segunda-feira, 29 de outubro de 2012

102 - No Limiar de Novembro


Como podem os seus meninos
ministra cristas
surfar seguros nas vagas deste mar
se por debaixo delas
 há ossadas de caravelas
botes de pescadores tristemente naufragados
barcos de pescadores incautamente abatidos?

Como podem a pé descalço os desportistas
vitorianos esfaimados sem vintém
por caminhos escalavrados e tortuosos
correr todos os passos da maratona
sentindo ao lado em campo verde e a bom recato
os tacos de golfe calculistas?

Como podem os três meninos
ministra cristas
a menina e os dois meninos
lavrar os campos esquecidos
se agora avulta neles
 ondulante e altiva
longa seara de crisantos
a flor de ouro a flor sagrada a flor dos mortos?

Não vai também alastrando
pelo campo europeu
a mesma flor de ouro a mesma flor dos mortos? 

sábado, 27 de outubro de 2012

101 - Doutrinas e Práticas Espirituais


1 - Olá! É bem sabido que a sociedade actual, sociedade do materialismo individualista, das multidões e do dinheiro – poucos indivíduos, cada vez com mais, e, quase todos, cada vez com menos -, se fez uma sociedade laica, secular. Mas não que o subterrâneo impulso das religiões não desponte sempre, não cresça e até, aqui e além, violentamente recrudesça. Porque os seres humanos sempre tiveram e terão de satisfazer duas necessidades profundas: a de nos sentirmos ligados, integrando uma comunidade, e a de termos consolo na dor, no sofrimento e em relação à necessária morte individual. Mas esta nossa relativamente recente sociedade secular, bem mais materialista que espiritual, ainda não soube olhar demoradamente para estas duas necessidades profundas e por isso ainda não sabe satisfazê-las. Ao contrário, as religiões, com a sua sabedoria milenar, sempre souberam - à sua maneira, é claro – atendê-las e dar-lhes satisfação.

         2 - Tomemos o caso da religião que nos é mais próxima, o cristianismo. Em relação àquela primeira necessidade, ela convida para o culto divino em assembleia, no qual sobressai a celebração da missa, a qual, nos primeiros séculos, fora uma simples mas muito especial refeição – por isso chamada ágape – na qual se congregavam crentes para, com a comida e a bebida, celebrarem conjuntamente o amor. Ela oferece e ministra sete sacramentos que, para além de marcarem as três principais fases da vida individual (baptismo para o nascimento, crisma para a juventude, Última Unção para a extrema velhice e a morte), alimentam de pão espiritual e de perdão (Eucaristia e Penitência) e ainda abrem os fiéis para funções particularmente sociais (Ordem e Matrimónio). Ela convida a aderir a movimentos espirituais ou de acção social ou missionária. Há também o ensino da catequese, com uma organização semelhante e quase paralela ao ensino civil. Há ainda um código doutrinário aprendido na catequese e depois professado no culto, e não faltam também festas religiosas populares para alegrarem o pessoal. Mas a força congregadora e comunitária da Igreja sobe ao auge quando, ela própria, se considera um corpo místico ou uma comunidade espiritual – nada materialista e secular - onde cabem todos os seus fiéis. Melhor ainda, ela é o corpo místico de Cristo, já que Cristo, enquanto tal, não pode ter corpo físico mas tão só espiritual ou místico, que são os que nele acreditam.
Quanto à outra profunda necessidade humana, esta religião não só consola na dor, no sofrimento e na morte, como ainda oferece aos seus fiéis o sentido do sofrimento e da morte, não fosse através dele e dela que eles foram salvos no sofrimento e na morte de Jesus, e que terão a vida eterna.

3 – Portanto, as religiões têm muitas coisas boas que os não crentes desta nossa sociedade secular podem aproveitar para as suas vidas, sem que tenham de aceitar os dogmas religiosos. Porque se pode ser não crente, em termos religiosos, mas ser profundamente espiritual.
No sentido de aproveitar o que há de bom nas religiões, vem o livro Religião para Ateus, de Alain de Botton. Filho de pais judeus laicos e também ele ateu confesso, Botton surpreende-se com o enorme manancial de produtos pedagógico-didácticos que as religiões foram inventando para satisfazer aquelas duas já referidas necessidades fundamentais dos seus fiéis, produtos que, em grande parte, também hoje se podem oferecer aos não crentes desta nossa sociedade secular. O caso da ágape ou refeição do amor, na qual se podem congregar pessoas desconhecidas e de diversas raças e estratos sociais é um belo e importante exemplo (ver texto 95). Note-se que ser ateu é não poder aceitar, em consciência, as teóricas verdades ou dogmas de fé que as religiões professam; mas isto não impede, obviamente, que ele possa recolher e utilizar, de forma laica, grande parte das práticas que os fiéis usavam e ainda usam para se animarem, para se sentirem em comunidade, para conhecerem o sentido da dor e da necessária morte.
Mas o caso é que, por incrível que pareça e como já vimos em alguns textos (35 e 62.10), também hoje muitos crentes e mesmo algumas comunidades cristãs procedem de forma semelhante, isto é, obliterando os princípios da fé e só valorizando as práticas. Já se perguntou a condutores de algumas dessas assembleias se eles, na pregação, não insistiam nos alicerces dogmáticos da religião, e eles responderam que isso, actualmente, não interessa às comunidades.
E então, o que acontece é que crentes e não crentes podem ter semelhantes práticas para se alimentarem espiritualmente na vida, mas, no que toca a doutrinas, enquanto os não crentes liminarmente rejeitam os dogmas de fé, muitos crentes simplesmente não fazem caso deles.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

100 - Elogio do Estar Só



Estar só não é ser solitário
nem estar em solidão;
não é não ter pessoas por perto,
mas ter vazia e limpa a nossa mente.

Para melhor apreciarmos o saboroso
gosto de estar só,
é bom de quando em vez
mergulharmos no ruído.

Quando estamos sós, podemos
ouvir as vozes do silêncio;
podemos estar em comunhão
com tudo.

De vazio e de silêncio
se sustentam os seres,
e só lá os podemos encontrar;
só lá avultam as formas
e o poder dos seres.

Só podemos extasiar-nos
com a Beleza
se estivermos habituados
a estar sós.

Somos ondas de energia
do grande Oceano do Universo:
mas quando estamos sós, mais nos sentimos
só água e Oceano.

No puro estar só,
que é a anulação do eu,
descobrimos ser pura relação:
o amor é o fruto deste estado.

Estar só … é estar presente.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

99 - Mal-Aventuranças e Bem-Aventuranças


Mal-Aventuranças e Bem-Aventuranças

Mal-aventurados 1 - Os iluminados (e os) fanáticos que fazem do povo ratinhos para testar as suas teorias não experienciadas;
                            2 - Os que, acossados, anunciam de rompante ao povo as suas descabeladas medidas imediatamente antes de um jogo de futebol, para que os efeitos desse anúncio passem logo ao subconsciente, e assim a dureza das medidas anunciadas não se faça sentir;
                             3 - Os que, de forma dificilmente compaginável, no mesmo passo em que anunciam um enorme e nunca visto aumento de impostos, também conseguem beijar o povo dizendo que ele é o melhor povo do mundo;
                             4 - Os que só se interessam por ser bons alunos, mesmo depois de as teorias dos seus mestres serem por estes mesmos rejeitadas;
                             5 - Os que anunciam as suas medidas ao povo, sem lhe mostrarem os princípios em que as fundamentam e o que com elas querem atingir;
                             6 - Os que escondem com um verniz de entendimento, as suas desavenças partidárias;
                             7 - Os que confundem determinação com pertinácia;
                             8 - Os que são carreiristas de partido, em vez de, fora dele, terem experiência administrativa em empresas e sobretudo em autarquias.
E agora,
Bem-aventurados 1- Os políticos que servem o povo de uma forma impoluta – (ainda os há) – porque esses são os heróis e os santos de hoje;
                              2 – Os cidadãos que, embora não façam parte de partidos – e já tendo provado os seus méritos por dedicação à causa pública – têm a coragem de emergir do povo para o governarem;
                              3 – Os que sabem distinguir o que é moral do que é só legal, e, nessa conformidade governam, aplicando os dinheiros públicos em coisas de importância substantiva para todo o povo, e não para empresas de amigalhaços de partido;
                              4 – Os cidadãos corajosos e competentes que, nesta aflição em que estamos e se preciso for, avancem para integrar um governo de salvação nacional, no sentido de, muito embora também com grande austeridade, arrepiarmos caminho desta senda que nos está levando ao abismo, convencendo as indecisas chefias europeias nesse sentido. O povo precisa de ver sentido em todo o processo de ajustamento.
                              5 – Todos os cidadãos que ainda acreditam neste pequenino país no meio de um grande mundo violentamente competitivo e globalizado, pela sua luz e pelo sol, pela amenidade do seu clima, pelas suas montanhas e pelo bramido do mar, pela gostosa e saudável comida, também pela afabilidade e solidariedade das pessoas, ainda pela ternura que ressuma do “Made with love in Portugal”, marca de fabrico para todo o mundo, como alguém muito bem notou. Porque, como também observou um responsável da ANJE, “Portugal é um paraíso para a produção”.
                             

sábado, 13 de outubro de 2012

98 - Comissários


Comissários

Do olimpo
descendo como um raio de sol, o pai da luz
apeou em terra para se encontrar com europa, a sua nova paixão. Pelo caminho ainda teve de se transformar em touro, mas depois, assumindo vulto humano com o que logo se evolou o susto da menina, ele
enregou a sorrir-se muito para ela e edecetra coisa e tal … : zeus, o pai dos deuses, deus imortal, enamorado de uma menina não divina mas humana, e por isso mortal!
Naquela tarde, pois,
riram muito os dois e cantaram; comeram frutos doces e beberam ambrósia, dançaram muito agarradinhos por um largo trecho, mas depois, declinando o sol, já um tanto cansados dos artelhos,
acoitaram-se ali perto num palheiro de feno seco de pastores rodeado de silvas, por acaso um palheiro que, se hoje fosse, só por inconcebível e portanto imperdoável descuido da alta autoridade, é que ainda não tinha levado em cima com a necessária tributação sobre imóveis.
Seguiram-se vários filhos, meninas e meninos, cada um deles fundando depois a sua tribo. Nesses tempos, europa era muito amada pelo deus da luz, mas depois, porque os filhos e suas tribos foram ficando desavindos entre si por invejas e ganâncias e outras malandrices, e também porque a menina europa foi trocada por outras prendadas meninas mortais de mais recentes e divinas paixões, o libidinoso amante nunca mais voltou. Quando muito, vai agora enviando os seus comissários, esses sabichões de teorias não experienciadas que, mesmo assim, eles aplicam às tribos que consideram madraças.

É por isto que algumas destas tribos já carregam,
monte acima, por castigo da suposta madracice, a sua pesada pedra: carregam-na até ao alto, depois poisam-na lá no topo como se lhes manda …mas a pedra logo rola
por aí abaixo até à base. “Assim, não vale a pena carregá-la”, dizem as tribos. “Não, não”, respondem os comissários, “é preciso levar de novo a pedra para o alto da colina”. “Mas agora”, tornam elas, “isto já não é uma pedra, isto é um pedregulho”! E quando o pedregulho é carregado e depois poisado
lá em cima, logo se vê que toda essa canseira se torna de novo inútil porque também o pedregulho rola
até aos infernos. Mas os comissários insistem que as tribos têm de continuar, sem poderem desanimar: “vá, carreguem mais outra vez a pedra porque, lá em cima, está o céu”!

E assim andam as tribos mais aflitas carregando pedregulhos cada vez maiores, pedregulhos enormes, entre o inferno e o céu, abandonadas do seu pai deus e da sua mãe europa, e só entregues ao desnorte e às obstinadas ordens dos comissários. O céu continua como horizonte e ambição, sim senhor, mas a realidade é cada vez mais só o inferno.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

97 - Harmonia, Pureza e Tanquilidade


1 – Olá, amigas e amigos! Neste ameno dia de Outono, quando o colorido das folhas das videiras prestes a cair pelos campos deslumbra o nosso olhar, falemos da harmonia, da pureza e da tranquilidade, três virtudes queridas de muita gente, entre a qual os que seguem o budismo. Falemos da harmonia, que é nós estarmos em harmonia connosco mesmos e com as nossas circunstâncias; da pureza, que é a nossa pureza mental; e da tranquilidade das nossas emoções.
Se bem que a vida seja feita de equilíbrios e de desequilíbrios – eu sinto fome e por isso vou comer, tenho sono e por isso vou dormir, estou cansado e portanto tenho de descansar – aquelas virtudes são fundamentais para uma vida boa.
Ser puro – vinho puro, ouro puro, água pura - é ser tudo e só aquilo que se deve ser, com toda a inteireza e sem contaminações. Mas quando algo tiver partes constituintes essenciais, como nós que temos emoções e razão, então, para haver pureza, é preciso haver também harmonia entre estas duas partes. Se não houver, também não há tranquilidade.

2 - Nós, seres humanos, como a palavra indica, somos feitos de húmus, de barro ou terra, e por isso, como seres conscientes que também somos, vemos que não podemos perder a ligação com os outros seres humanos, que são barro e mente como nós, como também temos de estar unidos a toda a outra vida e ao outro húmus da Terra. Infelizmente, porém, só quando passamos a sofrer as maldades ou desarmonias que cometemos contra nós, contra as outras pessoas e contra a Natureza, nos apercebemos das muitas vezes irremediáveis consequências desses nossos actos.
Precisamos por isso de viver em harmonia com toda a nossa circunstância. É claro que nós não vamos conseguir tal harmonia se não formos puros e não estivermos tranquilos e em harmonia connosco mesmos e com a Terra. Uma forma excelente de tranquilizar a mente é pedir perdão e perdoar todo o mal que alguém fez a si mesmo e aos outros. Da nossa tranquilidade, tranquilidade emocional, cuidará o frutuoso diálogo entre a razão e o coração, em recíprocos respeito e exigência.

3 - Inimigo comum, em relação a estas três interdependentes virtudes, é o excesso egoico de que habitualmente estamos possuídos, um dos grandes males de que enferma o ambiente cultural em que vivemos. Se não se exagerasse tanto e de tantas maneiras na afirmação do eu, muito mais fácil nos seria o cultivo destas três virtudes. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

96 - Concelebrantes da mesma Humanidade


1 – Antes de mais, somos consciência, consciência viva, consciência do mundo, do qual fazemos parte como acção de consciência facultada pelo corpo; mas, depois, também somos a sua interpretação, que constitui o conjunto da nossa subjectividade pessoal. A interpretação é sempre referida ao mundo, a sua tendo cada um de nós:


2.1 – Num gorjeio infindável, no dia da criança, elas saíram de comboio em visita de estudo até à cidade vizinha, a cidade dos estudantes. Parou-se em Fontela A, parou-se em Fontela B; ah, já sei, diz logo uma menina do quarto ano do básico, nós vamos sair em Fontela Z, não é?

2.2 – A uma mamã-que-há-de-ser, debutante mamã, perguntou-se: então, senhora, qual é a sua maior alegria? A minha maior alegria vai ser o meu filho nascer saudável, e depois ser feliz!

2.3 – Então, amigo, não vai andar nessa sua bicicleta? Vou, pois, mas agora quero estar aqui sentado a olhar o mar. Gosta de encher os olhos de mar, não é? Aqui, com 83 anos, diz ele, toda a minha vida foi o mar. Qual foi, na vida, a sua maior alegria? Olhe, a minha maior alegria foi ver aqui várias vezes a praia cheia de gente, à roda do meu peixe, quando eu ia à pesca com o meu barquinho! E a sua maior tristeza? Tristezas?, respondeu, Ói, tenho tido mais tristezas que alegrias! Mas a maior foi quando eu caí ao mar, no Inverno, quando andava num barco grande. Havia um nevoeiro tão denso que até parecia papas! Tive sorte porque os companheiros conseguiram ver-me cair ao mar. E olhe que, então, ainda nem tinha quinze anos!


3 – A cada um ou uma o seu olhar, portanto, mas só em comunidade salvamos a nossa comum humanidade. Porque, além de indivíduos, nós também somos seres sociais e comunitários. Temos de fazer juntos o nosso caminho de humanidade. Porque só em comunidade podemos confrontar probabilidades, se não encontrarmos certezas; também produzir e desfrutar da bondade e da beleza; ainda confortar o coração com a calorosa rede dos afectos.


4 – Em comunidade, somos todos concelebrantes da mesma nossa humanidade. No altar da vida do mundo, o pão e o vinho dessa celebração não se vêem, pois são abstractos e espirituais. Não se vêem, mas vêem-se e saboreiam-se os seus concretos frutos; têm de ver-se e saborear-se; dar a comer e a beber e a saborear aos outros o pão e o vinho da vida, como damos a nós.

5 – Esta sociedade materialista e laica em que vivemos, sociedade sem religião, não pode perder nem negligenciar a nobre cultura de humanidade, a cultura do espírito. Porque, se agora ela criar outros deuses terrenos, para além do deus único que é a nossa humanidade partilhada, então, eles não serão deuses mas ídolos ou demónios que se virarão contra ela, e tudo caminhará para o abismo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

95 - Uma Ágape Laica


1 - Olá! Há descrentes que olham com fascínio para as religiões por verem que, ao contrário da sua e nossa sociedade secular, elas têm sabido cativar as atenções das pessoas, acolhê-las e acompanhá-las por todo o curso da sua vida, satisfazer enfim as suas duas profundas necessidades existenciais, que são necessidades de todo o ser humano: cada um sentir-se ligado a outros integrando uma comunidade, e cada um descobrir o sentido do sofrimento e da morte.
Por isso, nesta nossa sociedade das grandes e megacidades mas que vive em solidão, nesta sociedade que a todo o transe quer fugir à dor e ao sofrimento mas se martiriza a si própria e sobretudo desconhece o sentido da morte, não poucos descrentes já existem que, ávidos de sabedoria para viverem e muito embora não aceitem os dogmas das religiões, destas procuram recolher muitas das suas boas práticas.
Este é o caso de Alain de Botton, em seu livro Religião para Ateus, o qual me trouxe inspiração para esta como que, e sem ofensa, “Missa Laica”. Em parêntese digamos que, nos primórdios do cristianismo, ágape era a refeição-convívio em que os primeiros cristãos recordavam a vida, a morte e também a ressurreição de Jesus, a qual refeição deu depois a missa dos cristãos.

2.1 – À entrada do salão de festas, o mestre-de-cerimónias – mestre e não celebrante porque todos os convivas é que vão ser os celebrantes – acolhe toda a gente que quis vir e participar no encontro. E depois de já todos estarem sentados, ainda o mesmo profere algumas breves mas sentidas palavras de entrada na celebração, provavelmente em mais que uma língua já que haverá concelebrantes de várias nações e línguas, talvez até desconhecidos uns dos outros, e também de diversos estratos sociais.
         No primeiro passo da celebração, o mestre-de-cerimónias convida os presentes a limparem de maldades e inutilidades as suas mentes, a perdoarem-se uns aos outros e a si mesmos, a sentirem-se tranquilos e em harmonia consigo mesmos e com toda a vida, tudo isto em breves momentos de profundo silêncio.

2.2 - Vem depois, propriamente, a “Liturgia da Palavra”, em cujas leituras se presentifica o sagrado que há na vida, em toda a vida do planeta, nossa casa comum: o sagrado que faz acordar os abrolhos das plantas no início da Primavera; o que leva uma gatinha a proteger as suas crias transportando-as nos dentes para lugar seguro quando em perigo; o que decide o ser humano a dar a sua vida para salvar um outro ser humano; ainda o que leva a acusarmos de sacrílego quem ofende mortalmente um indefeso desconhecido.

2.3 - Chega agora o momento de uma prédica, que, também nestes casos, será habitual. E então, como neste dia estão presentes vários professores, o mestre-de-cerimónias dá a palavra a uma senhora professora para falar a toda a gente: “Nós, que somos professores de Humanidades – de Filosofia, Literaturas, Geografia Humana, Artes, Antropologia, História – chegámos à conclusão de que não podemos ensinar as matérias aos alunos de uma forma neutra, só teórica, mas de forma que as matérias sejam úteis, sejam ligadas à vida dos alunos.
“Ao contrário da sociedade medieval, em que a religião era exímia em inventar instrumentos públicos de educação moral e doutrinal – via-sacra, quadros e painéis murais nas igrejas e nas ruas das cidades e aldeias, onde ainda se vêem cruzeiros, nichos, alminhas, muitos exemplos de toponímia, e sem ainda esquecermos todo o culto e os mandamentos e os sacramentos, com tudo isso impregnando a vida na sua totalidade -, a nossa sociedade secular não admite intromissões públicas na vida privada. Não admite, mas ela própria, em contradição, vive submersa em propaganda publicitária de todo o género: é a política, a económica, a financeira, a alimentar, a de muitos outros campos até aos mais íntimos, sempre tentando convencer e criar hábitos às pessoas.
“Quer dizer, em comparação com a religião, noutros tempos, a cultura de hoje ainda não sabe educar, isto é, não sabe orientar, humanizar, consolar as pessoas. Não sabe porque, muito embora tenha muitos e bons materiais para o efeito, nunca se interessou, utilizando esses meios, por ensinar a viver. Em suma, nas nossas universidades, a cultura não tem estado ao serviço da sabedoria. Ora, é mesmo isto que nós pretendemos começar a fazer. Em cada uma das nossas especialidades humanísticas, em conteúdos e métodos, há muito por onde proporcionar aos alunos esse conhecimento gostoso e bom para guiar e alimentar espiritualmente a vida, o qual é a sabedoria”.
No final das palavras da professora, e depois de alguns colegas presentes darem breves exemplos práticos relacionados com as suas especialidades, estabeleceu-se um breve diálogo entre todos os comensais. Uma opinião por todos apreciada foi a do professor de Artes quando se referiu aos museus: que, em vez de serem só “espaços para expor objectos belos”, os museus deviam ser lugares que usam objectos belos para “tentar tornar-nos bons e sábios”.


2.4 - Na Carta dos alimentos a servir e presente em todas as mesas, pode ler-se, antes de mais, que todos os alimentos são de origem biológica, dados portanto directamente por esta nossa querida Terra, sem quaisquer aditivos nem contravalor acrescentado. A temperar os alimentos há várias ervas aromáticas colhidas de uma horta comunitária, vai comer-se pão integral cozido em forno a lenha, beber-se sumo de uva e não propriamente vinho, e também água de uma ainda não contaminada fonte de montanha.
Mas na Carta onde constam os alimentos do repasto, há também alguns conselhos, se não são mesmo ordens. “Durante a refeição, não se fale de política, nem de agências de rating, nem da Troika, nem de taxas interbancárias, nem dos sentimentos (!) das Bolsas a subir e a descer, enfim, nada que se prenda com dinheiro. Quando muito – e isto até convirá fazer-se – deve jurar-se que o dinheiro é o sangue da economia e das nações, e que não se pode negociar com o sangue”. E ao invés de se falar daqueles e de outros assuntos perturbadores, procure criar-se um ambiente de maior interioridade e até intimidade, com base em perguntas como: “O que é que lamenta especialmente no mundo de hoje? Quais são os seus principais temores? Em que casos é que não consegue perdoar?”.

2.5 - A sala está singelamente adornada, mas de forma muito significativa. Na parede do fundo, há um belo quadro de uma senhora jovem e doce com um menino ao colo. Não é a Virgem Santa Maria dos cristãos, nem é a Ísis dos egípcios, nem a Deméter dos gregos, mas sim e simplesmente uma intemporal figura feminina, imagem ideal de mãe que nos pode saciar a fome de ternura que desde a infância e até hoje nos ficou. No outro topo da sala, na parede que aí se levanta do lado da entrada – vê-se daqui muito bem -, avulta simplesmente uma grinalda de flores e de folhagens, das que a pródiga Natureza ainda nos vai oferecendo pelos campos, apesar dos ultrajes que nela estamos perpetrando.
 Mas nas outras duas paredes, o adorno é outro. Em folhas de cartão grosso e branco coladas à parede, podem ler-se máximas que por certo nos orientarão na vida: “É melhor sermos pessimistas moderados do que exageradamente optimistas”. “A Astronomia é uma grande fonte de sabedoria. É que nós, os humanos, não somos a medida de todas as coisas, pois muito no Universo nos transcende. As estrelas são-nos valiosas também “para enfrentarmos a nossa megalomania, auto-piedade ou ansiedade””. “A nossa sociedade secular pode conhecer uma imensidão de coisas, mas ela não é sábia”. “A maior falha do nosso mundo é o seu exagerado optimismo. Por isso, o pecado original continua a ser uma fábula educativa”.
E a rematar todo o adorno existente a envolver os comensais, vê-se no tecto da sala uma imagem espacial da Terra, o nosso pequenino planeta azul, entre outros planetas e muitas estrelas.

2.6 - Introduz-se agora, na sala, o assim denominado “pão da partilha”. É um pão grande enriquecido de ervas doces e amargas, a ser partido em pequeninos para todos os companheiros presentes. Mas antes de ser partido, o mestre-de-cerimónias lembra que cada fragmento do pão representa a Humanidade inteira e partilhada que, cada um, com respeito e pundonor, deve guardar e promover em si e na sua relação com os outros humanos e também com todo o planeta. E então, depois de o partirem, a cada um e a cada uma é levada e oferecida uma pequenina fatia - alimento espiritual desta nossa vida humana amarga e doce -, e todos a comem em silêncio, num silêncio em que cada um com certeza sente, profundamente, o palpitar da sua própria respiração, da respiração da vida por todos partilhada, coisa mais bela e básica, para nós, que todas as congeminações mentais que habitualmente formulamos e depois costumamos reter, entupindo as nossas mentes.
Termina-se a celebração com o abraço da vida, da vida breve que nos possui neste planeta azul, conforme já se refere no subtítulo deste blog.