1 - Olá, amigas e amigos! Bem sabemos
que o nosso grande Pessoa poetou em nome próprio e em nome de vários seus
heterónimos, entre os quais Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ora, é precisamente
este último que, entre as suas odes, tem uma a dizer assim:
Ponho na altiva mente o fixo esforço / Da altura, e à sua sorte deixo, /
E as suas leis, o verso; / Que, quando é alto e régio o pensamento, / Súbdita a
frase o busca / E o escravo ritmo o serve. (poema 424, Fernando Pessoa, Obra Poética, Editora Nova Aguilar,1981).
E parece que é mesmo Álvaro de
Campos (AC) que elogia este e os outros poemas de Ricardo Reis (RR), toda
poesia das alturas, própria “dos píncaros”, poesia com “alto e régio”
pensamento. AC entende mesmo que, de facto, RR “é um grande poeta (…), se é
que há grandes poetas neste mundo, fora do silêncio dos seus próprios corações”
(sublinhado nosso).
Ora, por ser assim tão notória essa
acuidade de pensamento em RR – mais nos interessa agora esse agudo pensamento
do que o ritmo que o segue e serve –, por isso mesmo é que será bom vermos, em
termos muito gerais, o que pensa RR sobre dois importantes temas: 1 - que deus ou
deuses haverá para os homens; 2 - o que seja a fé ou crença nesse ou nesses
deuses e no que eles possam dar às nossas vidas.
Neste primeiro texto abordaremos, embora
só ao de leve, o primeiro tema referido.
2 - Para RR, há duas espécies de
deuses: os deuses antigos da primeira mitologia (Saturno, Júpiter, Apolo,
Ceres, Pã …), e o deus mais recente, o da segunda mitologia, que é Cristo.
Aos primeiros, RR refere por exemplo
o seguinte: “Os deuses desterrados, / Os irmãos de Saturno, / Às vezes, no
crepúsculo / Vêm espreitar a vida. // Vêm então ter connosco / Remorsos e saudades
/ E sentimentos falsos. / É a presença deles, / (…) // Vêm fazer-nos crer, /
Despeitadas ruínas / De primitivas forças, / Que o mundo é mais extenso / Que o
que se vê e palpa” (poema 311). Como se, portanto, neste caso, as coisas fossem
mais que coisas, por as vermos de acordo com a nossa fé, por as pensarmos
criadas pelo deus ou deuses.
Também aos
mesmos deuses se aplica o poema 323, de Reis: “Não consentem os deuses mais que
a vida. / Tudo pois refusemos, que nos alce / A irrespiráveis píncaros, /
Perenes sem ter flores”. Quer dizer, a
vida terrena e chã que os deuses nos concedem não permite que subamos a
píncaros “irrespiráveis” (e por isso não próprios para nós porque carecemos de
respiração); nem que subamos a píncaros “perenes” e por isso também não feitos
para nós que somos temporais e não eternos, e que, além disso, não nos seriam
gostosos esses píncaros por não terem “flores”, estas nossas terrestres flores.
3 - Mas o caso é que, segundo RR,
toda esta doutrina se aplica também ao deus recente, o deus da nova mitologia,
o qual, segundo ele, é o Cristo. Também este é feito da mesma massa dos deuses
antigos: “Não matou outros deuses / O triste deus cristão. / Cristo é um deus a
mais, / Talvez um que faltava” (poema 313).
E bem avisado parece ter andado RR no
seu “alto e régio” pensamento, quando chamou Cristo (e não Jesus) a este novo
deus. Porque, enquanto aquele é só objecto de crença para os cristãos, este, o
Jesus, é uma figura incontornável da história humana, Mestre inexcedível em
bondade e sabedoria.
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