sexta-feira, 15 de abril de 2011

TEXTO 15

Olá! Tenho notado que os meninos e as meninas, ao baixarem os olhos para se porem a ler estes longos e tortuosos textos, logo dão em pestanejar e facilmente adormecem, ás vezes até caindo para o lado com ruidoso estrondo! E se há um ou outro santinho – menos santinhas que santinhos – que são mais persistentes e por isso mais devotos, quando estes heróis enfim dobram o cabo das tormentas da leitura das derradeiras linhas de um texto, a multidão dos restantes dorme a sono solto, e até ressona! Dada tal situação, irei mesmo sugerir a uma das enfermeiras – não à Dona Trovoada, mas à Menina do Rabicho – sugerir que, a quem mais sofre de insónias, lhe receite umas pastilhas feitas de alguns parágrafos de um destes textos. E se a teimosa insónia em algum caso persistir – provavelmente isso não irá suceder – então ainda se poderá recorrer à dose cavalar de lhe infligir a leitura de um texto todo até ao fim! Desçamos então à oficina das alquimias, para produzir mais umas quantas doses desse remédio caseiro, que afinal pode ter também o bendito efeito de nos pôr mais despertos para a realidade que somos e nos envolve. É que, se a leitura foi uma navegação de tormentos, desde o início até ao cabo das tormentas, poderá ela redundar em alegria … pois que, lá adiante, já não muito distante, poderemos encontrar a alegria da felicidade! E então, haverá melhor índia do que essa? Os meninos e as meninas lembram-se de há tempos termos subido ao mirante (vejam texto 13.3), para aí descobrir o umbigo do mundo? E não dissemos aí que esse umbigo do mundo, pelo qual nos devemos alimentar, é o conhecimento, começando pelo conhecimento de nós mesmos? E que este auto-conhecimento racional, embora não chegue lá, ainda nos aponta para um nível mais sublime de conhecimento, que é o conhecimento pelo amor? E que, portanto, para nós, o mais genuíno umbigo por que nos devemos alimentar é o amor? Alimentarmo-nos pelo amor … e de amor? Amor que, portanto, também é conhecimento? A estas conclusões chegámos no texto dois em um (texto 14), onde argumentámos e concluímos que, no mais profundo de nós mesmos, conhecer é amar, e amar é conhecer. Isto, claro, na tradição da cultura ocidental. Mas também já aí anunciámos que o mesmo sucede na tradição da cultura oriental, embora por caminho diverso. É isso que agora vamos tentar explicitar, de uma forma breve e muito simples. Todos nós dizemos – ocidentais e orientais – todos dizemos que nós e o universo procedemos do vazio e do silêncio, e para lá haveremos de voltar. Mas depois, enquanto a sabedoria ocidental entende que o caminho para o crescimento espiritual humano está no desenvolvimento e no amadurecimento do eu mental ou racional dos pensamentos – muito embora já se saiba que, mesmo assim, o conhecimento pelo amor esteja sempre para além do pensamento da razão –, a sabedoria oriental acha que tal crescimento espiritual está no cada vez maior apagamento do referido eu mental de todos os pensamentos e desejos. Logo ao nascer, nós somos consciência num corpo, mas ainda não temos o nosso “eu” mental constituído e individualizado. Só por volta dos três anitos é que as crianças começam a usar a palavrinha eu: descobrem-na, e depois até parecem ter prazer em usá-la. Vamos então constituindo o nosso “eu” mental, todo feito de conceitos, conhecimentos, ideologias, crenças… E como tudo isto sejam pensamentos, que se relacionam sobretudo com o passado e o futuro e se vão armazenando na memória, o nosso “eu” assenta e está preso na cadeia do tempo. É certo que o “eu” não pode ser posto de lado. No entanto – está agora a sabedoria oriental a falar -, aquietando-se a mente, nós podemos, a espaços, desocupar-nos dele, assim ficando limpa e intensamente desperta a consciência. E neste caso, ficamos centrados no agora, que está como que para além do tempo. Só no agora, libertos da acção do “eu” mental, podemos estar verdadeiramente atentos. Esta atenção, que é a atenção global, é a verdadeira meditação e a mais pura alegria. Há portanto duas maneiras de olhar, ou de estar atento: a parcial, centrada no “eu” mental; e a global, que não tem centro a partir do qual se procede à observação. A atenção parcial incide sobre aspectos particulares do objecto, ditados pelo “eu” mental, e exige o esforço da concentração. Ao contrário, a atenção global não é comandada pelo “eu mental”, e por isso não incide sobre aspectos particulares e não exige esforço. Da atenção global nasce a compreensão global, ou seja, a percepção imediata e holística, também denominada insight. Quando olhamos ou prestamos atenção global a um objecto, então não há sujeito mas só objecto. Ou melhor: nós somos esse objecto consciencializado ou a consciência do objecto. Ser a consciência do objecto é ser a atenção global e a percepção holística do objecto. Quando olhamos com plena atenção para uma flor, um sol poente, uma montanha ou o oceano, nós envolvemo-nos nessas realidades, desaguamos nelas, perdemo-nos nelas. Por seu lado, elas assumem como que consciência de si próprias. Da atenção global resulta a total compreensão, e as duas nunca andam sem o amor. A compreensão global, ou insight, não é conhecimento mental, baseado em pensamento e palavras. Enquanto este conhecimento mental é próprio do intelecto, a compreensão global – que é imediata e holística e inclui o amor – cabe à inteligência. Citemos, a propósito, Krishnamurti, esse grande mestre da sabedoria oriental: “A inteligência é a perfeita harmonia entre a mente e o coração”. E noutros passos, afirma: “o amor não é uma coisa da mente … é algo que a mente não é capaz de conceber; quando se ama outra pessoa … há apenas uma completa fusão; O amor é muito mais profundo (que os pensamentos), e a profundidade da vida só pode ser descoberta no amor; Amar é estar em comunhão directa; O amor é um estado no qual não existe “eu”; Quando se ama alguém, ama-se toda a humanidade”. O amor é portanto a mais profunda forma de conhecermos, mas tem as suas exigências! Conhecimento que é também, a um tempo e sem distinção, a mais profunda e amorosa comunhão! Amor é o que somos, depois de tudo perdermos. Concluamos então que, também para a sabedoria oriental, conhecer é amar, e amar é conhecer. E agora, para terminar, uma inocente pergunta, dirigida a meninas e meninos: Será que tudo isto não constitui pastilha suficiente para fazer adormecer alguém que não consiga pegar no sono naturalmente? Mas também pode servir - não esqueçamos – para ficar mais desperto e assim pôr uns olhos mais vivos na tal índia – olhos de contemplação ou de desejo, conforme o caso -, índia que afinal já pode ir estando dentro de nós, e que é, de entre todas as índias, a melhor e a mais bela.

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