sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

201 - Deus ou Deuses em Fernando Pessoa - Ricardo Reis

1 - Olá, amigas e amigos! Bem sabemos que o nosso grande Pessoa poetou em nome próprio e em nome de vários seus heterónimos, entre os quais Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ora, é precisamente este último que, entre as suas odes, tem uma a dizer assim:
Ponho na altiva mente o fixo esforço / Da altura, e à sua sorte deixo, / E as suas leis, o verso; / Que, quando é alto e régio o pensamento, / Súbdita a frase o busca / E o escravo ritmo o serve. (poema 424, Fernando Pessoa, Obra Poética, Editora Nova Aguilar,1981).
E parece que é mesmo Álvaro de Campos (AC) que elogia este e os outros poemas de Ricardo Reis (RR), toda poesia das alturas, própria “dos píncaros”, poesia com “alto e régio” pensamento. AC entende mesmo que, de facto, RR “é um grande poeta (…), se é que há grandes poetas neste mundo, fora do silêncio dos seus próprios corações” (sublinhado nosso).
Ora, por ser assim tão notória essa acuidade de pensamento em RR – mais nos interessa agora esse agudo pensamento do que o ritmo que o segue e serve –, por isso mesmo é que será bom vermos, em termos muito gerais, o que pensa RR sobre dois importantes temas: 1 - que deus ou deuses haverá para os homens; 2 - o que seja a fé ou crença nesse ou nesses deuses e no que eles possam dar às nossas vidas.
Neste primeiro texto abordaremos, embora só ao de leve, o primeiro tema referido.

2 - Para RR, há duas espécies de deuses: os deuses antigos da primeira mitologia (Saturno, Júpiter, Apolo, Ceres, Pã …), e o deus mais recente, o da segunda mitologia, que é Cristo.
Aos primeiros, RR refere por exemplo o seguinte: “Os deuses desterrados, / Os irmãos de Saturno, / Às vezes, no crepúsculo / Vêm espreitar a vida. // Vêm então ter connosco / Remorsos e saudades / E sentimentos falsos. / É a presença deles, / (…) // Vêm fazer-nos crer, / Despeitadas ruínas / De primitivas forças, / Que o mundo é mais extenso / Que o que se vê e palpa” (poema 311). Como se, portanto, neste caso, as coisas fossem mais que coisas, por as vermos de acordo com a nossa fé, por as pensarmos criadas pelo deus ou deuses.
         Também aos mesmos deuses se aplica o poema 323, de Reis: “Não consentem os deuses mais que a vida. / Tudo pois refusemos, que nos alce / A irrespiráveis píncaros, / Perenes sem ter flores”.  Quer dizer, a vida terrena e chã que os deuses nos concedem não permite que subamos a píncaros “irrespiráveis” (e por isso não próprios para nós porque carecemos de respiração); nem que subamos a píncaros “perenes” e por isso também não feitos para nós que somos temporais e não eternos, e que, além disso, não nos seriam gostosos esses píncaros por não terem “flores”, estas nossas terrestres flores.
        
3 - Mas o caso é que, segundo RR, toda esta doutrina se aplica também ao deus recente, o deus da nova mitologia, o qual, segundo ele, é o Cristo. Também este é feito da mesma massa dos deuses antigos: “Não matou outros deuses / O triste deus cristão. / Cristo é um deus a mais, / Talvez um que faltava” (poema 313).

E bem avisado parece ter andado RR no seu “alto e régio” pensamento, quando chamou Cristo (e não Jesus) a este novo deus. Porque, enquanto aquele é só objecto de crença para os cristãos, este, o Jesus, é uma figura incontornável da história humana, Mestre inexcedível em bondade e sabedoria. 

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