quinta-feira, 28 de abril de 2011

TEXTO 17.1

Olá!
Como sempre, também agora vou escrever para todos os meninos e meninas. Mas hoje, e nas duas próximas sessões, isto vai ser a doer! Só os Carlos Lopes e as Rosas Motas é que vão aguentar a passada e sobretudo a longa duração do esforço da corrida! Meti-me com o José Rodrigues dos Santos, no seu volumoso romance de “A Fórmula de Deus”, e ele pegou-me o vício pelos textos compridos. Sabem quem é esse José, não sabem? Então, falaremos do livro, e também falaremos com ele, se tal se nos tornar possível.
O José é um rapaz muito catita! Além de às escâncaras piscar o olho às telespectadoras e telespectadores à hora do Telejornal, ele escreve uns livros não só muito interessantes em termos de mercado, como também muito belos!
Em primeiro lugar, portanto, uns romances muito interessantes. Ele sabe cozinhá-los muito bem, com todos os ingredientes necessários e convenientes para serem excelentes produtos de mercado. No caso em apreço, se uma tal namoradinha Ariana que aqui vai aparecer, “é uma deusa na cama”, o livro do José tem sido uma bomba no mercado.
Vamos então ver por que razões é este romance uma obra interessante, no sentido de que é um excelente produto para vender e comprar. Antes de mais, há nele, embora não muito mas intenso erotismo, como já acenámos e ainda lá voltaremos. Depois, há variados e (alguns deles) exóticos espaços onde a acção se desenrola: Princeton (EUA), Lisboa, Coimbra, Cairo, Irão e Tibete. Por seu lado, a acção é manifestamente excitante, mesmo policial, aproximando-se do rocambolesco com raptos, sequestros e personagens desaparecidas. Há ainda o roubo de um documento secreto e a decifração dos seus enigmas, com a polícia secreta americana e iraniana a disputarem entre si a maior rapidez possível no desvendar dos segredos dessa “Fórmula de Deus”, o secreto manuscrito de Einstein. Faz-se também uma pormenorizada divulgação científica, raiando até a ficção científica … Pode então dizer-se que se trata de uma narrativa global, não só pelos espaços em que a acção decorre, como sobretudo pela actualidade dos assuntos versados, desde a proliferação do armamento nuclear, aos problemas de Deus e da morte, e do sentido da vida e do universo.
Mas voltemos ao erotismo. No contexto da disputa de armas nucleares entre a América e o Irão, quase logo ao princípio da narrativa, um agente omnisciente da polícia americana fala de uma certa Ariana, que é “uma deusa na cama”. No entanto, a rocambolesca trama em que foi metido o protagonista Tomás - que tem de servir simultaneamente a América e o Irão no decifrar do referido texto de Einstein, que as duas polícias erradamente pensavam ser um breve manual de fabrico de armas nucleares - levou a que o seu primeiro mergulho nessa divindade erótica demorasse muito, e não na cama mas sobre uma inóspita pedra! Não obstante, mesmo assim, ele valeu muito bem o sacrifício, não só pela generosidade com que os dois se aplicaram, como ainda por ter tido, no seu teatro de execução, o pano de fundo azul de um lago de águas límpidas no Tibete, lá no tecto do mundo. (Para onde a trama da história os levou, depois de se terem encontrado pela primeira vez, muito lá para trás, na cidade do Cairo).
De modo que, numa longuíssima narrativa como é esta e com personagens tão dotadas para tanto, estaríamos à espera de mais pelo menos um desses mergulhos e de semelhante aplicação, não numa tosca pedra em algures mas numa fofa cama … mas isso não chegou! Não se deu, não por via de algum puxão de orelhas aplicado pela Florbela às já largas e farfalhudas orelhas do seu José -Tomás na narrativa -, mas porque outros assuntos mais ponderosos para a economia da narrativa se atravessaram no caminho. Aliás, na vida real, a Florbela e o José sabem muito bem que não é pelo sexo que se chega ao amor – coisa que vai contra a opinião do mercado e dos incautos -, mas é o amor que se pode servir do sexo.
Não chegou um segundo desses divinos mergulhos porque, na parte final da narrativa, o boneco erótico teve de ser esquecido por virtude da premência do problema da morte (e da imortalidade) e do problema de Deus. Todos sucumbimos perante a morte de um ente querido (no caso vertente a morte do pai de Tomás) e todos a desejamos vencer e portanto ser imortais. Mas para colher o fruto desses desejos precisamos de um Deus que no-la dê, não é? Ou não precisamos?
Até aqui falámos de alguns ingredientes que fazem com que esta longa narrativa seja um produto muito interessante, em termos de mercado. Da sua bondade e beleza ainda não falámos expressamente, mas tais atributos já decorrem de quase tudo o que dissemos sobre o seu interesse. Além disso, há na obra, por exemplo, uma invulgar fluência narrativa, às vezes até com prejuízo de uma mais perfeita beleza formal da frase; há muito belas descrições a visualizar espaços físicos e sentimentos de alma; há enfim um dinamismo narrativo intenso, que não permite abandonar a leitura antes que cheguemos ao seu final.

Como podemos ver na capa do livro, não só o romance mas também o pequeno texto de Einstein, o qual texto inspira e fundamenta e percorre toda a narrativa, levam os dois o mesmíssimo título – A Fórmula de Deus -, só que no caso do segundo ele leva o título em alemão, que era a língua materna do cientista. Versam portanto os dois o mesmíssimo assunto, que é falarem sobre deus: se deus existe e, existindo, que espécie de deus é esse.
Assim, na longa narrativa, o José pretende apresentar duas provas científicas da existência de Deus, as duas baseadas em Einstein, uma delas apresentada ao narrador pelo “Budazinho” do Tibete – monge budista que fora discípulo de Einstein -, e a outra apresentada por Luís Rocha mas produzida por Siza, o qual, por sua vez, fora também discípulo de Einstein e companheiro de estudos do Budazinho. Ora, o que sucede é que, quando falamos de Deus e de provar a sua existência, as pessoas têm habitualmente no seu horizonte simbólico ou cultural o Deus da Bíblia e da religião, portanto o Deus Transcendente.
Concedamos aqui, por momentos, que é do Deus Transcendente que a narrativa está a falar, tentando provar cientificamente a existência desse Deus. E então, será que pode haver prova científica da existência de Deus? Mas como é que a ciência física, que é uma ciência experimental, pode provar a existência daquilo que não é experimentável? Ou será essa existência experimentável? Das duas uma, ou deus não é experimentável, e esse deus é que seria o Deus Transcendente, ou ele é experimentável, e temos simplesmente o deus imanente, sendo só este a poder ser objecto de conhecimento científico.
É preciso, portanto, esclarecermos isto muito bem aos leitores, amigo José, porque o deus de que falas na narrativa e para cuja existência intentas apresentar duas provas é só e sempre o deus imanente, aquele que no interior da evolução joga a sua sorte, nela sujando as suas próprias mãos. Porque ninguém, dentro da narrativa, - nem o patriarca Einstein, nem os seus dois discípulos e também o Luís Rocha que fora colaborador universitário de Siza, todos já referidos, nem o próprio narrador e suponho que, já fora da narrativa, também o autor – ninguém aceita o Deus Transcendente, o Deus da Bíblia e da religião!
Quer isto dizer que, se o José quisesse apor um subtítulo ao título do romance, podia ler-se na capa o seguinte:
A Fórmula de Deus
ou
(De como só existe um deus imanente)
E então, já a obra não seria uma bomba no mercado, porque venderia muito menos!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

TEXTO 16

Olá, meninas e meninos!
Trago aqui comigo no bolso uma coisinha que queria mostrar às meninas e aos meninos! Quero mostrar, mas há-de ser ali, no meio daquele bosque, entre altas e frondosas árvores, onde estamos muito mais à vontade e tranquilos. Pronto, já cá estamos. Então, é assim. Eu trago aqui no bolso um pedaço de cartão dobrado ao meio, remanescência de uma caixa de medicamento. E porque estava desocupado de escritas de um dos lados e portanto vazio e limpo, eu pude escrever lá uns tantos pensamentos de sabedoria oriental, que agora posso facilmente transportar comigo para ler e saborear quando quiser. É sabedoria milenar, muito antiga, mais antiga mesmo que a sabedoria ocidental, e se o ser humano é humano tanto aqui como lá, porque é que nós não podemos aprender também com ela, nós que estamos neste ocidental cantinho?
Mas o que é que estamos a ouvir? Olhem, é além, naquele pinheiro manso! Parece um par de pegas, todas branquinhas e pretas, e de rabo muito comprido. E são mesmo! Meninas e meninos, não são as aves que nos distraem da conversa; as nossas palavras é que delas nos distraem!
Na página da direita eu pude sintetizar, muito brevemente, três pequeninas histórias. Da primeira, escrevi só: o monge do “A sério?”. Era um monge budista muito bem afamado pela sua espiritualidade, a cuja pregação muitas pessoas acorriam, e que até oferecia em particular a sua ajuda a quem isso lhe pedia. Entre os discípulos a quem particularmente prestava ensinamentos, figurava uma garotinha bonita, com notórios predicados à vista – não só dele mas sobretudo de outros – e talvez também com alguns predicados escondidos, e por isso muito imaginados. Porque os paninhos com que ela se cobria seriam menos para mostrar do que para esconder, já que eram sobretudo para podermos imaginar! É que, nestes assuntos, se ostensivamente escancaramos o real, assim não dando pasto à imaginação, esse real a breve trecho redundará em desilusão! Mas para o monge, ainda assim, tal real, que já não pode iludir por não ser imaginado, talvez deva continuar a ser “forma” e por isso ainda ilusão! É o que vamos ver.
Prestava então o monge àquela mocinha, lições particulares de espiritualidade. E tudo correu muito bem, até que a menina intermitentemente deu em faltar, e depois nunca mais voltou. Aconteceu então que, passados mais alguns meses, ela viu-se obrigada a dizer aos seus pais que estava grávida, e que o bebé que em breve iria nascer do seu corpo era também filho do monge! Quando nasceu o bebé, alguém contou ao vento esta transbordante alegria, e como o vento toca em todas as direcções, toda a gente soube logo daquela paternidade, e o monge perdeu toda a sua boa reputação. Furiosos tinham ficado os avós, que agora com o menino nascido não estiveram com paninhos quentes! Levaram o bebé para casa do monge, e a este disseram: “Este menino é teu filho.”. “A sério?”, perguntou ele. E os avós continuaram: “Como é teu filho, ficas com ele. Toma-o!” E o monge ficou com o menino e foi-o tratando com extremoso afecto.
Um ano mais tarde, roída de remorso, a mãe do menino confessou aos seus pais que, afinal, o pai da criança era o filho do merceeiro da esquina! Logo os três foram ter com o monge e disseram: “Afinal, o senhor não é o pai do menino! Pedimos desculpa e vimos buscar a criança”. “A sério?”, perguntou o monge. E devolveu-lhes o bebé. Assim, caros meninos e meninas, talvez convenha nós fazermos como o monge, que “não” criava “resistência” aos acontecimentos que se relacionavam consigo, não ficando à mercê deles mas aceitando o que é.
Que é aquilo além, sobre aquele castanheiro bravo? Deixem-me ver bem. Olhem, são popas! “Popas? Eu quero ver as popas!”, interveio uma menina. Sim, são popas. Não vêem as cristas ou popas na cabeça delas?
Da segunda história, escrevi tão-somente: o sábio do lacónico “Talvez”. Era um sábio para quem as coisas que lhe iam acontecendo na vida não eram boas nem más. Simplesmente lhe aconteciam. “Teres recuperado a saúde foi uma coisa muito boa para ti, não foi”? “Talvez”, respondia ele. “Aquele acidente que há dias tiveste foi uma coisa horrível, não foi”? “Talvez”, respondia. Tal como ele, também nós podemos não julgar o que nos acontece, mas simplesmente aceitá-lo, simplesmente estar em sintonia com ele.
Para a terceira, escolhi a pequena frase “Tudo isto irá passar”. Era um rei que se sentia muito desanimado e triste, e por isso precisava de algo que lhe desse o equilíbrio, a serenidade e a sabedoria necessárias para poder levar uma vida boa. Andou por todo o reino á procura de sábios e prometeu fortunas a quem o pudesse ajudar, até que finalmente encontrou um que se dispôs a ajudá-lo, mas sem querer receber nada em troca porque tal ajuda não podia ter preço. Umas semanas volvidas, o sábio foi ao palácio real, e entregou ao rei um anel em ouro onde estava inscrita esta pequenina frase: “Tudo isto irá passar”. Nada é permanente na vida! As nossas tristezas e dores não durarão sempre, mas as grandes alegrias também sempre terão fim! A “impermanência” é a grande lição para a vida.
Que coisa bonita estou a ver ali, nos ramos daquela mimosa! São melros, pela certa. “Melros”? Sim, melros. Não vêem que são pretos e de bico amarelo? Só faltava agora eles cantarem para nós! E não é que cantaram mesmo, em delicioso trinado?
Vamos agora à página da esquerda, onde escrevi só umas coisas muito breves, aqui e agora um tanto desenvolvidas. Há a “consciência das coisas” (as percepções dos sentidos, as emoções e os pensamentos) e a “consciência dessa consciência”. Com esta nos vem uma grande “paz interior”, uma “paz-alerta”, enquanto, como em filme, aquelas impermanentes coisas estão passando, em primeiro plano. Com ela sentimos a nossa própria “presença”, o nosso “espaço interior”, o nosso “Eu subjacente” que se enche do silêncio do Universo!
Mas voltemos ainda ali, àquelas historiazinhas, e peguemos de novo nelas. “Não resistas, não julgues e tudo isto irá passar” são três degraus para descer em direcção à profundidade do silêncio! Será isto, meninas e meninos, será isto a apologia da inacção, do descompromisso e da fuga? No primeiro degrau, atendemos às emoções; no segundo, ao pensamento; e no terceiro sintonizamos por inteiro com o rio da vida! Será isto a apologia do descompromisso e da morte, ou será a vivência do “agora”, isto que é o “estar” e não o ir? Sintonizar com o rio da vida será ir, ou é só e simplesmente sintonizar? Eu vou nas águas do tempo, mas “sou só sintonização” com elas! Eu sou, indo. Só indo nas águas do tempo, eu posso estar no abrigo do “agora”. Frágil abrigo é este, sem dúvida, mas, ainda assim abrigo, onde sem medos me posso eternamente abrigar!
Um arrulhar de rolas, delicioso e breve, inunda agora todo o bosque. E a envolver o espaço, só permanece um profundo e acolhedor silêncio.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

ADENDA AO TEXTO 15

ADENDA Comentando o que erradamente acontece, quando se fala de amor e se pratica o amor, Krishnamurti diz: “O que (erradamente) acontece é que o amor não é importante, o outro é que é: o objecto do amor é que é importante”. Porque não há três entidades distintas - o eu, o outro, o amor -, considerando-se este amor uma entidade acima e distinta das outras duas! O amor é só e simplesmente as outras duas, transformadas nele. O amor é a completa fusão entre o eu e o tu, amor que, para além de ser actividade dos dois – actividade amorosa - leva cada um a cuidar do outro, a responsabilizar-se por ele, a respeitá-lo, e sobretudo a conhecê-lo. E conhecer o outro, pelo amor, não é mergulhar nele até nele desaparecer, para que algo de novo, daí possa surgir? E então, o que é que nascerá desse ousado mergulho no outro, se atendermos a que “co-nh-ecer” é “(re)nascer com algo ou alguém”? Sim, o que é que nascerá daí, desse recíproco e amoroso conhecimento? Não será, outra vez e simplesmente, a fusão de vida, a fusão viva, a fusão de amor? Para além de ter uma raiz instintiva, o amor também é um sentimento inteligente. Ele cumpre o admirável conúbio, a perfeita união do coração e da mente. Sem este bater em uníssono em cada um, não poderá haver inteligência, nem haver fusão de amor entre os dois.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

TEXTO 15

Olá! Tenho notado que os meninos e as meninas, ao baixarem os olhos para se porem a ler estes longos e tortuosos textos, logo dão em pestanejar e facilmente adormecem, ás vezes até caindo para o lado com ruidoso estrondo! E se há um ou outro santinho – menos santinhas que santinhos – que são mais persistentes e por isso mais devotos, quando estes heróis enfim dobram o cabo das tormentas da leitura das derradeiras linhas de um texto, a multidão dos restantes dorme a sono solto, e até ressona! Dada tal situação, irei mesmo sugerir a uma das enfermeiras – não à Dona Trovoada, mas à Menina do Rabicho – sugerir que, a quem mais sofre de insónias, lhe receite umas pastilhas feitas de alguns parágrafos de um destes textos. E se a teimosa insónia em algum caso persistir – provavelmente isso não irá suceder – então ainda se poderá recorrer à dose cavalar de lhe infligir a leitura de um texto todo até ao fim! Desçamos então à oficina das alquimias, para produzir mais umas quantas doses desse remédio caseiro, que afinal pode ter também o bendito efeito de nos pôr mais despertos para a realidade que somos e nos envolve. É que, se a leitura foi uma navegação de tormentos, desde o início até ao cabo das tormentas, poderá ela redundar em alegria … pois que, lá adiante, já não muito distante, poderemos encontrar a alegria da felicidade! E então, haverá melhor índia do que essa? Os meninos e as meninas lembram-se de há tempos termos subido ao mirante (vejam texto 13.3), para aí descobrir o umbigo do mundo? E não dissemos aí que esse umbigo do mundo, pelo qual nos devemos alimentar, é o conhecimento, começando pelo conhecimento de nós mesmos? E que este auto-conhecimento racional, embora não chegue lá, ainda nos aponta para um nível mais sublime de conhecimento, que é o conhecimento pelo amor? E que, portanto, para nós, o mais genuíno umbigo por que nos devemos alimentar é o amor? Alimentarmo-nos pelo amor … e de amor? Amor que, portanto, também é conhecimento? A estas conclusões chegámos no texto dois em um (texto 14), onde argumentámos e concluímos que, no mais profundo de nós mesmos, conhecer é amar, e amar é conhecer. Isto, claro, na tradição da cultura ocidental. Mas também já aí anunciámos que o mesmo sucede na tradição da cultura oriental, embora por caminho diverso. É isso que agora vamos tentar explicitar, de uma forma breve e muito simples. Todos nós dizemos – ocidentais e orientais – todos dizemos que nós e o universo procedemos do vazio e do silêncio, e para lá haveremos de voltar. Mas depois, enquanto a sabedoria ocidental entende que o caminho para o crescimento espiritual humano está no desenvolvimento e no amadurecimento do eu mental ou racional dos pensamentos – muito embora já se saiba que, mesmo assim, o conhecimento pelo amor esteja sempre para além do pensamento da razão –, a sabedoria oriental acha que tal crescimento espiritual está no cada vez maior apagamento do referido eu mental de todos os pensamentos e desejos. Logo ao nascer, nós somos consciência num corpo, mas ainda não temos o nosso “eu” mental constituído e individualizado. Só por volta dos três anitos é que as crianças começam a usar a palavrinha eu: descobrem-na, e depois até parecem ter prazer em usá-la. Vamos então constituindo o nosso “eu” mental, todo feito de conceitos, conhecimentos, ideologias, crenças… E como tudo isto sejam pensamentos, que se relacionam sobretudo com o passado e o futuro e se vão armazenando na memória, o nosso “eu” assenta e está preso na cadeia do tempo. É certo que o “eu” não pode ser posto de lado. No entanto – está agora a sabedoria oriental a falar -, aquietando-se a mente, nós podemos, a espaços, desocupar-nos dele, assim ficando limpa e intensamente desperta a consciência. E neste caso, ficamos centrados no agora, que está como que para além do tempo. Só no agora, libertos da acção do “eu” mental, podemos estar verdadeiramente atentos. Esta atenção, que é a atenção global, é a verdadeira meditação e a mais pura alegria. Há portanto duas maneiras de olhar, ou de estar atento: a parcial, centrada no “eu” mental; e a global, que não tem centro a partir do qual se procede à observação. A atenção parcial incide sobre aspectos particulares do objecto, ditados pelo “eu” mental, e exige o esforço da concentração. Ao contrário, a atenção global não é comandada pelo “eu mental”, e por isso não incide sobre aspectos particulares e não exige esforço. Da atenção global nasce a compreensão global, ou seja, a percepção imediata e holística, também denominada insight. Quando olhamos ou prestamos atenção global a um objecto, então não há sujeito mas só objecto. Ou melhor: nós somos esse objecto consciencializado ou a consciência do objecto. Ser a consciência do objecto é ser a atenção global e a percepção holística do objecto. Quando olhamos com plena atenção para uma flor, um sol poente, uma montanha ou o oceano, nós envolvemo-nos nessas realidades, desaguamos nelas, perdemo-nos nelas. Por seu lado, elas assumem como que consciência de si próprias. Da atenção global resulta a total compreensão, e as duas nunca andam sem o amor. A compreensão global, ou insight, não é conhecimento mental, baseado em pensamento e palavras. Enquanto este conhecimento mental é próprio do intelecto, a compreensão global – que é imediata e holística e inclui o amor – cabe à inteligência. Citemos, a propósito, Krishnamurti, esse grande mestre da sabedoria oriental: “A inteligência é a perfeita harmonia entre a mente e o coração”. E noutros passos, afirma: “o amor não é uma coisa da mente … é algo que a mente não é capaz de conceber; quando se ama outra pessoa … há apenas uma completa fusão; O amor é muito mais profundo (que os pensamentos), e a profundidade da vida só pode ser descoberta no amor; Amar é estar em comunhão directa; O amor é um estado no qual não existe “eu”; Quando se ama alguém, ama-se toda a humanidade”. O amor é portanto a mais profunda forma de conhecermos, mas tem as suas exigências! Conhecimento que é também, a um tempo e sem distinção, a mais profunda e amorosa comunhão! Amor é o que somos, depois de tudo perdermos. Concluamos então que, também para a sabedoria oriental, conhecer é amar, e amar é conhecer. E agora, para terminar, uma inocente pergunta, dirigida a meninas e meninos: Será que tudo isto não constitui pastilha suficiente para fazer adormecer alguém que não consiga pegar no sono naturalmente? Mas também pode servir - não esqueçamos – para ficar mais desperto e assim pôr uns olhos mais vivos na tal índia – olhos de contemplação ou de desejo, conforme o caso -, índia que afinal já pode ir estando dentro de nós, e que é, de entre todas as índias, a melhor e a mais bela.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

NOTA SOLTA

Uma família grande reuniu-se em congresso, a aquecer-se na requentada fervura das suas velhas mitologias, e também a afagar o umbigo do seu pugilista de serviço. Quanto ao povo, esse, distante dessas festanças, lá vai lutando no vasto ringue da vida, contra as adversidades que esta mesma impõe, mai-las que os políticos incautamente lhe acrescentam. Dois mundos para sempre separados?

sábado, 9 de abril de 2011

TEXTO 14.2

O amor é um assunto encantador, mas também muito sério. Quando o amor se fica pela superfície ou aparências, e se joga sobremaneira ao nível das paixões que do corpo sobem à alma, então, logo que esse fogo efémero se extingue, também esse amor, que nunca afinal fora amor, em breve cessará. Estejamos porém descansados(!) porque as sacrossantas regras do mercado virão em nosso auxílio, e assim, a mando delas, nos descartaremos da embalagem e do produto gasto ou inútil, e logo conseguiremos novo produto, segundo a última gama de ofertas! Só que, assim, meus meninos e meninas, não sendo o amor uma mercadoria e portanto não estando pronto em algures para levantar e levar, o verdadeiro amor fica-nos cada vez mais distante, e entramos em profunda solidão. Na realidade, o amor não é assunto de aparências mas assunto de fundo. Nem nos vem de fora de nós, mas nasce e cresce desde o centro de nós mesmos. Por isso, o amor não é ser amado, mas é sermos nós a amar. E se amarmos alguém a partir do centro de nós mesmos, e esse alguém nos responder também com amor e a partir do seu centro, então é que teremos a reciprocidade do amor, amarmos e sermos amados. Fromm já nos disse que o amor é amar, isto é, que o amor é uma actividade. Actividade que, além de ser actividade – note-se que a actividade de amar (ou dar) é mais importante que o objecto amado -, é uma actividade que se dirige a cuidar do ser amado, a responsabilizar-se por ele, a respeitá-lo e a conhecê-lo. Esparsas pela sua obra já referida, este autor apresenta muitas outras palavras e expressões a qualificar e a definir o amor: o amor é uma “atitude”, uma “orientação do carácter”, uma “faculdade”, uma “capacidade” um “poder da alma”, uma “actividade” que, nascida no meu “centro”, se dirige para o “centro” do ser que o outro é. Quando um homem diz “eu amo-te” a uma mulher, estas palavras podem vir só da superfície dele e atingir só a superfície dela. Mas se, nos dois e entre os dois, tais palavras estabelecerem uma “relação central”, ou seja, vierem do centro de um ser para o centro do outro ser, então isso é o verdadeiro amor. E neste amor verdadeiro, forçosamente eu amo também todas as outras pessoas incluindo eu próprio e outrossim a vida. Quando tais palavras são proferidas no contexto de uma relação central, “a vontade” – segundo nos diz Simone Weill citada por Fromm – “não as pode impedir”. Mas nós diríamos de outra maneira: não só a razão não no-las pode impedir, como até concorda com elas e apoia esse “ousado mergulho” na transcendência da vida, que os dois estão vivamente experienciando. E então, além de experienciarmos o profundo amor por alguém e pela vida, na qual toda a Humanidade se inclui, experienciamos também o amor por nós mesmos, sobremaneira saboreando esse admirável conúbio entre a razão, por um lado, e o instinto e o coração, por outro. Chama-se “estado oceânico” ao sentimento de fusão e de unidade, o qual é “a essência da experiência mística e a raiz da mais intensa sensação de união com outrem”. O ser humano aparece, na evolução, quando aquele bicho se surpreende a si mesmo ao mergulhar no poço da sua subjectividade, que o faz distinto e separado de todos os outros seres. Tal separação e isolamento terão sido uma terrível sensação de solidão. Mas, tal como ser de solidão, por natureza, o ser humano também é, naturalmente, um ser solidário: aquela congénita imcompletude pode saciar-se com a abundância do amor. É claro que o contraste entre o abismo dessa congénita carência, na solidão, e o abismo dessa abundância, no amor, terá sido, então, em comparação com os tempos que agora correm, menos nítido e informe, pelo motivo de então não existir ainda qualquer refinamento evolutivo da raça humana. Porém, hoje, entre os humanos, campeiam a angústia e até o desespero, por causa da solidão, enquanto é rara a suprema alegria no amor. Aqui está, meninas e meninos, aqui está como duas realidades diversas confluem numa só. No profundo centro de nós mesmos, conhecer é amar, e amar é conhecer. O “ousado mergulho” na transcendência da vida constitui-se do mais profundo amar e conhecer. A esta conclusão chega a tradição cultural ocidental, por exemplo pela mão de Erich Fromm. Nascido em 1900 na Alemanha, onde estudou em várias universidades e se doutorou com 22 anos, Fromm viria a abandonar o seu país-natal, profundamente incomodado com guerras e com o nazismo, radicando-se então nos Estados Unidos e depois tornando-se cidadão deste país. Educado no judaísmo, segundo a tradição da sua família, ele abandonou a religião judaica quando tinha 26 anos. Mais tarde, ele explicou este abandono, nos seguintes termos: “Abandonei as minhas crenças e práticas religiosas porque não quis fazer parte de qualquer instituição que dividisse a raça humana, quer em termos religiosos, quer em termos políticos”. Mas também à mesma conclusão, embora por caminhos diferentes, chega a tradição cultural do Oriente. Mas sobre isto conversaremos noutra ocasião.

terça-feira, 5 de abril de 2011

TEXTO 14.1

Olá, meninas e meninos! Falemos hoje aqui de dois em um, ou seja, de duas realidades que, sendo embora diferentes, também são uma só. Estas duas realidades são o conhecimento e o amor. Por isso, na primeira parte do texto, falaremos especialmente do conhecimento, sem no entanto podermos olvidar o amor. Na segunda, falaremos em primeira mão do amor, sem podermos esquecer o conhecimento. Na passada semana, no alto do miradouro (ver texto 13.3), nós falámos de um outro nível de conhecimento, mais sublime do que aquele que nos é dado pela razão. Lembram-se disso, não lembram? E dissemos que o tal outro modo de conhecer é o conhecimento pelo amor, e que, portanto, o mais genuíno umbigo do mundo deve ser o amor. Por ele, nos devemos alimentar. Habitualmente, nós, os adultos, conhecemos através de conceitos. Aquilo que se nos depara como novo procuramos encaixá-lo nos conceitos que já temos, procedendo assim ao seu conhecimento. Mas isto não será conhecer o novo com o velho que já está na memória? O espanto e o encantamento pela novidade não morrerão ali, logo à nascença? De outro modo bem diverso conhecem as crianças pequeninas, porque elas ainda não têm a mente formatada de conceitos. Uma menina, por exemplo, pode brincar meses a fio com a mesma boneca, sem perder o encantamento inicial pelo brinquedo! Para ela, a boneca não é uma boneca, mas simplesmente a boneca. Os adultos é que, já embotados pela sociedade de consumo e de desperdício, arrancam muitas vezes as crianças daquela repetida mas sempre nova brincadeira e contemplação, abarrotando-as de novos brinquedos com que as forçam a ultrapassar rapidamente a fase do encantamento e lhes antecipam a fase dos conceitos. Mas é habitual, digamo-lo de novo, conhecer através de conceitos. Ao falar-nos do amor, Eric Fromm escreve: “para além do acto de dar, o carácter activo do amor torna-se evidente pelo facto de implicar necessariamente alguns elementos básicos, comuns a todas as formas de amor. Estamos a falar de cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento” (o sublinhado é nosso). Há portanto um modo outro de conhecer, que é conhecer pelo amor. A razão só pode conhecer por cristalizações conceptuais, que de algum modo nos afastam das puras realidades e da vida. Sobretudo, só conhecendo pelo amor, podemos conhecer as coisas vivas, precisamente, como diz Fromm, pela “experiência de união” com elas! Com os conceitos da razão, anula-se o vigor das respectivas realidades. Conhece-se de uma forma esbatida, parcelar e não viva. Não é verdadeiramente co-nh-ecer, no sentido de nascer-com-algo ou alguém, nascer-com/para-a-vida. Conhecer pela razão é conhecer com espírito científico e não vivencial; é ver em laboratório e não no teatro da vida. Só podemos conhecer verdadeiramente a vida através do amor. Conhecer pelo (acto de) amor não é conhecimento fornecido pela razão: não é um “conhecimento comum, racional” (as citações são sempre de Eric Fromm, em A Arte de Amar). O conhecimento completo só pode estar no acto de amor, pois ele “transcende o pensamento e as palavras”. Ele é “uma corajosa entrega à experiência da união”. Claro que o conhecimento racional é “condição para o conhecimento total, no acto de amor: só conhecendo um ser humano objectivamente é que posso conhecê-lo na sua derradeira essência, no acto de amar”. Por isto é que os casos de conhecer o Homem e conhecer Deus são bem diversos, pois a Deus ninguém vê, isto é, ninguém o pode conhecer em termos objectivos. Tanto a experiência da união com o Homem, como com Deus (o Deus dos místicos e não o dos teólogos), não é irracional, mas antes “a consequência mais ousada e radical do racionalismo”. Ela baseia-se no conhecimento que temos das limitações do nosso habitual modo de conhecer, pelo qual vemos que, com ele, “nunca possuiremos o segredo do Homem e do universo, mas que podemos, ainda assim, através do acto de amar, conhecer profundamente”. Conhecer pela razão dá saberes; conhecer pelo amor não dá saberes, mas é “a única maneira de conhecermos as coisas vivas – pela experiência da união, e não por conhecimento que a razão forneça”. Queridos meninos e meninas, estão a ver como, falando nós de conhecer, não podemos deixar de falar já de amar? A seguir, na segunda parte do texto e na próxima semana, falaremos em primeira mão de amar, sem podermos esquecer o conhecer.

NOTA SOLTA

A Assembleia fechou ou vai fechar, embora o nosso sangue, isto é, o nosso dinheiro, continue a correr para lá, talvez agora menos nestes compassos de espera. Lá dentro, os políticos foram parecendo bonifrates de feira, e a Assembleia foi-se assemelhando a um circo, onde eles encontraram palanque para desempenhar a sua farsa. Como é costume dele ir às feiras enquanto nelas houver alguns produtos e dinheiro para vender e comprar, o Zé Povinho, que é o dono da Assembleia da República, entrava às vezes para ver uma cenazinha do espectáculo, mas só depois de arrumar os seus negócios de compra e venda, na feira circundante. Fincados em velhas ideologias ainda vivas na cabeça deles, as quais outrora nasceram para serem aplicadas ou para interpretar realidades humanas para nós há muito mortas, os políticos foram-lhe parecendo esses bonecos de feira à marretada uns aos outros, esgrimindo argumentos tantas vezes desencarnados da concreta e viva realidade que deviam ter presente. De modo que, poucos momentos bastando para se sentir enjoado com o espectáculo, o Zé, embora em sua casa, vira as costas e deixa-os sozinhos no meio do arraial já deserto, a entreterem-se com os seus jogos estéreis de palavras. Porque eles deviam saber que a vida é sempre um rio que flui, e não estar atento a ela e aplicar-lhe receitas teóricas velhas gera inundação e desastre pela certa. Eles pensam que, nos seus sistemas ideológicos, têm todas as respostas para as perguntas da vida, mas a vida vem e muda-lhe todas as perguntas! Eles não sabem ser pragmáticos, simplesmente descendo e olhando para a crua realidade da vida em que estamos. É claro que outras razões existem a explicar o mau funcionamento da Assembleia, como é o caso do calculismo político de defesa de interesses partidários em detrimento do bem público. E depois, porque o povo não é culto nem exigente – cada cidadão ser exigente consigo para depois poder ser exigente com os outros -, nunca se promoveu entre nós a cultura da indignação protestante em relação a tudo o que funciona mal na sociedade, já que os impostos que pagamos são mais que suficientes para que tudo funcione bem! Nunca nos empenhámos de forma séria a organizar devidamente a sociedade em que vivemos. Porque cada um de nós também é a sociedade, e só com ela nos podemos verdadeiramente humanizar! Não podemos deixar de ser sociais, mas o melhor é que sejamos cidadãos activos da nossa cidade e país, e também do mundo. Temos vivido sempre ao de leve, sempre de forma muito branda. Vivemos no país do fado, sempre com a cerviz ajoujada ao peso do destino. Se os nossos navegantes de antanho também fossem assim, se não dessem uma grande sapatada em todos os fatalismos, o que é que teria acontecido? Será desta que vamos aprender, ou continuaremos alheios à circunstância social em que vivemos e que faz parte de nós? A política é uma arte nobre, talvez até a mais nobre de todas. Com efeito, para um ser humano, que coisa haverá mais sublime do que servir inventiva e generosamente a sua cidade, ou o seu país? Se os políticos que temos não são inventivos nem generosos, então têm de ir para casa! Depois deles, não haverá mais ninguém, sobretudo entre os jovens, que queira servir a cidade, de forma inventiva e generosa? (Por falta de material informático, esta nota, já pronta no último dia 31, só hoje é publicada)