quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

197 - Saudação ao Sol

Andamos ligados à vida por um laço
que, a cada instante ou passo,
pode deslaçar ou partir

Daí que, para os sustentarmos os dois,
ao laço e à vida, com alguma segurança,
tenhamos de atentar nos quatro fios
em que se fundam e entrançam esses dois tecidos,
ou seja, o ar a água a terra
e a benigna e amena maciez da luz

Estendamos então, no chão liso,
junto a este pequeno lago tranquilo,
os santuários breves das nossas esteiras
e façamos a meia saudação ao sol:
de pé costas direitas braços levantados,
ou dobrando e deixando cair braços e cabeça,
alongando contraindo e sempre respirando,
exercitemos o corpo e relaxemos a mente

Sintamos o vigor e a energia no corpo
e sobretudo saibamos que, no limite, nem somos
os virtuais pensamentos da nossa mente,
pelo que não será bom, para nós,
envolver-nos, sem mais, nessa quase alheia rede

Feliz do homem que olha de fora, friamente,
para o frémito desse estranho novelo,
e que tem a consciência de que é nada,
nesta conformidade, agindo e reagindo

De si consciência que floresce do seu corpo,
a qual o aceita e também ouve e cuida
com esta invocação ao sol, bebendo a luz

Semelhantemente às gaivotas que, essas, paradas,
entre o mar e a terra, na areia, e voltadas para o sol
não carecem de exercício … só contemplam


sábado, 21 de dezembro de 2013

196 - O Festim da Luz


No incipiente fulgor da manhã, o pai da luz
afasta com a mão o manto de névoa a cobrir o bosque,
estende-o na orla na erva junto à ribeira
e põe-se ali a acordar toda a gente:

Sobrevoa primeiro as altas frondes das árvores
e toca-lhes ao de leve, para vibrarem à luz,
embrenha-se depois nelas, descendo poisando,
todos enchendo, os recantos, de luz

“Olá, meu melro, ainda estás dormindo?
aí te faço, neste momento, amarelo o teu bico,
vá, põe-te a voar e a cantar, na nítida beleza da manhã!

E tu, minha rola turca, cansada
dessa longa viagem, e por isso,
ainda, debaixo de asa a cabecita, descansando:
queres que eu te aqueça o peito e o rabito?
vá, já há muito não ouço o teu arrulhar de ternura

E vós, ó pegas, pegas de popa, aos pares,
delicio-me com estar ao pé de vós
pois, se não fora, como avultaria o contraste
das cores, a contemplar, do vosso manto?

Olá, meu grilo, vá, toca a sair da tua toca!”
“Ainda não é tempo, meu sol,
primeiro terás de avivar o teu lume
e de me deixar dormir o meu sono longo!”
“Então, ao menos, da minha luz,
aceita o meu morno clarão, aí dentro, agora,
pois eu e a irmã lua gostamos muito do teu cantar!”

Mas quando chegou ao chão, já o pai da luz se comovia
olhando-se luzindo no macio musgo verde:
tanta beleza, na cúmplice conjugação da terra com o céu!

sábado, 14 de dezembro de 2013

195.3-4 - Jesus e Francisco

         3 – Se esse Jesus de outrora vivesse também hoje, e, mesmo que só vagamente, conhecesse as maldades do nosso mundo, ele teria redobradas razões para condenar a retaliação e propor o amor aos inimigos, como única via para se parar com a violência dentro e fora de nós.
         Mas será que, não retaliando e amando os inimigos é possível acabar mesmo a violência? É, e não se vê melhor caminho. Mas há aí alguém que seja capaz de não retaliar e de amar os inimigos? Claro que há! Além deste Jesus, há ou houve outros exemplos na história humana: Nelson Mandela é prova disso mesmo.
         Mas quanto a negócios de dinheiro, Jesus, que outrora fora doce no trato para com todos e só uma vez se lhe levantou a tampa - precisamente para escorraçar do templo de Deus os vendilhões -, haveria agora de andar habitualmente de chicote na mão, pois que tinha muito que fazer com ele. Haveria, por exemplo, de dar valentes chicotadas na base das altas colunas da sede do BPN, fazendo-lhes tremer os fustes e os capitéis, e toda a massa arquitectónica desse templo de nefandas negociatas. Haveria de esconjurar os procedimentos das agências de rating e demais símbolos desse execrando liberalismo financeiro que está destruindo a humanidade.
         Outrora, Jesus expulsou do templo de Deus os negociantes de bois e de rolas, e também os que, já então, trocavam dinheiro com usura. Mas agora, a esta global escala financeira em que vivemos, ele teria era de expulsar do templo da humanidade – do templo onde se deve cultivar só a humanidade – todos esses vendilhões financeiros que a delapidam, a profanam e matam. E a par dessas cortantes chicotadas, haveria de clamar aos criminosos que o dinheiro é o sangue para servir e irradiar pelas nações, e que ninguém pode negociar com esse sangue, pelo menos com usura. Ainda gritar a toda a gente que o poder financeiro terá de se submeter sempre ao poder político democrático, que só este pode ser controlado pelo povo (ver textos 73 e 123)

         4 – Não vem esse Jesus agora, mas veio Francisco, que o segue e representa aqui na Terra.
         Diz Francisco: “Temos de dizer não a uma economia da exclusão e da iniquidade, porque esta economia mata”; “Grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem horizontes, sem saída” porque “se considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que se pode usar e deitar fora”; não é verdade que a liberdade de mercado “provoque por si mesma uma maior igualdade e inclusão social”, porque ela supõe “uma confiança néscia e ingénua na bondade de quem detém o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico imperante”; é urgente “uma mudança de atitude enérgica por parte dos dirigentes políticos. O dinheiro deve servir e não governar” (citações de “A Alegria do Evangelho”, extraídas do Expresso de 30.11-13).
         Isto é, tal como Jesus no seu tempo, também Francisco, agora de uma forma mais explícita e ampla, faz a mesma acusação aos agiotas deste tempo. Porque não só o dinheiro é o sangue das nações – com ele ninguém podendo por isso ser onzeneiro -, como também é o poder político democrático que deve ter a última palavra sobre ele. Sem também esquecer, muito embora, a rejeição da retaliação contra os criminosos e a proposta do amor aos inimigos. Só com a aplicação de todos estes princípios, poderá vencer-se a violência.

         O Jesus que Francisco jubilosamente segue, nos apresenta e representa, é o Jesus histórico mas também o Cristo-que-é-o-Jesus-da-fé. Acontece é que, mesmo para quem não crê ou simplesmente se interroga e duvida desse Cristo meta-histórico, a grandeza desse Jesus histórico não sairá diminuída. Pois então, não é na nitidez da nossa humana pequenez que a grandeza a que alguém pôde subir se poderá evidenciar melhor? Quando um vulto humano é nobre em valores de humanidade, ele dará nas vistas a qualquer outro ser humano sensível a essa nobreza! E se a maioria do povo reconhecer a grandeza desse vulto e abraçar os seus propósitos, haverá revolução, com certeza, mas não haverá violência.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

195.1-2 - Jesus e Francisco

         1 – Olá, amigas e amigos, ainda se lembram daquela figura histórica que formou para si um eu tão excelente e perfeito, como jamais alguém pôde conseguir? Vimos isso no texto 189, e claro, já estamos a perceber que se trata daquele Jesus histórico que nasceu em Nazaré, ensinou e fez discípulos, acabando por ser condenado à morte em Jerusalém, pregado numa cruz.
         Intuitivamente, ele foi formando e aperfeiçoando o seu eu, e, já naquele texto, nós vimos em que campos essa excelência foi sendo conseguida: ele foi um mestre sublime em razão das suas palavras, dos seus gestos acompanhados de palavras mas também sem elas, e finalmente em razão dos seus silêncios.
         Entre as palavras mais sublimes que com certeza proferiu – sabemo-lo bem -, figuram aquelas já citadas no referido texto, as quais se prendem com a rejeição do hábito da retaliação, ou seja, do “bates-me e logo levas”, e com a proposta do amor aos inimigos, estes dois preceitos confluindo para, se forem cumpridos, podermos vencer a violência entre (e dentro de) nós.
         Mas há ainda outras palavras suas, também sublimes, estas acompanhadas de rasgados e corajosos gestos, que não podemos deixar de aqui e agora referir.

2 – Tenho a Bíblia aberta no passo da Purificação do Templo
– primeiro narrado paralelamente pelos três evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas), mas depois também pelo evangelho atribuído a João –, passo em que se conta a expulsão dos vendilhões do templo operada por iniciativa e intervenção de Jesus. 
         Nos três primeiros evangelhos se conta então que, aproximando-se a Páscoa judaica mas também a sua morte, Jesus desceu a Jerusalém, foi recebido triunfalmente na cidade, logo depois entrando no templo, onde se deparou com o triste espectáculo da sua profanação. Sumamente irado com aquilo que aí via, “derrubou as mesas dos cambistas”, expulsou de lá todos os que estavam a vender e a comprar dinheiro e animais, enquanto ia gritando a todos que, de uma casa que devia servir só para oração, eles estavam a fazer um “covil de ladrões”.
Quanto ao evangelho atribuído a João, se só aí se encontra o significativo pormenor de Jesus ter feito um “chicote de cordas” para expulsar animais e vendilhões, também é o único a não relacionar este acontecimento com a muito próxima condenação de Jesus à morte. Porque, para os três sinópticos, parece claro que tal atitude de Jesus, cheia de autoridade e veemência acusadora, foi causa motiva e próxima para tal condenação. Por seu lado, por começar antes da história humana e terminar fora da mesma história, e ainda por não se preocupar com o encadeamento interno dos factos narrados, o evangelho de João não releva para este último assunto.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

194 - Meditação


Quando, à hora do crepúsculo,
reunidas pelo estímulo dos chocalhos,
as indistintas ovelhas do rebanho
regressam ao aconchegado aprisco,
assim eu, livre da materialidade do corpo,
feito só pura energia cósmica,
mergulho no divino universo

Certo é que o meu corpo é energia,
e então, num primeiríssimo olhar,
parte indistinta seria
da unidade da energia cósmica.
Há porém um minúsculo senão
que se opõe a esta indistinção:
o verbo divino da energia
se fizera carne em mim,
da qual floresceu um eu,
distinto daquela imensidão

Mas agora, nesta noite iluminada,
 (já as ovelhas indistintas no aprisco)
mergulho e navego, também como indistinto,
no oceano da energia universal:
cessa o ansioso tagarelar do pensamento egóico
e nascem o agora sem espaço nem tempo,
o vazio e o silêncio, a consciência só de ser,
a alegria a paz a harmonia a intuição,
também as visualizações criadoras,
a fremente sensação de estar vivo
...

Já anda de novo o rebanho na colina,
a erva e o orvalho tosando, da manhã;
quanto a mim, verbo divino de energia,
avultando de novo a minha carne,
de novo me floresce, recriado, o eu

O sorriso de uma criança
O rumor da água num regato
uma ave a cantar, uma flor
o rebanho subindo pelo verde da colina

um universo novo está à minha espera