1 - Olá! Ocorreu no dia 2 do
corrente mês, em Montemor-o-Velho, a celebração da palavra: palavra de ficcionistas gandareses reunida em Antologia.
Integrada no “Festival do Arroz e da
Lampreia” e por gentileza da Câmara Municipal, a cerimónia teve lugar no Centro
de Alto Rendimento em Canoagem, pela tarde. Um pavilhão muito amplo, em grande
parte dividido e ocupado com tasquinhas para servirem os pitéus para o corpo, e
ao fundo um palanque com uma mesa, umas cadeiras, colunas de som, microfones e ainda
um painel gigante na parede com a capa da Antologia,
tudo preparado para confortar a alma.
2 - O que são as palavras? Serão elas
meros objectos ou, de alguma forma, já farão parte dos sujeitos falantes? Como é
que as aprendemos? Para que servem? A quem pertencem? Como se formam e
constituem? Serão elas como nós, feitas de corpo e alma? E frágeis, como também
nós somos?
Tomemos o caso da muito bela palavra
“borboleta”. Todos conhecemos o multicor
bichinho por ela referido - um fio alado de carne entre duas esplêndidas asas amplas
e abertas, ou fechadas -, e também todos temos contemplado o seu pastoso voejar
em campo aberto ou cirandando seduzido à volta de uma luz.
Mas uma coisa é o bichinho, que é o
referente borboleta, e outra bem
diversa o artefacto humano, que é a palavra “borboleta”. Se esse (sempre o mesmo) bichinho voar ou poisar em
Portugal, ele é uma borboleta; se em
Espanha, é mariposa; se em França, papillon; se em Inglaterra, butterfly; se em Itália, farfalla. E se tivéssemos estado na Grécia
Antiga com um desses bichinhos, ouviríamos os nossos irmãos gregos a
chamarem-lhe “psychê”! Mas então, não
era esta mesmíssima palavra que eles usavam para referir a sua alma? Claro que
era! Mas, para eles, simultaneamente, a palavra “psiché” significava borboleta
e alma. Quer dizer, a nossa alma humana, em relação ao corpo, parecia-lhes
uma borboleta, levantando e saindo de
dentro do seu corpo e voando livre à volta dele e nos céus!
3 – Assim é que todas as palavras
são feitas de duas faces: uma sensível ou corporal (os sons ou os grafemas), e
uma outra espiritual, que é a sua alma ou significado, e que está só na nossa
mente mas também a supomos na palavra. Pode então dizer-se que, na segunda
acepção referida, a alma da palavra “borboleta”
indica a nossa própria alma.
As palavras são inventadas por nós,
pertencem a todos os falantes e são, como eles, frágeis e feitas de corpo e de
alma. Elas são papagaios de criança voejando no ar, voando mesmo no céu, no
mundo do espírito, mas sempre agarradas à pedra do significante, do sensível,
do terreno, do material. Nada humano anda no ar, nos céus, que não tenha
florescido do chão.
E quanto às artes humanas, seja a
literatura que é a arte feita com palavras, ou a pintura ou a música ou a
escultura ou a arquitectura ou quaisquer outras, todas elas consistem, à
semelhança das palavras, em dar uma bela alma ou espírito a um corpo que vem do
chão, que portanto é material ou sensível. As palavras já têm corpo e alma; mas
as artes concedem especial beleza ao corpo e à alma que as constituem.
No vertente caso da arte literária,
nós criamos a beleza de sons e grafemas de palavras, para deles extrairmos a intentada
beleza em significados e sentidos. Como diz Ricardo Reis: “Que, quando é alto e
régio o pensamento. / Súdita a frase o busca / E o scravo ritmo o serve.”
É como se, com arte, escolhêssemos e
tocássemos por fora o cortiço dos significantes, para deles saírem as abelhas à
colheita do mel que há nas flores. É também como se, a uma canoa, imprimíssemos
remadas certas e decisivas nas lisas águas do lago, que a levassem a levantar
voo e a voar livre pelos céus.
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