domingo, 11 de setembro de 2011

TEXTO 32

Olá, amigos e amigas, entre quem está também a senhora de sete ofícios que me ajuda em trabalhos domésticos! Gosto muito de passear à beira-mar em manhãs de vento morno, quando o mar se recolhe em vazante. Prodigamente, o mar oferece a nossos pés um longo tapete duro e liso, e o vento, se aí no marulhar das águas da praia não levanta areia que nos afronte, cavalga lá dentro o colosso da água, alguma dela desfazendo em branca espuma. Espuma branca lá dentro, mar em fora, a que o povo, com afecto e também temor, chama “cordeirinhos”, e os pescadores denominam “carneirinhos”. “Olhem como está hoje o mar, tão bonito, cheio de cordeirinhos!”, diz o povo; “Ah Toino, atão tu queres ir ó mar assim Toino? Atão num vês qu´ele ´stá (a jogar) aos carneirinhos?”, clama um pescador para outro, aconselhando-lhe cautela.
Outra coisa bem diversa e muito pior é o mar estar “encapelado”! Mas o que é isto de o mar estar encapelado? Onde foram os falantes da nossa língua buscar esta forma de dizer? Para dizerem o quê? Está aqui o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, que vem em nossa ajuda. Diz-nos ele, antes de mais, que o vocábulo “encapelar” tem origem na palavra latina “capella”. Também nos diz que tal palavra já fora usada lá longe no século dezasseis por Fernão Mendes Pinto, esse famoso trota-mundos das arábias português que, utilizando a riquíssima vivência das suas aventuras e experiências, escreveu depois a sua famosa e fabulosa Peregrinação. Diz-nos ainda que este autor peregrino, recordando o transe de uma nau em que ia numa noite de tormentas, escreveu que ela “ficou atravessada entre duas vagas, onde a “encapelou” uma grande serra por cima da popa”.
Um pouco antes deste passo, na obra, – agora já não por informação do Machado do Dicionário, mas por investigação deste lavrador de textos – somos informados de que Pinto estava no Japão com alguns companheiros portugueses, entre os quais se contava um padre missionário que tentou converter vários sacerdotes budistas para a fé cristã, de companhia com o rei lá do sítio. E foi tal a saraivada de perguntas e objecções à fé cristã formuladas pelos bonzos ao padre, que ele e os companheiros se viram obrigados a deixar à pressa o Japão e a rumarem para a China! É precisamente no capítulo 214, com o título “Da grande tormenta que passámos, indo de Japão para a China, e como fomos livres dela por orações deste servo de Deus”, que aparece o tal passo onde ocorre o vocábulo “encapelar”.

Mas ainda não sabemos como é que em latim se formou a palavra “capella” – já que primitiva não é mas derivada – e o que é que ela lá significava. Nisto, também vamos ser ajudados por um bom Dicionário Etimológico, mas agora da Linga Latina. Aí vemos que “capella” – escrevia-se com dois “ll” e não só um – deriva do vocábulo inicial “caper” (que quer dizer “bode”), do qual se formou em primeira mão o feminino “capra” (cabra), de onde imediatamente derivou esta nossa palavrinha “capella”, que é um diminutivo de carinho que em português significa “cabrinha”. Tão carinhoso e delicado diminutivo encontra-se por exemplo em Horácio, no verso 110 da primeira sátira do Livro Primeiro de todas as suas sátiras. Poeta que já aqui noutro texto foi citado (5), a propósito do filme “O Clube dos Poetas Mortos”, que inspirou o nosso nome de “O Clube dos Poetas Vivos”.
Mas como é que “capella” e “encapelar” têm a ver com grandes tempestades no mar e com a branca espuma que também nessas alturas lá aparece? Aqui, para todo este assunto, socorremo-nos da informação prestada pela querida senhora já acima mencionada, mulher de sete ofícios mais o de guardadora de rebanhos - não virtuais como Caeiro, mas reais mesmo - quando menina adolescente. É que, tal como os bodes (muito menos as cabras) se agitam, se põem aos saltos, eriçam bem o pêlo do lombo e se empinam ostensivamente quando guerreiam entre si, sobretudo quando eles, os machos, disputam as saborosas fêmeas, assim também, quando varrido pelos ventos, o mar tempestuoso se agita, se põe aos saltos, eriça bem o seu pelo e se empina, assim semeando no seu imenso dorso miríades de pontos brancos de espuma.
E porque é que também chamamos à colação os “cordeirinhos” e os “carneirinhos” quando queremos falar dos pontos brancos de espuma num mar agitado, embora não propriamente em grande tormenta e com vagas alterosas, agitação suprema esta que reservamos para o vocábulo “encapelar”? Antes de mais, quando se fala de cordeirinhos, isso tanto dá para filhotes de ovelhas com também de cabras. Depois, o gado caprino e o gado ovino são muito parecidos e vivem geralmente em conjunto no mesmo rebanho, podendo assim tomar-se um pelo outro. No entanto, antigamente, o gado caprino seria mais habitual que o ovino, tendo em conta que este geralmente só come erva, enquanto que aquele, além de mais agitado, come também silvas e mato e trepa aos arbustos e às árvores. Além disso, também os bodes são entre si mais agressivos que os carneiros, e lá está naqueles o levantado pêlo do dorso, que é altamente sugestivo e significante.

Também são muito gostosas as ventosas tardes, aqui à volta da casa de seguras fundações. Aqui não há cordeirinhos brancos nem se joga aos brancos carneirinhos, mas no ar ondulam as vagas do vento, silvando nas verdes cabeleiras das árvores. “Catedral verde e sussurrante”, como disse o poeta, “onde se alonga e prolonga a longa voz do mar”.
Ágil e invisível é o vento, tão assemelhável à invisível agilidade do pensamento. Era um destes abrigos e refúgios que os sábios romanos e latinos procuravam para, em segurança, fugirem à agitação vária e incerta das suas agências de notação financeira, a atormentarem a pacatez das suas vidas. Aquele “odi profanum vulgus et arceo”, um outro verso de Horácio, tem um pouco o sabor de quem se afasta, embora sem desdém, do tumultuoso ajuntamento do profano vulgo, para se entregar, em solidão, aos prazeres espirituais do seu ócio literário, quase levitando sobre o precário fluxo temporal que corrói o corpo, mas assim alimentando o espírito.
Ágil e invisível é o vento, tão semelhante à também invisível agilidade do pensamento. Na solidão da actividade do meu pensar, mergulhado embora no meu corpo e na sua movediça e distractiva circunstância, a minha consciência vê que lá há sempre um perguntar e um responder, silencioso diálogo de dois falantes que, para bem, para ser uma actividade feliz, os dois têm de estar em graça, graça quase divina. Isso é a preciosa comunhão que pode existir na solidão – eu e o que comigo fica em casa sem mais ninguém -, a mais íntima e profunda bipolaridade que acontece em toda a natureza criada. Íntimo conúbio entre estes dois interlocutores no diálogo do pensar, mas também entre o nosso próprio pensar e o nosso coração das emoções e sentimentos, como já se notou noutros textos (14.2 e 25). Os dois intervenientes do meu pensar em estado de graça, sim, pois, o que seria se um deles gozasse desse estado quase divino … e o outro fosse um salafrário? Pior ainda, porém, é quando tal diálogo se interrompe e, em vez de dois, fica só um. Então, a solidão, essa branca solidão que é uma tão boa companhia, vira solidão negra, vira solidão mortal!
Bailam ainda, tocadas pelo vento, as ramagens das árvores. Mas tudo já mais calmo, tudo mais pacificado. A viva paz que é o nosso alimento.

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