sexta-feira, 30 de setembro de 2011

TEZTO 34.2



Entremos então na segunda parte do texto, para falarmos sobre o sagrado humano, se é que ele não é também divino.
Já alguém viu a Natureza a pôr as mãos numa pedra-calcária para dela fazer pedra-mármore, uma pedra muito mais dura e bonita? Já alguém reparou como, da lava incandescente de um vulcão, ela tanto faz granito como basalto? Nunca ninguém a viu a fazer estes milagres e, no entanto, ela opera-os!
Por diversas razões, eu gosto muito de passear pelas estradas e caminhos das aldeias. Uma das mais repousantes para mim, mas também impressivas, é precisamente olhar e perscrutar a nossa mãe Natureza, a ela estando atento e à minúcia dos seus gestos. E então, na estação dos botões e das flores, isso é o máximo! Os quintais, todos cultivados quase só por pessoas de avançada idade, estão primorosos. Também é muito agradável pôr os olhos nos baldios e em outros terrenos não cultivados, porque também aí a Natureza nos oferece mimos. Porque não é a Natureza que me força os olhos a olharem para si, a contemplar a sua beleza; os meus sedentos olhos é que vão à sua procura! Mas será que ela me vai revelar as suas mais profundas belezas?
Está aqui, neste quintal, uma latada de videiras. Muitos são os seus abrolhos, que todos ainda não abriram, mas em breve virão à luz. Não posso pretender vê-los todos a abrir, mas um ao menos gostaria de ver! Por isso, sobre este mesmo que está aqui, do braço desta videira que repousa sobre o muro - eu não vou mesmo esquecer-me –, sobre este é que eu vou estar de olho atento e vivo … para presenciar o milagre! Vou passar, então, todos os dias por aqui, talvez até mais de uma vez. Passo num dia, noutro e noutro, e tudo permanece idêntico, sem qualquer novidade. Mas é curioso e até intrigante porque muitos irmãos botões já abriram, mas o meu continua fechado e a dormir! Agora, vou até passar mais vezes, se isso me for possível, para o surpreender no seu nascer e abrir. Porém, num belo dia de manhã, ainda gotas de orvalho se viam meditando azuladas pelo ramo acima, o meu botão ainda por abrir … agora já estava aberto! Porque é que a Natureza gosta tanto de nos esconder as suas mais belas ternuras? Será por medo de as conspurcarmos, logo ao nascer, com um profano olhar? Porque o sagrado aconteceu, o sagrado mostrou-se … mas os meus olhos não viram essa aparição!

Lembro-me agora de uma conversa que tive com um amigo recente, na qual se vêem deliciosos passos de um seu enamoramento. A jovem estava a trabalhar sentada, com algumas mulheres à volta, e ele acocorou-se ao lado dela. Calhando falar-se de acidentes de trabalho, ela própria referiu que já tinha tido um, e que ainda se podia ver no seu corpo a remanescente cicatriz. E sem delongas, mas muito naturalmente, a menina baixou levemente o decote da camisola do lado do ombro esquerdo, o lado do coração, e mostrou a cicatriz. Só o rapazinho agora meu amigo a pôde ver, porque era ele quem estava mais perto dela. Ele ergueu-se sobre os joelhos, isso bastando para a poder contemplar, acocorando-se de novo ao lado da menina, e das outras pessoas presentes. O palavreado das mulheres que se seguiu a esta divina aparição levou-o a esquecer um tanto a feliz ocorrência, mas nunca mais se lhe apagou da memória.
Neste ponto da conversa com o meu amigo, nós rimo-nos os dois a bandeiras desfraldadas! Não nos rimos da menina, não senhor, pois que até foi generosa para ele. Rimo-nos por nós homens, perante o sexo oposto, nos comportarmos assim!
Enquanto durou aquele ajuntamento e o palavreado das mulheres vigorou, a força daquela aparição não se lhe fez sentir, mas depois, entrado à noite para o escuro silencioso do seu quarto, então é que ela aí o começou a possuir. Pela mão do desejo, a ebúrnea alvura da carne guiou-o, descendo, para o cume do seio, daí irradiando em outras direcções, mas sendo sempre só o sonho a comandar-lhe os movimentos imaginados…
Mas está ali um menino a abanar negativamente a cabeça e mostrando que quer intervir. “Pois diga lá, faz favor”. “Digo que parece impossível que o “sagrado”, sendo algo tão nobre, mesmo até mais sublime que a própria natureza humana, se possa aplicar a coisa tão baixa, como são as paixões”!
É muito interessante a sua posição, meu caro amigo, e ela até nos leva a aprofundar um pouco mais este assunto. Sabe que os gregos antigos tinham vários deuses para protegerem as nossas paixões, não sabe? Sendo assim, é porque esse povo as considerava como boas, como nobres e até talvez divinas! Sabe que Einstein tinha uma grande paixão pela música? Será assim baixeza tão grande gostar muito de cinema, ou de ver o mar, ou de trepar aos cumes nevados das montanhas, ou até, mais prosaicamente, de se perder por uns grelinhos de nabo com uma batatinha cozida, a acompanhar um peixinho grelhado no carvão? O que seria daqueles divinos poemas inspirados na sua Laura, se Petrarca não estivesse dela enamorado? E muitos dos mais belos poemas de Camões, sem as suas amadas mulheres, poderiam existir? A capacidade de se poder apaixonar, em suma, não será algo de sagrado no ser humano?

Entre nós, seres humanos, o jogo do amor – que se constitui das primeiras abordagens, do enamoramento, da paixão e do maduro amor – o jogo do amor é também o jogo do sagrado! É claro que, como somos feitos de paixões mas também de razão fria, da junção destes dois ingredientes resulta que tal jogo nem é calmo nem é pacífico, mas é antes anjo e demónio, é presença e ausência, sendo não raro esta a poder avivar aquela.
Aquilo do “mostra e esconde” (do corpo mas também da alma) é mais próprio dos três primeiros andamentos do jogo: o sagrado mostrou-se, está ali, existe, mas depois teve de esconder-se, para não se banalizar. Esta temporária ausência alimenta o sonho, e o sonho alimenta o desejo, e o desejo alimenta o sagrado. Ele irá por isso e depois desvelar-se de novo, de forma talvez mais generosa, mas sempre só (e não mais) de modo a que não se extinga a chama do desejo do sagrado. Será tudo isto, na sua raiz, um movimento irracional de paixão? Mas o próprio maduro amor, que eu posso ter por alguém, não é também sempre um ousado e arracional mergulho na sua intimidade, podendo portanto não ser correspondido? Pois que o amor, o sagrado, o divino amor que ofereço ao outro podem nele não suscitar idêntico impulso, podem não existir lá para vir ao meu encontro! Gostava muito que, em resposta ao meu impulso de amor, se desse sempre essa feliz aparição … mas não dá! Mas também pode acontecer que, onde já eu penso que não vai haver correspondência ao amor oferecido, ela me pode aparecer depois no cuidado ou no respeito que o outro passou a ter para comigo, activos predicados que sempre acompanham e portanto provam a existência de um verdadeiro amor. E então, a feliz e sagrada aparição está ai!

É preciso estarmos ou sermos seres com muita sede de transcendência, para podermos estar abertos ao amor e ao sagrado. Podemos simplesmente estar sequiosos de ver o deslumbramento da Natureza, que se abre em milagres perante os nossos olhos; ou sequiosos do regaço de uma mulher, ou de um musculoso braço masculino; ou ainda sedentos de um Deus que tarda em se nos revelar. Mas sermos seres com sede de transcendência é justamente aquilo que nós somos! A congénita carência ou incompletude do ser humano … todos nós a sentimos. Por isso, não podemos passar sem o amor e o sagrado, sem o sagrado amor!
É assim o ser humano um ser a quem o sagrado pode aparecer, até porque ele também o pode produzir. Agora, quanto ao sagrado e ao amor de Deus, também eles poderão aparecer-nos? Está ali um ser humano á minha frente, que eu vejo e ouço e toco, com quem me rio e choro e falo. Eu sei que, tal como eu, também ele será capaz de se transcender, capaz portanto de amor e de sagrado. O amor e o sagrado podem lá não estar, é verdade, mas sei que lá podem nascer e depois se me mostrarem! Mas o sagrado e o amor de Deus, o qual eu não vejo nem ouço nem posso tocar, existirão realmente para se me poderem mostrar? Eu sei que, se Deus existir, terá ele de ser sagrado Amor e Inteligência, pois que estas duas realidades se confundem e constituem o que existe de mais sublime (texto 14). Mas … mas … quer um menino ou menina, dos que mais assíduos são na leitura destes textos, completar este inacabado texto?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

TEXTO 34.1


Olá!
Vamos aqui falar do sagrado. Depois do sexo, o sagrado. Do sagrado divino, mas também do sagrado simplesmente humano, se é que este sagrado não é também divino. Para o primeiro caso, escolhemos especialmente um passo da Bíblia; para o segundo, elegemos simplesmente alguns exemplos … tirados da Natureza e da vida que nos circunda, e bem assim da vida que nós próprios em nós sentimos.
Seja pela sua congénita incompletude, seja ainda pelo desejo de ter e ser sempre mais, o ser humano é sedento do sagrado. Mas o sagrado – é um assunto deveras interessante – o sagrado joga com os humanos … o jogo do “mostra e esconde”! Pois que, se se escancarasse aos olhos do ser humano, o sagrado banalizava-se … até ao ponto de deixar de o ser. Mas também se não lhe aparecesse de quando em vez, simplesmente não existiria para ele!
Na cultura ocidental, a revelação do sagrado (hier-o-fania ou teo-fania) processa-se justamente no e pelo seu próprio … esconder-se! No exacto momento em que ele se nos mostra, nesse mesmo instante ele se nos esconde!
Coisa idêntica acontecerá na cultura tradicional do Oriente, quando nos fala de “iluminação”. É descendo ao “agora” ao “fora do tempo”, que a revelação do sagrado se pode fazer ao vidente. E logo que sobe outra vez ao tempo – não poderá durar muito esse seu sem tempo -, o vidente vê o mundo de outra maneira, transfigurado de acordo com essa visão.

Ao terceiro dia depois da morte de Jesus, dois dos seus discípulos regressavam desiludidos de Jerusalém para Emaús, aldeia onde viviam, a 12 Km daquela cidade. Vinham conversando e discutindo sobre os últimos acontecimentos relacionados com Jesus, e sentiam-se desiludidos porque já pensavam que ele era o Messias que havia de vir para salvar o povo, mas afinal ele morrera e dele nada mais se sabia.
Até que um desconhecido (que no relato é o Ressuscitado) se abeirou deles, no caminho, e perguntou-lhes sobre o que vinham conversando. Respondeu um deles que falavam e discutiam sobre Jesus de Nazaré, desenvolvendo um tanto mais aquilo que sobre ele já está acima referido. Adiantou, por exemplo, que as mulheres já tinham encontrado o sepulcro vazio, mas ainda ninguém o tinha de novo visto vivo. Então ele, percorrendo as Escrituras, foi-lhes apontando numerosos passos que se referiam ao Messias.
Como já estavam perto da sua aldeia e a noite ia caindo, eles insistiram com ele: “Fica connosco”. E estando os três à mesa, no momento em que ele abençoou e partiu o pão, eles o reconheceram. Só que, no exacto momento em que o reconheceram, nesse mesmo momento ele lhes desapareceu!
Então, já sozinhos, diziam entre si: “Não nos ardia o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras”? E logo voltaram para Jerusalém, a fim de contarem o sucedido aos outros discípulos, ficando ali a saber que ele também já tinha aparecido a Pedro, e que portanto ressuscitara verdadeiramente. Para ler este belo texto no seu original, vejam Lucas 24, 13-35.

Mas é de todo improvável haver dois judeus desconhecidos, numa aldeia ainda hoje não localizável e a doze quilómetros de Jerusalém, haver dois judeus a atribuir a Jesus atributos já tão elaborados, e já pensando que ele pudesse ser o futuro Messias Salvador. Dois judeus desconhecidos e com certeza não pertencentes aos grupos judaicos mais tradicionais e versados nas Escrituras. Improvável também eles já serem discípulos de Jesus, logo ali ao terceiro dia depois da sua morte, pois que o seu magistério ocorrera só na Galileia, muito longe do local onde residiam, que era na Judeia. Improvável ainda eles terem podido aplicar a Jesus todos os passos bíblicos sobre o futuro Messias, pela mesma razão de que eles não terão assistido ao seu magistério. Aquela desconhecida figura foi-lhes desvendando esta aplicação, mas eles nunca a podiam confirmar, precisamente por não terem assistido à sua pregação. Outrossim improvável que, naquela figura para eles ainda desconhecida, eles tenham reconhecido Jesus, agora ressuscitado, precisamente na e pela partilha do pão, à mesa na casa de um deles, quando eles os dois de todo não faziam parte dos íntimos de Jesus que participaram na última ceia onde ele teve esses gestos, e portanto os dois não sabiam o que lá se tinha passado.
Pelo contrário, este texto terá sido escrito várias dezenas de anos depois da morte de Jesus, por alguém que, já sendo cristão, simplesmente imaginou este episódio para confirmar na mesma fé os que já acreditavam em Jesus Cristo morto e segundo eles ressuscitado, e para fazer mais crentes.
Em vida, Jesus dissera aos discípulos que, depois da morte, ele havia de vir em breve para implantar o definitivo Reino de Deus. Mas os anos foram passando sobre esses acontecimentos, e nada de especial acontecia. Foi então que os cristãos, sondando todas as Escrituras do Antigo Testamento, sondando e reflectindo, foram vendo, para além do que Jesus lhes dissera sobre o assunto, o que nelas se dizia sobre um Messias que havia de vir para salvar o povo judaico, tentando aplicar todos esses dados a Jesus, de acordo com o magistério dele enquanto vivo, mas também com a sua fé criativa em relação a esta encantadora figura com quem tiveram o prazer de conviver, durante a sua vida. De modo que este passo do evangelho de Lucas, servido por um texto muito belo, terá sido puramente imaginado e nunca acontecido.
É um texto muito belo, mas também muito pensado e profundo! Veja-se, antes de mais, como, no processo psicológico que conduz os dois discípulos à fé, as emoções são muito importantes! Comentando um com o outro aquilo que lhes acabava de acontecer, eles dizem: “Não nos ardia o coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”. Ora cá está, meus amigos, cá está como “o coração a arder”, neste caso concreto e em todos os outros casos, é sempre o último e decisivo passo para a fé! Sem a intervenção do coração, não há fé. Veja-se ainda como, com a redacção e a divulgação deste texto, se pretende não deixar só nas mãos das mulheres, e logo desde o seu início, o fundamento para esta muito importante crença. Com efeito, no final do texto, diz-se que o Ressuscitado já aparecera a Pedro, e agora aparece a estes dois homens de Emaús. Em terceiro lugar, veja-se como, no momento em que os seus olhos se abriram e viram que aquele desconhecido era mesmo o próprio Jesus Ressuscitado, nesse preciso momento, “Ele desapareceu da sua presença”. Este será caso paradigmático de todas as (verdadeiras?) teofanias: no momento em que o divino se mostra aos homens, nesse preciso momento ele também se lhes esconde!

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 33

33 – Sobre sexo:
- Sexo pelo sexo e sexo por amor;
- O amor segundo a nossa natureza: realidade mental nascendo sempre de um corpo sexuado, e muitas vezes incluindo sexo;
- O sexo tempera todos os aspectos da vida do ser humano;
- O sexo, ao serviço da continuação da espécie, mas também como elemento do amor global, que cura o indivíduo da sua congénita carência, em ordem à sua completude no mesmo amor;
- O que é mais importante no ser humano: o sexo ou o espírito, o corpo ou a mente?
- Há sexo sem amor? E amor sem sexo, haverá?

sábado, 17 de setembro de 2011

TEXTO 33

Olá, meninos e meninas, pois é por termos todos sexo que meninas somos ou meninos! É mesmo por isso que hoje vamos falar dele, de sexo - porque não? -, mas também falar de amor, indo já directos ao assunto.
O prazer que um homem sente por ser capaz de amar a mulher a amar, e depois também por sentir que ela está a ter prazer e a ficar satisfeita, todo esse prazer não será menor que o prazer que ele sente em ela ser capaz de o amar a ele, de o amar mesmo e de o deixar satisfeito, assim lhe retribuindo em simultâneo aquela sua dádiva.
Mas a partir do momento em que o ser humano passou a ser racional, isto é, a ter uma vida mental com alma e espírito como realmente temos – e essa vida mental existiu desde sempre no ser humano porque é seu constitutivo desde o início –, aquela relação sexual de que falámos, se não incluir e depender também dessa vida mental, essa relação é simplesmente animal! Não pode chamar-se amor a isso, não é? É que o amor, amor mesmo, tem de incluir a sua constitutiva componente mental. O amor pode servir-se e completar-se no sexo, pois claro, mas é algo também e sobretudo mental. Se o amor não for também radicalmente mental, a tal relação é de animais e não de seres humanos! Mas é ainda pior do que isso porque, sendo o ser humano provido constitutivamente também de vida mental e por isso devendo ter relações de amor de acordo com tudo aquilo que o constitui, então, essa tal relação que houve não é própria de animais mas é uma relação animalesca! É que, segundo um ditado antigo, a corrupção do óptimo transformou o óptimo naquilo que é péssimo.

Com sexo - portanto sempre diversamente, conforme se trata dele ou dela - se tempera o timbre da voz do homem e da mulher; com sexo escolhem a cabeça e a boca de cada um, as suas próprias palavras; com sexo, os próprios olhos vêem mundos diversos; com sexo, as emoções moldam o seu distinto caminho, e o pensar produz os seus peculiares pensamentos; com sexo, sentimos o nosso corpo e construímos a nossa mente; com sexo se contempla e se cria o brilho de um olhar, mas também a tristeza; com sexo se configura externamente o corpo do homem e da mulher, se organiza enfim todo o mundo de cada um, para além de cada um ter os seus diferentes órgãos sexuais.
Porque é que o homem e a mulher são assim diferentes? Não será para naturalmente se atraírem um ao outro e poderem procriar, mas também para, nessa diferença, criarem os dois uma nova e superior unidade? Não são os dois congenitamente carentes, precisamente para que cada um vá ao encontro do outro, assim ganhando a sua completude, os dois numa unidade de amor?

O que é mais importante no ser humano? O sexo ou o espírito? O corpo ou a mente? Nós sabemos que a mente deve regular a vida do corpo, ocupando-se não só da saúde de si própria como ainda da saúde do corpo e das emoções que dele sobem à alma. Mas também sabemos, como já vimos em textos anteriores, que o amor, o genuíno amor entre um homem e uma mulher, é um ousado mergulho arracional na intimidade do outro. Por isso, na hora da verdade, não é a mente que assume a prevalência mas o corpo; não é a voz da razão mas a do coração; essa ousadia não pertence ao espírito mas ao corpo; o tal mergulho ousado, que é o cume mais altaneiro do amor e não tem de ser só momentâneo, pertence ao coração! É certo que o sexo é mais próprio do corpo – é corpo sexuado -, mas também ele ocupa profundamente a alma em virtude das paixões que do corpo a ela chegam, e também “contamina” o impassível espírito! Aquela ousadia e aquele mergulho pertencem em primeira mão ao corpo e ao coração, sim senhor, mas o espírito permanece cauteloso e atento!
Há com certeza sexo sem amor. Mas poderá haver amor sem sexo, embora em outra dimensão, claro está? Mesmo o amor mais divino? Não é o ser humano, por ser humano, um ser sexuado de carne e osso e sexo? Poderá ele amar a Deus, nesta vida mortal, eliminando o seu corpo, corpo sempre sexuado?
Na relação entre homem e mulher pode acontecer o amor total, amor a rego cheio, amor à dimensão completa do ser humano. E então, que maior prazer do que esse pode existir para o ser humano, prazer a um tempo telúrico e etéreo, prazer material e espiritual, feito de carne e espírito? Não é esse prazer puro amor?

terça-feira, 13 de setembro de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 32

A viva paz que é o nosso alimento:
- O poderoso vento, pontuando de branco o imenso dorso do mar;
- O mesmo vento, embatendo nas cabeleiras das árvores;
- O ágil vento, metáfora do nosso pensar;
- A eterna bipolaridade da Natureza, no admirável conúbio do diálogo do pensar, mas também entre o coração e o espírito;
- Na branca solidão, uma preciosa comunhão;
- A viva paz que é o nosso alimento.

domingo, 11 de setembro de 2011

TEXTO 32

Olá, amigos e amigas, entre quem está também a senhora de sete ofícios que me ajuda em trabalhos domésticos! Gosto muito de passear à beira-mar em manhãs de vento morno, quando o mar se recolhe em vazante. Prodigamente, o mar oferece a nossos pés um longo tapete duro e liso, e o vento, se aí no marulhar das águas da praia não levanta areia que nos afronte, cavalga lá dentro o colosso da água, alguma dela desfazendo em branca espuma. Espuma branca lá dentro, mar em fora, a que o povo, com afecto e também temor, chama “cordeirinhos”, e os pescadores denominam “carneirinhos”. “Olhem como está hoje o mar, tão bonito, cheio de cordeirinhos!”, diz o povo; “Ah Toino, atão tu queres ir ó mar assim Toino? Atão num vês qu´ele ´stá (a jogar) aos carneirinhos?”, clama um pescador para outro, aconselhando-lhe cautela.
Outra coisa bem diversa e muito pior é o mar estar “encapelado”! Mas o que é isto de o mar estar encapelado? Onde foram os falantes da nossa língua buscar esta forma de dizer? Para dizerem o quê? Está aqui o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, que vem em nossa ajuda. Diz-nos ele, antes de mais, que o vocábulo “encapelar” tem origem na palavra latina “capella”. Também nos diz que tal palavra já fora usada lá longe no século dezasseis por Fernão Mendes Pinto, esse famoso trota-mundos das arábias português que, utilizando a riquíssima vivência das suas aventuras e experiências, escreveu depois a sua famosa e fabulosa Peregrinação. Diz-nos ainda que este autor peregrino, recordando o transe de uma nau em que ia numa noite de tormentas, escreveu que ela “ficou atravessada entre duas vagas, onde a “encapelou” uma grande serra por cima da popa”.
Um pouco antes deste passo, na obra, – agora já não por informação do Machado do Dicionário, mas por investigação deste lavrador de textos – somos informados de que Pinto estava no Japão com alguns companheiros portugueses, entre os quais se contava um padre missionário que tentou converter vários sacerdotes budistas para a fé cristã, de companhia com o rei lá do sítio. E foi tal a saraivada de perguntas e objecções à fé cristã formuladas pelos bonzos ao padre, que ele e os companheiros se viram obrigados a deixar à pressa o Japão e a rumarem para a China! É precisamente no capítulo 214, com o título “Da grande tormenta que passámos, indo de Japão para a China, e como fomos livres dela por orações deste servo de Deus”, que aparece o tal passo onde ocorre o vocábulo “encapelar”.

Mas ainda não sabemos como é que em latim se formou a palavra “capella” – já que primitiva não é mas derivada – e o que é que ela lá significava. Nisto, também vamos ser ajudados por um bom Dicionário Etimológico, mas agora da Linga Latina. Aí vemos que “capella” – escrevia-se com dois “ll” e não só um – deriva do vocábulo inicial “caper” (que quer dizer “bode”), do qual se formou em primeira mão o feminino “capra” (cabra), de onde imediatamente derivou esta nossa palavrinha “capella”, que é um diminutivo de carinho que em português significa “cabrinha”. Tão carinhoso e delicado diminutivo encontra-se por exemplo em Horácio, no verso 110 da primeira sátira do Livro Primeiro de todas as suas sátiras. Poeta que já aqui noutro texto foi citado (5), a propósito do filme “O Clube dos Poetas Mortos”, que inspirou o nosso nome de “O Clube dos Poetas Vivos”.
Mas como é que “capella” e “encapelar” têm a ver com grandes tempestades no mar e com a branca espuma que também nessas alturas lá aparece? Aqui, para todo este assunto, socorremo-nos da informação prestada pela querida senhora já acima mencionada, mulher de sete ofícios mais o de guardadora de rebanhos - não virtuais como Caeiro, mas reais mesmo - quando menina adolescente. É que, tal como os bodes (muito menos as cabras) se agitam, se põem aos saltos, eriçam bem o pêlo do lombo e se empinam ostensivamente quando guerreiam entre si, sobretudo quando eles, os machos, disputam as saborosas fêmeas, assim também, quando varrido pelos ventos, o mar tempestuoso se agita, se põe aos saltos, eriça bem o seu pelo e se empina, assim semeando no seu imenso dorso miríades de pontos brancos de espuma.
E porque é que também chamamos à colação os “cordeirinhos” e os “carneirinhos” quando queremos falar dos pontos brancos de espuma num mar agitado, embora não propriamente em grande tormenta e com vagas alterosas, agitação suprema esta que reservamos para o vocábulo “encapelar”? Antes de mais, quando se fala de cordeirinhos, isso tanto dá para filhotes de ovelhas com também de cabras. Depois, o gado caprino e o gado ovino são muito parecidos e vivem geralmente em conjunto no mesmo rebanho, podendo assim tomar-se um pelo outro. No entanto, antigamente, o gado caprino seria mais habitual que o ovino, tendo em conta que este geralmente só come erva, enquanto que aquele, além de mais agitado, come também silvas e mato e trepa aos arbustos e às árvores. Além disso, também os bodes são entre si mais agressivos que os carneiros, e lá está naqueles o levantado pêlo do dorso, que é altamente sugestivo e significante.

Também são muito gostosas as ventosas tardes, aqui à volta da casa de seguras fundações. Aqui não há cordeirinhos brancos nem se joga aos brancos carneirinhos, mas no ar ondulam as vagas do vento, silvando nas verdes cabeleiras das árvores. “Catedral verde e sussurrante”, como disse o poeta, “onde se alonga e prolonga a longa voz do mar”.
Ágil e invisível é o vento, tão assemelhável à invisível agilidade do pensamento. Era um destes abrigos e refúgios que os sábios romanos e latinos procuravam para, em segurança, fugirem à agitação vária e incerta das suas agências de notação financeira, a atormentarem a pacatez das suas vidas. Aquele “odi profanum vulgus et arceo”, um outro verso de Horácio, tem um pouco o sabor de quem se afasta, embora sem desdém, do tumultuoso ajuntamento do profano vulgo, para se entregar, em solidão, aos prazeres espirituais do seu ócio literário, quase levitando sobre o precário fluxo temporal que corrói o corpo, mas assim alimentando o espírito.
Ágil e invisível é o vento, tão semelhante à também invisível agilidade do pensamento. Na solidão da actividade do meu pensar, mergulhado embora no meu corpo e na sua movediça e distractiva circunstância, a minha consciência vê que lá há sempre um perguntar e um responder, silencioso diálogo de dois falantes que, para bem, para ser uma actividade feliz, os dois têm de estar em graça, graça quase divina. Isso é a preciosa comunhão que pode existir na solidão – eu e o que comigo fica em casa sem mais ninguém -, a mais íntima e profunda bipolaridade que acontece em toda a natureza criada. Íntimo conúbio entre estes dois interlocutores no diálogo do pensar, mas também entre o nosso próprio pensar e o nosso coração das emoções e sentimentos, como já se notou noutros textos (14.2 e 25). Os dois intervenientes do meu pensar em estado de graça, sim, pois, o que seria se um deles gozasse desse estado quase divino … e o outro fosse um salafrário? Pior ainda, porém, é quando tal diálogo se interrompe e, em vez de dois, fica só um. Então, a solidão, essa branca solidão que é uma tão boa companhia, vira solidão negra, vira solidão mortal!
Bailam ainda, tocadas pelo vento, as ramagens das árvores. Mas tudo já mais calmo, tudo mais pacificado. A viva paz que é o nosso alimento.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 31

Ainda sobre o “outro mundo”:
- Mundo primeiro ou sensível e mundo segundo ou simbólico;
- Figos no mundo sensível, mas também no mundo simbólico;
- Os esforçados nadadores-salvadores, alguns deles entre si namorados, nesta corda de praias;
- Não fácil é ser bom namorado ou boa namorada;
- A envolvência simbólica dos figos, apontando para o perigo ou também para a amizade;
- Materialmente, os figos alimentam-nos o corpo; simbolicamente, eles remetem-nos para perigos, para a amizade, ou ainda para outras entidades simbólicas, assim nos alimentando a mente.
- Realmente dois mundos, ou um só mundo mas de bipolar unidade?

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

TEXTO 31

Ainda sobre o “outro mundo”

Olá, amigas e amigos! Olá, jovens nadadores-salvadores nesta corda de praias, a quem especialmente dedico este tosco mas afectuoso texto!
Para mostrar como estes dois nossos mundos - aquele que imediatamente estimula os sentidos e o dos símbolos que inventamos – estão tão interligados que quase se confundem, falemos aqui de figos. “De figos? Oh, são tão bons, os figos! Figos lampos, figos de S. João, pingo de mel, brancos, castanhais …”
Antigamente, na estação que os amadura, as pregoeiras, de canastra à cabeça pelas cidades, até diziam: “Quem quer figos, quem quer almoçar”! São realmente muito agradáveis os figos! São muito saborosos e, de alimentarem tanto, até podem servir sozinhos de almoço. Ora, até aqui, estamos sempre e sobretudo no nosso mundo material e básico ou primeiro e sensível, não é?
Mas agora, vamos ver duas situações em que os figos, sem perderem a sua dimensão sensível – nunca a podem perder -, assumem também, para nós, uma dimensão simbólica, conduzindo-nos para um mundo de entidades abstractas.

É assim a primeira situação: Uma vez, Catão, modelar cidadão e senador da República Romana, ao ver que a cidade de Cartago, ali tão vizinha de Roma, estava a tornar-se muito perigosa para a segurança dos romanos, introduziu no senado um figo e, quando chegou a sua vez de perorar, poisou o figo na estante dos oradores, ao pé de si. “Traz um figo consigo? Um figo maduro e fresco, acabado de apanhar? De onde o trouxe? Que delicioso será esse figo!”, perguntavam e exclamavam os outros senadores, sempre considerando tal fruto ainda só pertença do mundo material ou sensível.
E Catão partiu daí para dizer aos companheiros que tal figo tinha vindo de Cartago naquela precisa manhã, tão perto estava essa cidade africana da sua cidade de Roma, onde estavam, para a qual, portanto, aquela constituía um perigo muito próximo, iminente e mortal. Acabou então o seu discurso com a famosa frase “Delenda est Carthago”, “Cartago tem de ser destruída”, e não se cansou de repeti-la, no senado, assim acabando sempre os seus discursos, até conseguir mover os outros senadores a tomarem todos a decisão de arrasar tal cidade.

A segunda situação em que os figos assumiram uma dimensão simbólica, assim conduzindo também para entidades abstractas, ocorreu este verão, à beira-mar. É costume haver nas praias, mesmo não muito longe umas das outras, dois ou três jovens nadadores-salvadores em cada uma.
Geralmente universitários, às vezes até namorados entre si, os nadadores-salvadores são jovens esforçados e dedicados que, pondo em risco a própria vida, despendem as suas férias ao serviço da comunidade, estando ali também para ganhar uns cêntimos, assim colaborando com os pais no pagamento das despesas da sua preparação académica.
Ali estão, na praia, vigiando pela segurança dos banhistas e também pela salvação dos incautos; ali estão nove horas por dia todos os dias da semana, por vezes com mau passadio, e sob o rigor do sol e do vento e do frio e da chuva.
Ora, esses incautos veraneantes que ali ficariam no mar, para repasto dos peixinhos, saberão agradecer aos nadadores-salvadores a sua vida, ali não perdida e salva? “Olhe,”, diz uma menina salvadora, “como eles saem aflitos da água ou até sem sentidos, não têm disposição ou mesmo possibilidade para nos dizerem nada. Mas há quem volte atrás a agradecer … e até, veja bem, a querer recompensar-nos com dinheiro! É claro que nós não recebemos dinheiro, até porque já recebemos o nosso vencimento, mas apreciamos o seu agradecimento”! “Até seria muito giro que eles, se insistissem e quisessem, vos deixassem por escrito o seu agradecimento! Que sentiriam vocês quando mais tarde, já mamãs, mostrassem esses breves mas tão significativos documentos aos vossos filhos”?

Numa dessas praias estão o Jorge e o Tito, que é o namorado da Rosa; a seguir, para sul, estão o Filipe e a Rosa, que é a namorada do Tito; vêm depois na terceira praia o Manuel, o Joaquim e a Maria, que é a namorada do Pedro; finalmente, duas léguas para sul, está o Serafim e o Pedro, que é, como sabemos, o namorado da Maria, sempre tudo nomes fictícios.
Não é de todo fácil ser-se um bom namorado ou uma boa namorada. Os dois devem voar juntos na vida, pois então, juntos mas sempre livres, valorizando assim as suas aptidões e diferenças. Se voarem agarrados um ao outro, presos por ciúmes ou outros embaraços, logo passarão a ficar instáveis no ar, a perder altura de voo, e, se em breve não caírem estatelados em terra, só conseguirão esvoaçar na vida, sem ganharem altura. É certo que haverá sempre nova oportunidade, mas não convém desperdiçar o breve tempo da vida, sobretudo nos projectos que são comuns.
Neste tempo de banhos e de figos – banhos nas ondas do mar e figos vindos, não da cidade de Cartago mas da figueira do quintal -, este andarilho escrevinhador na Net, que por isso está no mundo simbólico, quase todo levitando no ar - todo menos o seu corpo feito de terra -, e que em férias nada tem que fazer a não ser passear na areia e olhar e ouvir e perguntar e embeber-se de azul e pensá-las para executar e depois escrevinhar – e tudo isto já não é pouco -, lembrou-se de mais uma! Lembrou-se de partilhar a generosidade branca (mundo segundo ou simbólico) de uma frondosa figueira (mundo primeiro ou sensível)! “Toma, Tito, são figos! Estes são para vocês aqui, que os outros colegas nadadores também terão os seus”; depois, mais adiante, numa outra saquinha, “Toma, Rosa, não são rosas, não, mas figos para vós os dois, que os outros já têm ou irão ter”; mais adiante ainda: “ Toma, Maria, são figos que mandou a tua amiga Rosa, para vós os três”!

A conclusão é óbvia! Os figos fazem parte do mundo físico, sim senhor, eles são um agradável fruto para comer e saciar, mas também podem integrar o nosso mundo simbólico, na medida em que, por seu intermédio, podemos não só acautelar-nos e até decidir-nos a anular um perigo como fez Catão com os outros senadores, mas também promover a amizade entre as pessoas, como espero tenha acontecido neste mais recente caso. E se, neste ponto da oferta, os jovens estavam com larica como pareciam estar, então até terão chamado aos figos (mundo primeiro ou sensível), um “figo” (mundo segundo ou simbólico)!
Tal envolvência simbólica, aliás, até já tinha começado muito antes, lá no princípio quando nós humanos descobrimos os figos e a árvore que os dava, e a começámos a plantar e depois a comer os seus frutos; lá no princípio quando tirámos do anonimato (das coisas descobertas mas ainda sem nome) tais frutos, impondo-lhes o nome de “figos”: nome que tem um significante (do mundo sensível, sim senhor), mas a apontar para um significado (sempre do mundo mental ou abstracto). Nome com que, portanto, os integrámos logo ao princípio neste nosso mundo simbólico. Em português, o significante “figo” é só um, mas os significados são dois ou mais: o primeiro é o significado básico, do fruto mesmo que vai fazer bem à barriguinha; e o segundo é tudo aquilo que, de ordem mental ou simbólica, nós já associamos ao primeiro ou podemos vir a associar!
Figos no mundo simbólico, para além de concretamente eles nos deixarem a barriguinha consolada, eles e ela constituindo parte do nosso material e primeiro mundo!
Mas afinal, há mesmo dois mundos distintos, ou há só um com bipolar unidade ou com duas faces (material e mental), tal como são afinal as nossas palavras e também nós mesmos – estas e nós fazendo parte do mundo -, mundo como nós o vemos e sentimos?
Olá, caros nadadores e nadadoras, isto é tudo muito giro, não é? É muito giro, não é, Rosa? E tu, Tito, namorado desta bem linda Rosa, não tens também semelhante opinião? E tu, muito bela Maria de namorado mais distante, dedicada Maria que até fazes de enfermeira nos primeiros socorros a mordeduras de rafeiros, não concordas também?