quinta-feira, 29 de maio de 2014

218 - O Jogo da Indução

O sol que a todos aquece
nasceu ontem nasceu hoje
e por costume que temos
também nascerá amanhã …

Só que os pintos e as galinhas
também esperam por costume
todos os dias o seu milho
mas uma manhã virá
em que a dona em vez de milho,
uma ou mais degolará

A evidência que disto
se vai seguir com certeza
é que até na própria ciência
há muito de incerteza

Tire-se então a final conclusão:
enquanto os factos valem e pesam mais
que as leis que os interpretam e regulam,
Menos valem costumes que a razão






sexta-feira, 23 de maio de 2014

217 - A Boa Amizade

Olá! Sancho e Serafim eram bons amigos de uma amizade antiga, que agora se alimentava sobretudo de longas conversas passeando pela avenida, e também de quando em vez de apetitosos almoços na taberna do Ti Zé Lampreia.
Naquela manhã de sol e de céu limpo, os dois passeavam e conversavam longamente sobre se nós, seres humanos, temos a capacidade de conhecer realmente as coisas do mundo em que vivemos.
É claro que, a este propósito mas também a outros, Serafim, mais dependurado das nuvens, tinha opiniões diversas das de Sancho, mais agarrado à terra.
- Olha que muitas vezes – dizia Serafim – os nossos sentidos enganam-nos: pensamos que isto é uma coisa, e afinal é outra. Por outro lado, e também não raro, nós temos sonhos tão claros e nítidos que parecem mesmo realidades. Nesta última noite, por exemplo, eu sonhei que nós dois e nossas famílias estávamos no Zé Lampreia a comer um galo assado no forno com batatinhas, e ainda me lembro vivamente, com toda a nitidez, de todos os pormenores da boa circunstância em que estávamos e dos bons sabores da refeição! Quem sabe se durante o dia, quando estamos acordados, não vemos só coisas imaginadas como que em sonhos, sem nunca conhecermos as verdadeiras realidades?
- Ouve lá, ó Serafim, agora vou eu almoçar sozinho. Já andámos bastante e falámos muito, está na hora da refeição e já sinto muita fome.
- Mas não achas que os sentidos te podem enganar?
Sem retorquir, Sancho deu meia volta e ensaiou os primeiros passos.
- Então não me convidas? – perguntou Serafim.
- Mas tu já almoçaste, não foi? Não comeste galo com batatinhas?
- Não almocei nada! E também já sinto como tu a barriga a dar horas!
- Mas a tua barriga não te engana?
- Ah, não, sei perfeitamente que não!

E sem que a conversa beliscasse a recíproca amizade, lá foram os dois almoçar. Não comeram um real e muito menos um sonhado galo, mas sim um real e bem delicioso ensopado de enguias.

domingo, 18 de maio de 2014

216.3 - Ressurreição


III
A resposta dos Avatares
Poderá o aparecimento de avatares satisfazer todas aquelas nossas perguntas?
Em termos informáticos, avatar é um cibercorpo digital, ou melhor, será em breve uma pessoa virtual (Expresso, 8-3-14) que simula e representa uma pessoa real, e que a tecnologia se prepara para construir a partir dos dados que esta pessoa (com seus familiares e conhecidos) vai deixando ou já definitivamente deixou nas redes sociais, e-mails, etc, se é o caso de ela acabar de falecer ou já há algum tempo ter falecido. De modo que, por tal pessoa virtual, se poderá simular a continuação do convívio dos familiares vivos, por conversas online, com a pessoa já falecida!
Aqui está um filão (ou cluster) de negócios que os gigantes da informática irão promover, logo aproveitado em primeira mão, não pelos familiares das pessoas que já morreram, mas pelas agências funerárias. Funerais assim tão gaiteiros, em que aqueles que passaram para o outro lado da vida se associam à festiva celebração porque vivem virtualmente e interagem com as pessoas presentes, têm um alto valor acrescentado, não é? Morreram, mas, por obra desta revolução tecnológica, eles continuam vivos, se é que não ressuscitaram da morte.
Mas um avatar  nunca pode ser um ser humano. Pode até ser artificialmente mais inteligente, sim senhor, mas por ser simplesmente virtual, ele é algo e não alguém.
Por ser virtual e não ser de carne viva como nós, ele não pode verdadeiramente apaixonar-se como nós realmente nos apaixonamos, nem nós os vivos podemos muitas vezes resistir a um bom petisco mesmo sabendo que nos faz mal, como ele sabe resistir. Por não ser de carne viva como nós, ele também não tem uma boa noção de tempo, já que carece de mudanças corporais, que só estas lha poderiam facultar. Para ele, o tempo e o espaço não existem ou pelo menos não são essenciais, como são para nós humanos, que somos seres de espaço e de tempo.
Um avatar é como uma seca flor (ou plástica) que não sente o vento e a chuva, nem se abre ou volta para o sol. Tem alguma beleza, sim, mas nunca a beleza de uma flor viva e real.
Além de que os avatares só aos familiares vivos e à sociedade aproveitarão ou também poderão prejudicar. Porque aos correspondentes mortos, isso nem aquenta nem arrefenta: mortos estavam, mortos continuarão a ficar.

Haverá então, para os humanos uma real ressurreição? Sem radicalmente excluirmos outras hipóteses, o que nos importará é vivermos a vida de forma solidária com todos os outros seres vivos, os quais todos nascem e vivem, para depois morrerem. Por que razão hão-de os humanos constituir uma excepção no concerto da vida, neste universo em expansão? Seria pelo seu bom comportamento em relação a si e à vida que os possui, e em relação aos outros e ao meio ambiente? Por outro lado, alguém gostaria, ou melhor, suportaria passar toda uma eternidade em companhia dos mais nojentos salafrários desta nossa longa história humana? Aturá-los nesta vida já é muitas vezes uma carga insuportável de trabalhos e sofrimentos.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

216.2 (de 3) - Ressurreição

II
Perguntas
Vemos assim que há, muito fácil de operar, o fingimento de milagres de ressurreição no cinema e no teatro. E será que também haverá ressurreição fora do fingimento de arte, isto é, na realidade, como Bénard e Mendonça acreditam?
Mas como será isso possível - perguntemos agora - se o nosso corpo morre, e com ele morre também toda a nossa vida mental, a qual é a flor ou luz que se acende do nosso cérebro só enquanto vivo? Como poderá haver lugar para uma real ressurreição de cada um de nós, se nos faltam os sentidos, os objectos dos sentidos, ou seja, o mundo em que vivíamos, a palpitação da carne, as emoções, as faculdades mentais entre as quais a memória, tudo aquilo que enfim nos levou a criar nesta vida terrena uma inconfundível identidade? Se somos seres humanos, por virmos do húmus, da terra, como poderemos subsistir deixando de ser humanos, isto é, desligados da terra, sem o corpo, e por isso sem o cérebro de onde se nos incendeia a mente, onde se foi formando um “eu” mental irrepetível?
Tal ressurreição considerada real, proposta por Mendonça e Bénard, será mesmo uma realidade objectiva, para nós, ou será algo simplesmente objectivado, só dependente do nosso entusiasmo e do desejo e do querer, tudo enfim só por nós imaginado?
Bem sabemos que, para além da nossa subjectividade que deseja e quer tal realidade e que com ela se entusiasma, há as promessas da religião. Mas também estas promessas não serão só a projecção objectivada dos desejos de um povo e das nações? Todos queremos viver e viver, e portanto também vencer a morte a fim de vivermos para sempre e até muito melhor do que aqui e agora nesta vida mortal. Para as religiões, por isso, nada é mais fácil, e proveitoso, do que propor esta crença.

Enfim, haverá real ressurreição para nós, seres humanos, e por isso por natureza mortais? Se houver, isso só será possível por intermédio de um verdadeiro milagre, o qual imponha a transgressão de leis (assim chamadas) que asseguram o regular funcionamento do universo. Mas tal milagre, só um ser superior, ou Deus, poderá operar. E é então esse Deus que no princípio criou com leis o universo, o mesmo que, agora, para nós, as vai transgredir?

terça-feira, 13 de maio de 2014

216.1 (de 3) - Ressurreição

I
Uma Crónica
1 - Olá, amigas e amigos! Numa gostosa crónica em semanário recentemente aparecida (Expresso,8-3-14),Tolentino Mendonça (TM) confessa e propõe-nos a ressurreição destes mortais homens que nós somos.
O cronista começa por falar dos seus contactos tentados ou havidos com Luís Miguel Cintra (LMC), cita-o quando ele diz que “sabe muito bem descobrir novos companheiros de entusiasmo”, e depois conta ter assistido à representação de uma peça de teatro em que LMC foi personagem e também produtor, peça essa que, a si (TM), fez lembrar o filme “A Palavra”, sobre o qual João Bénard da Costa (JBC) escrevera.
Comecemos então pelas palavras de LMC, avancemos depois para o que JBC escrevera sobre o citado filme, para depois atendermos à peça de teatro também já referida.
Nas palavras de LMC, atentemos sobretudo na palavra entusiasmo, cujo significado e correspondente realidade este apropria a si mesmo, para depois com essa realidade contagiar os novos companheiros. Digamos que a palavra entusiasmo tem origem no grego antigo e significa um “transporte (quase) divino” e, por isso, entusiasta é uma pessoa transportada (divinamente) para algo ou alguém; é demonstrar grande interesse, é desejar e querer o objecto querido e desejado. Ora, isto - e no que toca à ressurreição, que é o que vai estar em causa – é mais que meio caminho andado para acreditar nesta realidade.
No filme “A Palavra” de Carl Dreyer – estamos seguindo TM – conta-se que uma criança profundamente triste “pede a um tio ““louco”” que ressuscite a mãe, e ele fá-lo.” E sobre este acontecimento fílmico, TM cita palavras de JBC: “No cinema não há nada mais fácil do que conseguir um milagre (…) Mas o prodígio daquela mise en scène (…) é fazer-nos acreditar que, na verdade, vimos um milagre e vimos um corpo morto ressuscitar em toda a glória da vida (…) Se me disserem que é cinema, eu respondo que não é, não”.
Também na peça de teatro em que LMC é personagem há uma ressurreição, e quem fala dela é o próprio TM: “Há uma personagem, a carvoeirinha, que nos representa a todos (…) que morre como mártir de amor. E há um momento em que LMC (…) a acorda do seu sono e levanta-a diante dos nossos olhos incrédulos”. Tal como no cinema, “no teatro não há nada mais fácil do que conseguir um milagre. Mas se me disserem que é teatro, eu respondo que não é”.
Nos dois casos, portanto, não é o fingimento de arte em cinema e em teatro que prevalece, mas a crença na real ressurreição dos corpos, para a qual as duas entusiastas figuras (JBC e TM) – movidas pelo prodígio da mise en scéne e sem fazerem caso dos “olhos incrédulos” - se quiseram transportar. 


terça-feira, 6 de maio de 2014

215 - O Milagre da Vida

Naquela cálida tarde de estio,
quando a viva nitidez das cores
ainda viçosa ardia nas flores,
os dois passeavam no jardim.

E já sob a benigna sombra
da antiquíssima magnólia
onde falavam de coisas importantes,
o discípulo interpelou o mestre
sobre qual o sentido da vida:

O sentido da vida
 é …sabiamente viver!
Só tendo em fundo
a morte
se podem encontrar
o sabor e o sentido
da vida

Para quem está desperto,
nesta nossa vida mortal

arde a flor da eternidade

sexta-feira, 2 de maio de 2014

214 - Líquido Cristal

Ao subirmos à montanha
à fonte para bebermos
saibamo-nos estar na fonte
saibamo-nos ir bebendo

Também daqui bebe o sol
ainda a lua mas menos
embora não saibam eles
que de lá bebem também

Sabendo-nos estar na fonte
bebendo de concha erguida
não sabe melhor a água

mas sabe melhor a vida