terça-feira, 31 de março de 2015

285.4

4 – A vida não nos deve nada, vem-nos sempre gratuitamente: assim como nos veio e ainda continua a vir, assim nos pode abandonar num ai. E por isso, se ainda temos vida, como temos, se ela ainda nos habita mesmo que já possuídos por alguma doença, festejemo-la com dignidade, bebamos desse vinho ... até cair!
Temos medo da morte? Porquê termos medo de uma coisa desconhecida? Ele é mesmo medo da realidade que será a morte em cada um de nós, ou ele é só uma elaboração do nosso eu mental, que, agarrado à vida como está, não quer morrer? O que custa não é morrer, nem muito menos estar morto. O que custa é o sofrimento a que geralmente estamos sujeitos até lá chegarmos. Se nada me importa não ter existido antes de nascer, porque me hei-de importar com o depois da morte?
 Talvez nos custe admitir que a nossa morte faz parte da nossa vida, ou então que a nossa vida é como uma doença crónica que nos acompanha desde o berço até à tumba. Mas, se o admitirmos, como parece razoável, não só sentiremos que o sofrimento causado pelas dores é menor, como também que a alegria de estar vivo é mais pura e mais intensa.

Além de tudo isto, este mundo em que vivo já há bastantes anos, foi-se transformando num mundo desinteressante, desinteressante e baço, baço e perigoso. Liberdade? Liberdade de expressão? Sim, claro, liberdade. Mas liberdade inteligente e por isso contida, liberdade começando por ser exercida dentro de nós – não sejamos nós escravos de nós mesmos –, liberdade que floresça para produzir o mais saboroso fruto que podemos ter na vida, o fruto do amor.

segunda-feira, 30 de março de 2015

285.3

3 - Havia pois, nessa altura, no lar, e para além de muitos meninos e meninas velhinhos, “três meninas ainda tenrinhas”, já acima citadas, as quais ainda lá continuam a trabalhar, se bem que agora já um tanto durázias. E então, uma vez, quando as apanhei juntas, desfechei-lhes uma pergunta em desafio: “Olhem lá, e se nós abríssemos um blog em que contássemos desta nossa vida aqui dentro”? Uma reunião bastou para tudo ficar decidido. O blog levaria o título de “O Clube dos Poetas Vivos” e teria como subtítulo “O Fascínio pela Vida, pela Vida Breve que nos Possui neste Planeta Azul”. Elas chegaram mesmo a redigir acta para que constasse a decisão, mas depois, como elas fossem aos pardais e também aos seus ofícios na instituição, eu fiquei sozinho a lavrar os textos, seu lavrador permanecendo até à data presente.
Somos os quatro (elas e eu) ainda vivos e, na altura, entendemos que éramos ou poderíamos ser ao menos latamente poetas e instituir um clube com essa finalidade poética. Pois que, olhando bem a vida, esta vida breve que nos possui neste planeta azul, não é de nós ficarmos fascinados com tão significativa realidade? Sabem de onde vem a palavra “fascínio”? Ela provém precisamente do vocábulo latino “fascinum”, que, nessa língua mãe, significava falo. Precisamente, falo. Mas aqui, subindo a um novo patamar de sentido, ele era então e é agora, para nós, esse profundo encantamento pela vida que nos possui ou em que nós andamos metidos.
Quantas coisas há no mundo – no macro e microcosmos – a requerer o nosso deslumbramento, mesmo só perguntando e sem colhermos as respostas! Como será a vida, se é que ela existe, noutros planetas ou luas dessas inúmeras galáxias? Se o átomo fosse vivo como nós, como veria ele esta matéria extensa e mais ou menos dura que nos é tão familiar? E como é o mundo dos morcegos ou das cegonhas?

O blog de que estamos falando está cheio destas ressumbrantes perguntas. Se alguém se entregasse ao ciclópico trabalho de contar todas as perguntas aí formuladas, contaria com certeza centenas. No texto 18, por exemplo, imagina-se uma conversa com o meu amigo e colega Francisco (aí também chamado José), o qual já não está entre nós e era de todos conhecido. Aí se fala sobre profundos assuntos da nossa vida humana. E depois de imaginariamente lhe formular várias perguntas, termino assim o texto: “Por mim, caro Francisco, por mim, simplesmente sondo, simplesmente vou fazendo perguntas. E não me importo de passar o resto da vida assim, sondando e perguntando, pois não me faltam motivos de alegria para viver”.

domingo, 29 de março de 2015

285.2

2 - Na remota altura em que temporariamente estive num lar – não logo ao princípio mas um pouco mais para diante, - a enfermeirazinha, uma das três jovens já referidas, abeirou-se delicadamente de mim e disse mais ou menos isto: “O senhor João anda muito isolado: junta-se pouco aos outros residentes”. De facto, eu tinha já passado a desagregar-me do rebanho pastoreado pela psicóloga nas horas comunitárias, e a refugiar-me no meu quarto. É que, como começasse a ver vários utentes a passarem-se dos carretos, tive receio de também descarrilar e por isso mergulhei na leitura. Não na leitura de novelas leves ou semelhantes coisas que pedem pouca atenção e nenhuma elaboração mental, mas na leitura de livros de bons pensadores que um generoso amigo me enviava emprestados, os quais me obrigavam a pensar profundamente, e até algumas vezes a dizer para mim: “Eh pá, eu nunca tinha pensado nisto"! É uma grande felicidade alguém surpreender-se a dizer a si mesmo esta ou outra expressão semelhante. Elas são indício de uma descoberta que fazemos, muitas vezes até sobre nós mesmos, enfim sobre a nossa comum condição humana. Quem fala destas descobertas que fazemos com a ajuda de bons mestres, também pode por outro lado referir as perguntas e dúvidas que aí nos ficam sem resposta, talvez mais tarde encontrada ou simplesmente nunca.

Quando me contactou, a enfermeira pensava que eu me isolava no quarto, mas não. Aí, lendo o livro que estava à minha frente, eu estava mais acompanhado do que muitas vezes no salão com os outros utentes, se bem que fossem todos amorosos. Podemos sentir-nos isolados numa grande assembleia ou multidão, e muito bem acompanhados quando estamos sozinhos.

sábado, 28 de março de 2015

285.1 (de 5) - Onde Pára a Felicidade - Abordagem Gerontológica

Comunicação num Colóquio sobre “Onde Pára a Felicidade? – Abordagem Gerontológica”, em Montemor-o-Velho

1 - Quando adrego vir à vetusta vila de Montemor-o-Velho, quase sempre me não dispenso de visitar as cegonhas, à entrada do Clube Náutico. Ver e estar com elas e, quando calha, até almoçar ao pé delas. Trago um farnel e como ali sentado no sopé de um alto choupo, onde, lá em cima, pairam os seus ninhos, cuidando eu, naturalmente, que tais ninhadas não me acrescentem o lanche. Por acaso, hoje não vou. Almoçarei junto de uns domésticos melros que, embora me andem a picar o macio musgo do chão à volta da casa, são pródigos donos de um muito belo cantar por todo o ano, mas sobretudo na estação que lhes é mais própria.
Vamos então ao que hoje a Montemor me traz, de forma especial, que é dirigir-vos algumas palavras sobre o tema em epígrafe: “Onde Pára a Felicidade? – Abordagem Gerontológica”. Eu não sou gerontólogo, mas sim simplesmente geronte: não há que negá-lo nem fugir a essa condição. Não possuo portanto a académica ciência da especialidade, como aquele tem, mas tenho já alguma vivencial sabedoria sobre essa idade, a qual os meus 75 bem medidos já me vão fornecendo. De facto, muita gente poderá falar sobre a felicidade numa abordagem gerontológica, mas estas minhas palavras terão pelo menos a vantagem de constituírem um testemunho vivo sobre o assunto porque, como geronte, falo do que sinto. Do que sinto, e de como poderei potenciar os meios para me tornar cada vez mais feliz.
E começando já pela interrogação que se instalou no título do Colóquio – Onde Pára a Felicidade? – tenho de dizer que a felicidade não existe em si própria, e portanto, com tal declaração, se responde à questão formulada. A felicidade não pára nem anda, porque felicidade é simplesmente um nome, para mais abstracto. O que existe mesmo, realmente, é um João (que sou eu) que é (ou sou) relativamente feliz, como também existem realmente três bem determinadas e conhecidas jovens, porventura felicíssimas nas suas idades ainda e por enquanto juvenis.

É então partindo desta minha realidade de pessoa idosa e com base na minha já razoável experiência desta idade que vos vou dizer alguma coisa sobre como tenho construído a minha mediana felicidade de geronte e, a partir daqui, algo do que vai ser dito se poderá aplicar às pessoas de semelhante idade. Poderá aplicar ou também não aplicar, se atendermos a que cada pessoa é em tudo, e portanto também aqui, um caso singular.

domingo, 22 de março de 2015

284 - Os Pássaros das Palavras

Um poema é sempre o fruto de uma cumplicidade:
para o escrever, o coração põe pássaros nas palavras,

para o ler, é a razão que vai à procura dos pássaros

quinta-feira, 19 de março de 2015

283 - Humilhados e Ofendidos

Há no mundo inúmeros humilhados e ofendidos:
 se tivermos de ser agressores ou agredidos,

que partido, dos dois, iremos nós escolher?

domingo, 15 de março de 2015

282 - Papagaios de Papel

Coisas, gestos, palavras e sentidos …
Somos papagaios de crianças voando pelo céu,

mas sempre presos à solidez da terra

quinta-feira, 12 de março de 2015

281.3-4 - Enrolando o Fio do Aéreo Papagaio

3 - Se, com os olhos da mente, olharmos para dentro da nossa própria mente, verificamos que, em termos muito gerais, ela se constitui de alma e de espírito. Tem esta nossa mente – bendita luz ou flor que do corpo se acende ou floresce -, antes de mais a alma. A esta nossa passiva alma sobem as paixões do corpo: as paixões da ternura, da tristeza, da alegria, da ira, da ambição, do medo … Paixões que irão ser observadas e julgadas pelo nosso espírito, que vai levar o corpo – se este lhe obedecer, é claro – a agir como convém.
Tem também a nossa incorpórea mente o activo espírito, no qual avultam o imaginar e o pensar. Com o imaginar e o pensar – o corpo vai ajudando também -, os humanos desenvolvem as ciências e as artes, criam mundos simbólicos, executam as suas profissões, organizam e regulam a sua vida particular e social.
Mas também com o imaginar e o pensar, sobretudo se os voltarmos para dentro, nós podemos cavar a nossa ruína mental e física. Isso pode acontecer quando - embora sempre presos à terra porque florescem do corpo, e movidos pelas paixões da alma - a imaginação e o pensamento voam soltos para onde lhes apetece, sem qualquer comando. E então, nesse voo vertiginoso e sem fronteiras, atrás do imaginar vai o pensar, o agora pensado vai por sua vez ser imaginado, este imaginado vai ser logo pensado, e assim por diante sem fim, se o mesmo espírito não for capaz de suster esta volúpia!

4 - Por isto é que, em assuntos da nossa vida interior, convém meter rédeas firmes mas suaves à imaginação e ao pensamento, não permitindo que andem descomandados e vadios por longes. É importante que – todos estamos a ver, não é? – é importante que o impassível espírito não se deixe arrastar pelas nocivas paixões da alma mas, ao contrário, embora em cumplicidade com o corpo, este e a mente, (através do espírito porque nela só ele é activo),  procedam àquilo que é melhor e necessário para os dois, na sua condição de elementos fundantes da unidade humana.
Uma maneira de isto se fazer é enrolarmos o fio do aéreo papagaio que é a nossa mente a voar pelo ar, lá fora, e trazermos o imaginar e o pensar para terra, para a casinha do corpo. Isto irá fazer bem ao corpo e também à mente. A imaginação e o pensamento, agora dentro do seu corpo, devem acompanhar os actos do corpo, como pode ser o manifesto caso do comer e de outras actividades diárias, assim fazendo com que os nossos actos não sejam meramente maquinais. Acompanharmos esses actos, e às vezes até podermos estar mesmo dentro deles, uma só realidade nos constituindo juntamente com tais actos, como é quando um cientista está fazendo as suas investigações em laboratório, ou quando alguém mergulha no gostoso mar de uma boa leitura, nela se perdendo.

Vejam agora bem, amigas e amigos, vejam bem a importância deste acompanhamento e até fusão de nós mesmos com aquilo que vamos fazendo. A mente repousa porque deixa de vaguear perdida pelo ar e está agora onde deve estar, porque é do corpo que ela sempre floresce e com isso pode dar frutos; e o corpo, por seu lado, sentir-se-á acompanhado e também mais animado e por isso mais saudável. Mente e corpo em unidade perfeita, mente sã em corpo são.

domingo, 8 de março de 2015

281.1-2 - Enrolando o Fio do Aéreo Papagaio

1 – Olá, amigas e amigos! Depois dos textos 265 e 273, este é o derradeiro texto da tríade inspirada em Hannah Arendt.
Somos então antes de mais corpo, antes de mais matéria. Por isso, a nossa primeira atenção – flor esta nascendo do corpo mas já sendo mental – deve ir para o que é corporal ou material. São os nossos sentidos que, por estímulos neles recebidos, nos trazem notícias desse mundo exterior a nós. Ou então, somos nós que, através dos mesmos sentidos, tomamos a iniciativa de por eles as irmos buscar. Mas também os mesmos sentidos, e agora também o(s) sentido(s) interno(s), nos dão informações do que se passa no nosso corpo, externa e internamente.
Mas também somos mente. Pressentimos isso através dos nossos sentidos, mas é sobretudo pela própria mente, voltada para si própria, reflexamente, que o vemos claramente. A mente recolhe os dados dos sentidos, transforma-os em emoções, sentimentos e ideias, cria mundos simbólicos quase inimagináveis, e desfruta afinal de todo esse alimento.

2 - É sobretudo olhando e sentindo com atenção o nosso corpo – externa e internamente – que nós ficamos a saber que somos tempo. É certo que o tempo também corre por dentro da nossa mente: na infância somos uma nascente a fervilhar de perguntas, o mundo vai-se-nos abrindo em cores de esperança, mas depois, pouco a pouco, rodando os anos, as cores do nosso mundo vão-se tornando sombrias, pesadas, cedendo o passo às certezas, realistas certezas, as perguntas da infância. Mas aquela certeza de que somos tempo, de que somos seres com prazo de validade, é olhando com atenção para o corpo que a colhemos: primeiro uma incipiente ruga a ensombrar o olhar, depois já uns cabelinhos brancos na cabeça, a seguir o incómodo coxear de uma perna, uma aflitiva dor no coração e por aí adiante até ao fim do nosso tempo.

Por tudo isto é que, entre os humanos, nesta contraposição que sentimos e fazemos entre o corpo e a mente, se arreigou a convicção da imortalidade: vemos claramente que o nosso corpo é mortal, mas que talvez, da irremediável morte, se possa salvar a etérea mente.

quinta-feira, 5 de março de 2015

domingo, 1 de março de 2015

279 - Os Frutos mais Sublimes

Dizem que os frutos mais altos da árvore
são os mais gostosos e duradoiros:

mas como, se nós lá não chegamos?