sexta-feira, 27 de junho de 2014

223 - O Último Sermão do Buda


         1 - Olá, amigas e amigos! O texto que ora se apresenta é uma lógica sequência do texto 213, e constitui, para além de algumas já aí apresentadas, a sua derradeira conclusão. 
Nas últimas palavras proferidas antes de morrer - como se se tratasse de um testamento espiritual deixado aos discípulos – o Buda parece ter dito: “ Não confies nas minhas palavras, conta apenas com a tua própria luz” (1).
Sabemos que o Buda não é um intermediário entre a humanidade e os deuses, até porque, segundo ele, estes também andam a braços com a impermanência dos seus mundos. Quando muito, ele será exemplo, será guia e mestre para os outros homens. Mas será mesmo?
Em outras religiões – o cristianismo católico, por exemplo – para que aos fiéis possa acontecer a salvação, são precisos intermediários: uma instituição que integre as pessoas e lhes faculte ensinamentos e a graça divina, esta ministrada através dos sacramentos, os quais operam por si próprios e não por mérito dos fiéis.
Mas no budismo não há nada disso! Primeiro, não há intermediários. E quanto a guias e mestres, começando pelo Buda original, haverá? Aquelas palavras do Buda, desde a primeira à última, podem admitir a existência desses guias e mestres?

2 - Naquelas palavras atribuídas ao Buda, esconde-se um problema mais fundo, o qual é um problema epistemológico ou de conhecimento: é que o discípulo, para conhecer o que há-de fazer não pode confiar nas palavras do mestre, mas tão só na sua própria luz mental. Não é por uma questão de o Buda não querer ser guia e mestre do discípulo! É porque simplesmente não pode, em razão de que ao discípulo só a sua própria luz poderá guiar. Temos assim que o discípulo só poderá ser discípulo de si próprio, e por isso também mestre de si mesmo.
Ora, como o Buda era um mestre espiritual, não é verosímil e por isso é de excluir, logo à partida, que ele intentasse com aquelas palavras – se forem de facto autênticas - dar um conselho ou mesmo um preceito aos seus seguidores, mas sobre assuntos do dia-a-dia e sem nada terem a ver com a espiritualidade deles. A menos que, se fosse esse o caso, ele estivesse a fazer o contrário daquilo que pedia ou exigia aos outros: porque pelo menos a língua e as palavras com que transmite este preceito não as aprendeu ele individualmente e só por sua própria luz mental, mas por testemunho no qual confiou.

3 - É que o ser humano não conhece só por sua própria luz, solitariamente, mas também por testemunho dado por outrem. E este - o conhecimento por testemunho – é tão fundamental e fundante para ele quanto o primeiro. O segundo pode ser conhecimento em segunda mão – por ser de testemunho – mas não é conhecimento de segunda ordem ou classe, por comparação com o que cada ser humano consegue individualmente e por si só. Congenitamente, nós não somos seres solitários nem individuais solidões, mas seres solidários e participantes de uma comunidade.
Já isto nos conduz a afirmar que tal conselho, dado pelo mestre, nem sequer terá cabimento ou será aplicável no domínio espiritual. Também aqui se cairia num absoluto solipsismo - solus ipse: cada um, sozinho - que não admitiria nenhum espólio doutrinário a transmitir e a receber, nem haveria razão de ser para qualquer assembleia ou comunidade espiritual e/ou religiosa: não havia nada a dizer uns aos outros, nem qualquer doutrina a seguir.
Assim, o Buda terá deixado um seu conselho e testemunho, cujo teor consiste em ninguém dever atender a qualquer testemunho. Nem eventualmente ao seu, como poderá ter acontecido.

(1) Palavras citadas por Matilal e Chakrabarti, por sua vez citados por Dan O`Brien, em Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, p.106.


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