1- Olá! É muito difícil, e muitas vezes até impossível, conhecer as exactas palavras e sentenças proferidas por Jesus (textos 23.1, 23.2 e 40). É que os autores dos evangelhos – autores para nós desconhecidos e que nem terão sido testemunhas (pelo menos da maioria) das palavras e factos narrados – não pretenderam escrever biografias de Jesus. Eles não escreveram livros de história, história objectiva e distanciada e completa desse Jesus que existiu historicamente, que falou e operou e fez amigos e discípulos que o foram acompanhando. Não escreveram livros de história, mas sim livros de fé. Eles (e os outros cristãos) foram seduzidos de tal forma por aquele amável Jesus, pelas suas palavras e feitos, que passaram a considerá-lo como o Messias, como o Cristo que as Escrituras tinham prometido para salvar o povo. Jesus, agora também Cristo, deixou de ser para eles uma figura neutra, só objectiva, mas sim alguém que se tornou parte substancial das suas vidas e sobre quem agora se propõem escrever. É sempre assim: se nós fizermos o relato da vida de uma pessoa que muito amámos ou que, ao contrário, muito detestámos, tal relato padecerá sempre de contaminações sentimentais, é tendencioso. O trabalho da razão em deslindar a objectividade dos acontecimentos da vida de cada uma será forçosamente perturbado pela força das emoções.
Os evangelhos são portanto livros escritos por crentes, pelo prazer de escreverem sobre essa amável figura que eles tanto acarinhavam, mas também para se firmarem nessa fé, bem como ainda escritos para fazerem mais crentes. Os que fizeram essas quatro compilações de textos sobre Jesus Cristo tinham em tão alto apreço essa figura que, nelas, muito dificilmente, lhe poderiam atribuir palavras e sentenças que viessem em seu desabono.
2.1 - Por tudo isto, o primeiro critério que temos, razoavelmente seguro, para descobrirmos nos evangelhos lídimas ou inconcussas palavras de Jesus é o seguinte: onde virmos atribuir a Jesus palavras ou sentenças que venham de algum modo em seu desabono, isso será prova de que tais palavras ou sentenças foram realmente proferidas por ele. A intensa luz da evidência documental terá vencido nos autores a sua resistência a cometerem o desabono. Ora, Jesus deve ter errado ao mostrar-se convencido de que estava próximo ou até iminente o fim dos tempos, assim tendo sido entendido pela comunidade cristã nascente, a qual terá pensado que a segunda vinda do Senhor se desse durante a sua geração (Mt, 24 e paralelos). Mas os anos uns sobre outros foram passando, e o Senhor glorificado não aparecia! Jesus deve ter errado, sim, mas, mesmo assim, os evangelhos mantêm essas suas afirmações: enquanto atribuídas a Jesus, apesar de estar enganado, ela são autênticas.
2.1.1 - Daqui decorrem, porém, coisas muito interessantes! Se Jesus estava convencido do iminente fim dos tempos, ele não teria proferido aquelas palavras célebres do evangelho de Mateus (16, 16-19), com as quais ele fundava a sua Igreja para séculos e milénios e dava o seu primado a Pedro! Aliás, estes versículos e seu conteúdo doutrinário não só não constam nos outros três evangelhos, como até nem constam em muitos manuscritos do próprio evangelho de Mateus, produzidos antes do imperador Constantino.
2.1.2 - O mesmo se diga em relação ao passo do final do mesmo evangelho (Mt28,16-20) no qual Jesus, agora já ressuscitado, aparece aos onze remanescentes discípulos e lhes comete a missão universal de fazerem discípulos entre todos os povos. Não sabemos se os onze puderam ouvir a sua voz, já que era a fala de um ressuscitado, nem podendo por isso até ser registada, se o houvesse, em qualquer suporte físico. Mas o que é mais provável - também aqui e pela mesma razão de não ter a intenção de fundar uma sua Igreja para séculos e milénios -, é que Jesus Cristo não as tenha proferido. Aliás, contra a menos verosímil missão de evangelização universalista imposta por Paulo, em vários passos dos evangelhos se ouve Jesus a dizer que tinha vindo só para as “ovelhas perdidas da casa de Israel”.
Nós não sabemos quem procedeu a esses dois muito importantes aditamentos! Não sabemos, mas podemos fazer uma pergunta: a que cúria de igreja particular – igreja a ocidente, naturalmente – interessava ter o apóstolo Pedro como primeiro bispo, e para mais com o primado em relação a todas as igrejas particulares da Igreja universal, como pedem os dois textozinhos citados de Mateus, aditados ao original desse evangelho? Sobretudo depois de o imperador Constantino, já vivendo no Oriente, ter pretensamente doado a essa mesma igreja particular outras supostas regalias?
2.2 - Mas há um segundo critério para sabermos se determinadas palavras de Jesus são realmente autênticas: quando nos evangelhos se atribuem a Jesus sentenças de doutrina completamente nova, revolucionária mesmo, de todo fora do horizonte cultural do mundo judaico e grego e romano, em cujo seio se operaram esses acontecimentos e se fizeram tais relatos, também isso é prova de que o verdadeiro responsável por essa doutrina é mesmo esse Jesus. As passagens em que Jesus pede para positivamente amarmos os outros como nós nos amamos a nós mesmos, e sobremaneira aquelas em que roga para amarmos mesmo os nossos inimigos, isso são quase utopias, isso são princípios que nunca nenhum de entre os melhores pensadores e mestres do referido mundo cultural tinha descoberto e apresentado para conduta de todos os outros seres humanos! Dos outros e sua, e bem sabemos que foi mesmo isso tudo que Jesus pôs em prática na sua vida! A genialidade de tais princípios não lhe pode ser só atribuída; essa genialidade é sua mesmo, é autêntica!
Jesus fala sempre com autoridade, com segurança, com convicção, surpreendendo a todos pela sua sabedoria. Todos, sobremaneira os mais sabidos judeus dominadores das minúcias da Lei, se admiravam da sabedoria de Jesus. Onde terá ele aprendido, de modo a poder agora propor um ideário tão sublime? À primeira vista, poderia pensar-se ter-se procedido intencionalmente a uma espécie de eucaliptização do espaço cultural à volta de Jesus, de modo a que não fosse possível encontrar mestre ou mestres com quem ele tivesse podido aprender e colhido tão grande sabedoria, precisamente para ter de se recorrer, para cabal explicação, a uma sua condição divina. É que, em parte nenhuma desse mundo cultural houve ou havia quem ensinasse doutrina tão sublime! Mas o caso de um génio é precisamente o de antes dele e ao lado dele não ter havido ou não haver indícios que possam levar a essa genialidade! Não houve nem há indícios, mas a genialidade aparece, o caso está aí! Não foi também este o caso de Galileu? Todos estavam contra ele, sobretudo os sábios dos arcanos bíblicos, olhos severos armados de lunetas contra ele, doutores da Lei do Céu e agora também da Terra! E no entanto, sobre esta Terra que nós pisamos todos os dias, ele não se cansava de dizer “è pur si muove”, “e no entanto ela anda”!
2.3 - “Rabi(s)” eram os mestres da Palestina, no tempo de Jesus. Assim eram designados os doutores da Lei, mas também Jesus: os seus discípulos também lhe chamavam “rabi”. Era próprio de um “rabi” dominar muito bem as doutrinas da sua especialidade, de modo que ele não aceitava correcções ao seu próprio magistério, sugeridas sobretudo por pessoas não instruídas: um rabi não se enganava, nem mudava de ideias. Com Jesus, porém, apesar de o sabermos sempre dotado da maior autoridade e segurança em tudo o que dizia, isso não acontecia assim: ele aceitava mudar de ideias e corrigir a sua doutrina. Tal peculiaridade, portanto, constitui-se como novo critério.
Numa digressão de Jesus com os discípulos já fora da Palestina (Mt 15, 21-28), veio ter com ele uma mulher cananeia – portanto não judia mas pagã – que clamava alto e insistia com ele, rogando-lhe ajuda para uma filha muito doente. Ao princípio, Jesus não responde aos seus apelos, mas depois, com tamanha insistência, ele é levado a dizer-lhe que não tinha sido enviado “senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”, não sendo portanto justo que se tomasse “o pão dos filhos para o lançar aos cachorros”. Ao que ela logo retorquiu: “É verdade, Senhor, mas até os cachorros comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos”. Perante tão poderosa resposta, o mestre Jesus emendou a mão, mudou de ideias, e a menina ficou curada nesse instante.
Embora o passo narrativo se apresente um tanto estilizado, assim denunciando um arranjo de ordem formal pela rara beleza do discurso, a verdade é que a marca de Jesus e do seu magistério está nele bem evidente.
2.4 - Mas há pelo menos mais um outro critério, para se nos tornar evidente a autenticidade das palavras e atitudes de Jesus.
Além de saber sempre muito bem o que devia dizer e fazer, ele costumava ser uma pessoa muito calma, uma pessoa doce. Não obstante, naquele episódio dos “vendilhões do templo”(Mt 21,12-17), Jesus passou-se, levantou-se-lhe a tampa, armou escândalo, perdeu a sua habitual compostura doce. A quem interessava inventar este acontecimento, de que os quatro evangelhos dão conta, de modo a que, embora a Jesus atribuído, não fosse realmente autêntico? Não lhe trouxe este seu procedimento enormes inimizades entre os sequazes da religião oficial judaica? Não terá Jesus ditado ali a sua sentença de morte?
O evangelho de João, esse muito e mais que todos evangelho espiritual, é o mais acutilante e determinado na narração do acontecimento. Estando próxima a Páscoa, Jesus entrou no templo de Jerusalém para orar e também para estar com as pessoas que acorressem ao seu encontro. Mas perante o espectáculo com que os seus olhos logo se depararam, ele não resistiu, ele não pôde ter mão em si! Com um chicote de cordas, Jesus expulsa do templo os vendedores com os seus bois e ovelhas a vender, e bem assim os cambistas, derramando as moedas pelo chão e derribando-lhes as mesas. “Tirai isso daqui! Não façais da casa do meu Pai uma feira”!
Não procederia Jesus hoje da mesma maneira, com a mesma sanha e decisão, perante as bancas do mercado de capitais? Onde está hoje o templo profanado? Onde está o covil de ladrões? Não estarão nesta “ordem financeira” globalizada, sem rosto nem humanidade, que rapina o sagrado sangue das nações?