Olá!
Vamos aqui falar do sagrado. Depois do sexo, o sagrado. Do sagrado divino, mas também do sagrado simplesmente humano, se é que este sagrado não é também divino. Para o primeiro caso, escolhemos especialmente um passo da Bíblia; para o segundo, elegemos simplesmente alguns exemplos … tirados da Natureza e da vida que nos circunda, e bem assim da vida que nós próprios em nós sentimos.
Seja pela sua congénita incompletude, seja ainda pelo desejo de ter e ser sempre mais, o ser humano é sedento do sagrado. Mas o sagrado – é um assunto deveras interessante – o sagrado joga com os humanos … o jogo do “mostra e esconde”! Pois que, se se escancarasse aos olhos do ser humano, o sagrado banalizava-se … até ao ponto de deixar de o ser. Mas também se não lhe aparecesse de quando em vez, simplesmente não existiria para ele!
Na cultura ocidental, a revelação do sagrado (hier-o-fania ou teo-fania) processa-se justamente no e pelo seu próprio … esconder-se! No exacto momento em que ele se nos mostra, nesse mesmo instante ele se nos esconde!
Coisa idêntica acontecerá na cultura tradicional do Oriente, quando nos fala de “iluminação”. É descendo ao “agora” ao “fora do tempo”, que a revelação do sagrado se pode fazer ao vidente. E logo que sobe outra vez ao tempo – não poderá durar muito esse seu sem tempo -, o vidente vê o mundo de outra maneira, transfigurado de acordo com essa visão.
Ao terceiro dia depois da morte de Jesus, dois dos seus discípulos regressavam desiludidos de Jerusalém para Emaús, aldeia onde viviam, a 12 Km daquela cidade. Vinham conversando e discutindo sobre os últimos acontecimentos relacionados com Jesus, e sentiam-se desiludidos porque já pensavam que ele era o Messias que havia de vir para salvar o povo, mas afinal ele morrera e dele nada mais se sabia.
Até que um desconhecido (que no relato é o Ressuscitado) se abeirou deles, no caminho, e perguntou-lhes sobre o que vinham conversando. Respondeu um deles que falavam e discutiam sobre Jesus de Nazaré, desenvolvendo um tanto mais aquilo que sobre ele já está acima referido. Adiantou, por exemplo, que as mulheres já tinham encontrado o sepulcro vazio, mas ainda ninguém o tinha de novo visto vivo. Então ele, percorrendo as Escrituras, foi-lhes apontando numerosos passos que se referiam ao Messias.
Como já estavam perto da sua aldeia e a noite ia caindo, eles insistiram com ele: “Fica connosco”. E estando os três à mesa, no momento em que ele abençoou e partiu o pão, eles o reconheceram. Só que, no exacto momento em que o reconheceram, nesse mesmo momento ele lhes desapareceu!
Então, já sozinhos, diziam entre si: “Não nos ardia o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras”? E logo voltaram para Jerusalém, a fim de contarem o sucedido aos outros discípulos, ficando ali a saber que ele também já tinha aparecido a Pedro, e que portanto ressuscitara verdadeiramente. Para ler este belo texto no seu original, vejam Lucas 24, 13-35.
Mas é de todo improvável haver dois judeus desconhecidos, numa aldeia ainda hoje não localizável e a doze quilómetros de Jerusalém, haver dois judeus a atribuir a Jesus atributos já tão elaborados, e já pensando que ele pudesse ser o futuro Messias Salvador. Dois judeus desconhecidos e com certeza não pertencentes aos grupos judaicos mais tradicionais e versados nas Escrituras. Improvável também eles já serem discípulos de Jesus, logo ali ao terceiro dia depois da sua morte, pois que o seu magistério ocorrera só na Galileia, muito longe do local onde residiam, que era na Judeia. Improvável ainda eles terem podido aplicar a Jesus todos os passos bíblicos sobre o futuro Messias, pela mesma razão de que eles não terão assistido ao seu magistério. Aquela desconhecida figura foi-lhes desvendando esta aplicação, mas eles nunca a podiam confirmar, precisamente por não terem assistido à sua pregação. Outrossim improvável que, naquela figura para eles ainda desconhecida, eles tenham reconhecido Jesus, agora ressuscitado, precisamente na e pela partilha do pão, à mesa na casa de um deles, quando eles os dois de todo não faziam parte dos íntimos de Jesus que participaram na última ceia onde ele teve esses gestos, e portanto os dois não sabiam o que lá se tinha passado.
Pelo contrário, este texto terá sido escrito várias dezenas de anos depois da morte de Jesus, por alguém que, já sendo cristão, simplesmente imaginou este episódio para confirmar na mesma fé os que já acreditavam em Jesus Cristo morto e segundo eles ressuscitado, e para fazer mais crentes.
Em vida, Jesus dissera aos discípulos que, depois da morte, ele havia de vir em breve para implantar o definitivo Reino de Deus. Mas os anos foram passando sobre esses acontecimentos, e nada de especial acontecia. Foi então que os cristãos, sondando todas as Escrituras do Antigo Testamento, sondando e reflectindo, foram vendo, para além do que Jesus lhes dissera sobre o assunto, o que nelas se dizia sobre um Messias que havia de vir para salvar o povo judaico, tentando aplicar todos esses dados a Jesus, de acordo com o magistério dele enquanto vivo, mas também com a sua fé criativa em relação a esta encantadora figura com quem tiveram o prazer de conviver, durante a sua vida. De modo que este passo do evangelho de Lucas, servido por um texto muito belo, terá sido puramente imaginado e nunca acontecido.
É um texto muito belo, mas também muito pensado e profundo! Veja-se, antes de mais, como, no processo psicológico que conduz os dois discípulos à fé, as emoções são muito importantes! Comentando um com o outro aquilo que lhes acabava de acontecer, eles dizem: “Não nos ardia o coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”. Ora cá está, meus amigos, cá está como “o coração a arder”, neste caso concreto e em todos os outros casos, é sempre o último e decisivo passo para a fé! Sem a intervenção do coração, não há fé. Veja-se ainda como, com a redacção e a divulgação deste texto, se pretende não deixar só nas mãos das mulheres, e logo desde o seu início, o fundamento para esta muito importante crença. Com efeito, no final do texto, diz-se que o Ressuscitado já aparecera a Pedro, e agora aparece a estes dois homens de Emaús. Em terceiro lugar, veja-se como, no momento em que os seus olhos se abriram e viram que aquele desconhecido era mesmo o próprio Jesus Ressuscitado, nesse preciso momento, “Ele desapareceu da sua presença”. Este será caso paradigmático de todas as (verdadeiras?) teofanias: no momento em que o divino se mostra aos homens, nesse preciso momento ele também se lhes esconde!
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