1 - A humanidade, constituída destes
bichos que somos nós, vangloria-se de ser a alta crista ou a fina flor da
evolução na Terra.
Pavoneia-se, mas há muito que ela
não anda bem, nem pode recomendar-se aos outros seres do planeta, nem a mais
ninguém se existir esse alguém no universo. Basta andarmos no dia-a-dia com os
olhos e ouvidos abertos, basta lermos de quando em vez alguns jornais, e também
vermos a recente montra do festival de cinema de Cannes para, sem dúvidas,
constatarmos que o que há, o que campeia no mundo são a violência, a crueldade,
a vingança.
Mas não é só desta nossa actualidade
que ora queremos falar, mas sim também de um outro tempo, ainda não longínquo,
o tempo em que os velhos de hoje eram crianças. Também aí se pode ver e até
mais intensamente, que a humanidade, se bem que também então tenha dito e
levado a cabo coisas sublimes, ela foi capaz de perpetrar os piores horrores.
2.1 – Em Novembro de 1939, na
Polónia, “um oficial do estado-maior alemão, chocado com o que via, escrevia à
mulher: A propaganda de horror mais fantasiosamente imaginada não é nada
comparada com a realidade”. Porque a realidade é feita de “bandos organizados que assassinam, roubam e pilham com o que se diz ser a tolerância
das mais altas autoridades”. “E acrescentava: Tenho vergonha de ser alemão. Ao fim do ano, já tinham sido
assassinados mais de 10.000 polacos e judeus”.
2.2 – Mas Martin Gilbert, nesta sua História do Século XX, dá-nos muito mais
informações. Ainda na Polónia, “na sequência de um ataque a uma patrulha alemã,
(…) cem polacos que trabalhavam num campo de trabalho forçado das proximidades
foram levados para a cidade e enforcados na praça, sendo os habitantes da
cidade obrigados a assistir”. Obrigados, naturalmente, para semear mais medo e
terror.
2.3 – Aos campos de concentração de
Auschwitz, de Birkenau e de Dachau chegavam prisioneiros e condenados, aos
milhões. Entre os prisioneiros estava um pastor protestante alemão – preso “por
ter denunciado o assassínio de judeus” -
o qual, “recordava mais tarde a chegada a Dachau de vagões de
caminho-de-ferro idos de Auschwitz carregados de roupas: Ficámos abalados até ao mais fundo das nossas almas quando chegaram os
primeiros transportes de calçado de criança – nós homens habituados ao sofrimento
e ao choque, tivemos de fazer um grande esforço para conter as lágrimas. Mais
tarde chegaram outros milhares de sapatos de criança. Para nós, isso foi a coisa mais horrível, mais dolorosa, a pior coisa
que nos aconteceu”.
3 – Mas também no nosso tempo, entre
tanta violência, crueldade, indiferença e ódio, ainda há bons sentimentos,
manifestados em palavras e sobretudo em gestos. Prova disto
é que, afinal, entre tantos filmes a escancarar a maldade actualmente existente,
o filme de última hora que levou a palma de ouro no referido festival de cinema
foi um filme de amor, de amor entre duas mulheres.
Porque o que é hoje fundamental é
que o amor triunfe, seja ele em registo hetero
mas também em homo. Amor de corpo e amor
mental; amor que daí não só se pode estender a toda a humanidade, como aí se
pode concretizar de forma profunda e intensa o prévio amor que já se tinha e
continua a ter para com toda a humanidade.
Que o amor triunfe … e que se cuide
das crianças e as haja em abundância, com políticas que as favoreçam. Quando os
nossos velhos eram crianças, a Europa, seduzida pelo nefando sonho da
purificação de raça, matou as suas crianças provindas de “raças impuras”; e agora,
frivolamente, caminha para o abismo do seu auto-extermínio, à míngua de
crianças.
E se ainda virmos juntos alguns
pares de sapatos de crianças, então que os encontremos debaixo da chaminé
embrulhados na fantasia da vinda do pai-natal, ou na oficina de sapataria, à
espera de conserto, pelos rombos que levaram topando em pedras da calçada!
Sem comentários:
Enviar um comentário