domingo, 9 de junho de 2013

160 - Sapatinhos de Crianças

1 - A humanidade, constituída destes bichos que somos nós, vangloria-se de ser a alta crista ou a fina flor da evolução na Terra.
Pavoneia-se, mas há muito que ela não anda bem, nem pode recomendar-se aos outros seres do planeta, nem a mais ninguém se existir esse alguém no universo. Basta andarmos no dia-a-dia com os olhos e ouvidos abertos, basta lermos de quando em vez alguns jornais, e também vermos a recente montra do festival de cinema de Cannes para, sem dúvidas, constatarmos que o que há, o que campeia no mundo são a violência, a crueldade, a vingança.
Mas não é só desta nossa actualidade que ora queremos falar, mas sim também de um outro tempo, ainda não longínquo, o tempo em que os velhos de hoje eram crianças. Também aí se pode ver e até mais intensamente, que a humanidade, se bem que também então tenha dito e levado a cabo coisas sublimes, ela foi capaz de perpetrar os piores horrores.

2.1 – Em Novembro de 1939, na Polónia, “um oficial do estado-maior alemão, chocado com o que via, escrevia à mulher: A propaganda de horror mais fantasiosamente imaginada não é nada comparada com a realidade”. Porque a realidade é feita de “bandos organizados que assassinam, roubam e pilham com o que se diz ser a tolerância das mais altas autoridades”. “E acrescentava: Tenho vergonha de ser alemão. Ao fim do ano, já tinham sido assassinados mais de 10.000 polacos e judeus”.
2.2 – Mas Martin Gilbert, nesta sua História do Século XX, dá-nos muito mais informações. Ainda na Polónia, “na sequência de um ataque a uma patrulha alemã, (…) cem polacos que trabalhavam num campo de trabalho forçado das proximidades foram levados para a cidade e enforcados na praça, sendo os habitantes da cidade obrigados a assistir”. Obrigados, naturalmente, para semear mais medo e terror.
2.3 – Aos campos de concentração de Auschwitz, de Birkenau e de Dachau chegavam prisioneiros e condenados, aos milhões. Entre os prisioneiros estava um pastor protestante alemão – preso “por ter denunciado o assassínio de judeus” -  o qual, “recordava mais tarde a chegada a Dachau de vagões de caminho-de-ferro idos de Auschwitz carregados de roupas: Ficámos abalados até ao mais fundo das nossas almas quando chegaram os primeiros transportes de calçado de criança – nós homens habituados ao sofrimento e ao choque, tivemos de fazer um grande esforço para conter as lágrimas. Mais tarde chegaram outros milhares de sapatos de criança. Para nós, isso foi a coisa mais horrível, mais dolorosa, a pior coisa que nos aconteceu”.

3 – Mas também no nosso tempo, entre tanta violência, crueldade, indiferença e ódio, ainda há bons sentimentos, manifestados em palavras e sobretudo em gestos. Prova disto é que, afinal, entre tantos filmes a escancarar a maldade actualmente existente, o filme de última hora que levou a palma de ouro no referido festival de cinema foi um filme de amor, de amor entre duas mulheres.
Porque o que é hoje fundamental é que o amor triunfe, seja ele em registo hetero mas também em homo. Amor de corpo e amor mental; amor que daí não só se pode estender a toda a humanidade, como aí se pode concretizar de forma profunda e intensa o prévio amor que já se tinha e continua a ter para com toda a humanidade.
Que o amor triunfe … e que se cuide das crianças e as haja em abundância, com políticas que as favoreçam. Quando os nossos velhos eram crianças, a Europa, seduzida pelo nefando sonho da purificação de raça, matou as suas crianças provindas de “raças impuras”; e agora, frivolamente, caminha para o abismo do seu auto-extermínio, à míngua de crianças.

E se ainda virmos juntos alguns pares de sapatos de crianças, então que os encontremos debaixo da chaminé embrulhados na fantasia da vinda do pai-natal, ou na oficina de sapataria, à espera de conserto, pelos rombos que levaram topando em pedras da calçada!

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