sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

203 - A Fé Religiosa em Ricardo Reis

1 - Olá! Já no texto 201, em que abordámos de uma forma muito breve o tema de Deus ou Deuses em Ricardo Reis (Fernando Pessoa), se pôde subentender um outro tema, aliás correlativo daquele primeiro, e que é o tema da Fé Religiosa, o qual aqui e agora abordaremos também com brevidade. Naturalmente que, quando há deuses para os homens, é porque muitos destes, se não todos, acreditam naqueles e naquilo que eles nos podem conceder.
         Tornemos a citar 3 versos de Ricardo Reis, já referidos no texto 201: (Eles, os deuses) /Vêm fazer-nos crer / (…) / Que o mundo é mais extenso / Que o que se vê e palpa”. Desta forma, ter fé é acreditar que as coisas são mais que coisas (pois são coisas criadas por Deus) e também, muitas vezes, acreditar que as nossas próprias ideias são mais que simples conceitos (subjectividades nossas), por se presumir elas serem as verdadeiras e eternas realidades: Deus, as principais ideias da nossa alma, etc. É assim todo o nosso mundo metafísico a ser aqui implicitamente posto em causa, como explicitamente irá fazer o heterónimo Alberto Caeiro no poema 210.

         2 - Mas há em Ricardo Reis uma ode em que ele explicita com abundância o tema da fé dos crentes (330), ode que, por isso, não podemos deixar de citar numa sua grande parte:
“Vós que, crentes em Cristos e Marias, / Turvais da minha fonte as claras águas / Só para me dizerdes / Que há águas de outra espécie // Banhando prados com melhores horas - / Dessas outras regiões pra que falar-me / Se estas águas e prados / São de aqui e me agradam? // Esta realidade os deuses deram / E para bem real a deram externa. / Que serão os meus sonhos / Mais que a obra dos deuses? // Deixai-me a Realidade do momento / E os meus deuses tranquilos e imediatos / Que não moram no Vago / Mas nos campos e rios. // Deixai-me a vida ir-se pagãmente / Acompanhada p’las avenas ténues / Com que os juncos das margens / se confessam de Pã. // Vivei nos vossos sonhos e deixai-me / O altar imortal onde é meu culto / E a visível presença / Dos meus próximos deuses”.

3 - Neste poema, o sujeito poético dirige-se e interpela os crentes dizendo-lhes que a fé deles turba e perturba as águas claras desta vida terrena. Ela faz com que as boas coisas e alegrias desta vida nunca pareçam realmente verdadeiras e boas porque a fé promete coisas e alegrias muito melhores.
Diz-lhes que esta realidade terrena é que lhe agrada, uma realidade externa e por isso mesmo um “bem real”. O que o sonho da fé dos crentes promete são maquinações dos deuses.
Explica que a realidade que lhe agrada é a realidade do momento, com seus visíveis e próximos e tranquilos deuses (Ceres, Apolo, Vénus, Pã …), os quais não moram no vago mas “nos campos e rios”.
Ele deixa a sua vida ir-se pagãmente … mas essa vida também é de algum modo sagrada! Pois na pagã vida que escolheu e vive também há um altar e um culto, o culto a esta mesma vida terrena, aos seus próximos deuses e ao momento do agora que na vida está vivendo.
Esses “inúteis” crentes, enfim, que se ocupem, como é de sua vontade e lhes pede a sua fé, em sonhar em algo de melhor do que esta vida, mas que deixem para ele esta vida terrena sem lhe turvarem as águas, para que possa consolar-se com essas “claras águas”.


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