realidades e mundos, se é que existem, podemos dizer alguma coisa? Podem os nossos telúricos conceitos servir para isso ou hipostasiar-se em entidades hiperurânicas? A haver um conceito de Deus, não será ele só um conceito meramente negativo?
Inclua-se aqui aquela também extra-mundana vida para além da morte, tão desejada não só por Kung mas também pela generalidade dos seres humanos. Como poderá ela ser possível se o “eu”ou centro espiritual da pessoa humana floresce primariamente do cérebro, o qual se extinguirá com a morte do corpo? Vida para além da morte é uma excelsa realidade desejada acreditada e pedida a esse Deus da Bíblia. Tão excelsa realidade desejada e acreditada, que esse Deus quase só existe para que ela para nós também possa existir! E, no entanto, como será isso possível? Porque não é preciso só acreditar! É preciso que isso seja mesmo possível! O homem não é pó, e em pó não se há-de tornar? Tenho uma identidade feita de e na mudança (texto 8) - estando, eu vou; e indo, eu estou - , e por isso, como posso continuar idêntico, como posso reconhecer-me a mim mesmo, fora do tempo? Tudo o que é criado é feito de mudança, é temporal. Ora, no fim do tempo de cada ser, no fim dos tempos do universo, como é que cada um destes seres, ele mesmo, na sua identidade, poderá subsistir? Por milagre? Mas Kung não aceita milagres! Além de que só no tempo eles poderiam acontecer.

domingo, 6 de maio de 2012

62.7 - A Educação e o Coração na Fé


7 - Falemos agora de educação e também de coração. Crer ou não crer é sempre uma questão de educação e de coração, e não de razão pura ou teórica. A razão, à qual compete pesquisar e iluminar, sairá sempre um tanto secundarizada em assuntos de fé religiosa. Também aqui ela é necessária, sem dúvida, mas decisivos nesse processo são os afectos do coração e a educação, a qual também e sobretudo educa o coração. A educação e o coração são interdependentes e também cúmplices na sua influência não só em relação à crença como também à descrença.
Conheço dois amigos, o Silvestre e a Margarida, que gostam de entretecer longas conversas com o fio destes assuntos. Ele, na família e nos estudos, teve uma educação de acento religioso, mas ela, de um meio bem diverso e sem condicionamento religioso nos estudos, teve uma educação que podemos designar de laica.
E não se entendem nas conversas que tecem, ou melhor, têm sempre pontos de vista diversos! Ele, talvez com mais poder de argumentação de escola, procura defender a sua “dama”, mas a senhora, porventura mais assente nas concretas realidades da vida, responde-lhe sobretudo que, se a educação dele tivesse sido como a sua, pensaria como ela. Mas fazem sempre das suas longas conversas, belas tapeçarias com que vão fundando uma recíproca e sempre crescente amizade.
Os casos do Silvestre e da Margarida são semelhantes aos casos de Kant e Kung, mas com a diferença de que estes dois últimos estão do lado do Silvestre. Kant era um pietista rigoroso, no qual, como diz Kung, se arreigava “a convicção ético-religiosa extrema de que devem ser estabelecidos limites à razão”, e Kung é um velhinho sacerdote católico, suponho que ainda vivo, por sinal conhecido e amigo do actual pontífice romano. Mas Kung, como já vimos, refere ainda uma outra muito significativa passagem de Kant: “Tive por conseguinte de superar o saber, para obter um lugar para a ”.
Ora, se Kung e Teillard e Kant e bem assim Rousseau (de quem Kant tanto gostava) e ainda, claro está, o nosso amigo Silvestre, se todos eles tivessem levado uma educação como foi a da Margarida, por certo que, tal como a esta, o desejo e o coração não lhes pediriam a fé!
Na concepção de muitos e também de Kung, a fé em Deus é um ousado mergulho do homem-todo nessa realidade transcendente, mergulho do desejo e do coração, mas que também a razão acompanha, sobretudo em virtude da luz de sentidos (p. 99) que, aceitando essa hipótese de Deus, a seguir ao homem-todo vem. É como que, na feliz imagem de Kung, a “alavanca de Arquimedes” com que agora se explica o universo – o macro e o micro – e também o seu mundo pessoal de criatura humana e o sentido da vida.
Foi dito que a razão acompanha o coração nesse ousado mergulho nessa insondável realidade divina, mas também tem de dizer-se agora que a mesma razão não deve admitir peias de qualquer género na sua acção pesquisadora, nem sequer das convicções porventura colhidas da educação desde a infância do sujeito em causa, se a razão assim tiver de entender, mau grado alguma possível perplexidade ao nível dos afectos do coração. E se assim tiver de entender, não acompanhará o coração.
E também é de considerar-se que, muito embora o amor entre dois seres humanos também pode exigir esse ousado mergulho em que a razão não tem evidências, o certo é que o mergulho de amor noutro ser humano parece bem diverso do mergulho de amor na realidade divina, como a seguir se há-de ver.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

62.6 - O Sentido da Fé na Criação


6 - Escrevendo sobre o “sentido da fé na criação”, e depois de dizer que no começo do universo só havia “o bom Deus, que é a origem de todos e de tudo”, Hans Kung logo adianta que “a grande finalidade do processo criador” é “o Homem – não isolado mas no centro do cosmos” (p. 136). Não basta portanto, para ele, acrditar que o bom Deus está na origem do universo: é preciso também acreditar que o Homem é o fim do universo, a primordial finalidade da criação. Quer isto dizer que, sempre com a presença da acção criadora do bom Deus, tudo está “afinado” para que não só a evolução tivesse desembocado na humanidade, mas também que esta mesma seja a principal finalidade de toda a evolução cósmica. De todo o universo ou só dos planetas do nosso sistema solar?
Apoiado nos estudos da ciência, o autor conclui que, muito provavelmente, não haverá vida complexa na nossa galáxia, para além da que existe neste minúsculo cantinho cósmico que é a Terra. Mas conhecerá porventura já, o ser humano, toda esta nossa imensa galáxia em que nos situamos, se ainda nem explorámos devidamente todos os planetas que orbitam o nosso Sol? Não haverá vida semelhante à nossa, ou até mais perfeita em toda esta imensa galáxia, ou noutro canto do universo? Se, por trágica hipótese, esta globalizada e desregulada humanidade se exterminasse a si própria e desaparecesse – como aliás já desapareceram outras espécies de seres vivos –, a evolução não continuaria, agora sem esta humanidade, até se atingir porventura uma nova humanidade ou outra espécie de vida mais perfeita?
Por outro lado, que estranho é dizer-se que “a grande finalidade” da criação é “o Homem – não isolado, mas no centro do universo”! Mas, se for assim, o ser humano não precisava de um universo tão grande! E qualquer canto do universo é sempre o centro do universo! Já existimos há 200.000 anos e, para além de explorarmos e conhecermos a Terra, ainda só demos uns passitos na Lua! Para quê então esta imensidão universal que ainda continua a expandir-se? Não haverá aqui desproporção entre as duas realidades que são o Homem e o universo, se acaso este foi criado para ele? Não poderá acusar-se Deus de ostentação ou de ser exageradamente mãos-largas, se não até perdulário? Não nos serviria muito melhor um universo muito mais maneirinho, mais à nossa limitadíssima medida? Para quê, como diz o povo, “tanta estragação para tão pouco”? “Não havia necessidade”!