1 - Olá, amigas e amigos! O texto que ora se
apresenta é uma lógica sequência do texto 213, e constitui, para além de
algumas já aí apresentadas, a sua derradeira conclusão.
Nas últimas palavras
proferidas antes de morrer - como se se tratasse de um testamento espiritual
deixado aos discípulos – o Buda parece ter dito: “ Não confies nas minhas
palavras, conta apenas com a tua própria luz” (1).
Sabemos que o Buda
não é um intermediário entre a humanidade e os deuses, até porque, segundo ele,
estes também andam a braços com a impermanência dos seus mundos. Quando muito,
ele será exemplo, será guia e mestre para os outros homens. Mas será mesmo?
Em outras religiões –
o cristianismo católico, por exemplo – para que aos fiéis possa acontecer a
salvação, são precisos intermediários: uma instituição que integre as pessoas e
lhes faculte ensinamentos e a graça divina, esta ministrada através dos
sacramentos, os quais operam por si próprios e não por mérito dos fiéis.
Mas no budismo não há
nada disso! Primeiro, não há intermediários. E quanto a guias e mestres,
começando pelo Buda original, haverá? Aquelas palavras do Buda, desde a
primeira à última, podem admitir a existência desses guias e mestres?
2 - Naquelas palavras
atribuídas ao Buda, esconde-se um problema mais fundo, o qual é um problema
epistemológico ou de conhecimento: é que o discípulo, para conhecer o que há-de
fazer não pode confiar nas palavras do mestre, mas tão só na sua própria luz
mental. Não é por uma questão de o Buda não querer ser guia e mestre do
discípulo! É porque simplesmente não pode, em razão de que ao discípulo só a
sua própria luz poderá guiar. Temos assim que o discípulo só poderá ser
discípulo de si próprio, e por isso também mestre de si mesmo.
Ora, como o Buda era
um mestre espiritual, não é verosímil e por isso é de excluir, logo à partida,
que ele intentasse com aquelas palavras – se forem de facto autênticas - dar um
conselho ou mesmo um preceito aos seus seguidores, mas sobre assuntos do dia-a-dia
e sem nada terem a ver com a espiritualidade deles. A menos que, se fosse esse
o caso, ele estivesse a fazer o contrário daquilo que pedia ou exigia aos
outros: porque pelo menos a língua e as palavras com que transmite este
preceito não as aprendeu ele individualmente e só por sua própria luz mental,
mas por testemunho no qual confiou.
3 - É que o ser
humano não conhece só por sua própria luz, solitariamente, mas também por
testemunho dado por outrem. E este - o conhecimento por testemunho – é tão fundamental
e fundante para ele quanto o primeiro. O segundo pode ser conhecimento em
segunda mão – por ser de testemunho – mas não é conhecimento de
segunda ordem ou classe, por comparação com o que cada ser humano consegue
individualmente e por si só. Congenitamente, nós não somos seres solitários nem
individuais solidões, mas seres solidários e participantes de uma comunidade.
Já isto nos conduz a
afirmar que tal conselho, dado pelo mestre, nem sequer terá cabimento ou será
aplicável no domínio espiritual. Também aqui se cairia num absoluto solipsismo -
solus ipse: cada um, sozinho - que
não admitiria nenhum espólio doutrinário a transmitir e a receber, nem haveria
razão de ser para qualquer assembleia ou comunidade espiritual e/ou religiosa:
não havia nada a dizer uns aos outros, nem qualquer doutrina a seguir.
Assim, o Buda terá
deixado um seu conselho e testemunho, cujo teor consiste em ninguém dever
atender a qualquer testemunho. Nem eventualmente ao seu, como poderá ter
acontecido.
(1) Palavras citadas por Matilal e Chakrabarti,
por sua vez citados por Dan O`Brien, em Introdução
à Teoria do Conhecimento, Gradiva,
p.106.