domingo, 31 de março de 2013

142 - Páscoa



Pó consolidado de estrelas,
somos conchas vazias
que porfiamos em encher
de murmúrios de terra e de mar
de afectos a outras conchas vazias
também à procura à procura …

Mas cada um é só concha
irrepetível e única
concha vazia do oceano do universo

Só o oceano do universo a encherá?

Consciência de concha
concha de consciência
de passagem:
a passagem, no regaço do tempo,
destes terrenos deuses que nós somos

quinta-feira, 28 de março de 2013

141 - Cidadania e Ecce Homo


Eu hei-de nunca mais ir a Lesboa
à Lesboa do faduncho que “partiu
sem dizer adeus nem nada” e disse
que “a culpa era toda minha”;
prefiro o vira do campo e o tiroliro
E os martelos do piano de Chopin

Eu hei-de nunca mais ir à Assembleia
ouvir e ver os residentes
 entrechocando as cristas;
prefiro as cabeçadas dos bonecos de Santo Aleixo,
os juncos das margens das ribeiras
 e as cristas dos pinheiros

Eu hei-de nunca mais ir a tribunais
 onde as horas param e nunca mais amanhece,
nem aos gabinetes sombrios,
em Lesboa e em Bruxelas,
dos que tomam decisões
à medida só de seus obstinados entrolhos;
prefiro de novo os meus familiares pinheiros
subindo ao alto desde o musgo do chão

E quando chegar a decisiva hora do voto
votar em branco, mas nulo não,
como é próprio de democrata cidadão,
salvo se aparecer um que outro
abnegado experimentado estadista,
logo lhe levando eu a mais viçosa rosa
do meu exíguo jardim

E então, já reconciliado com a capital do meu país,
convidarei todos os grandes da Europa
a virem sentar-se  a contemplar o Ecce Homo:
humilde homem-deus o pintou, se pintando,
tão antigamente tão desconhecidamente
agora sobremaneira tão esquecidamente

Metido num museu antigo e em sua pintura é só um,
mas cá fora são muitos:
eles andam por aí, andrajosos e pedintes,
a irem morrendo pelas ruas do meu país,
da Europa do sul pela do norte escorraçados,
mais uma incontável multidão dos outros continentes

terça-feira, 26 de março de 2013

140 - Paradigma


Venho do vazio e do silêncio
e creio que é de lá
que me alimento

Nasço e floresço de um corpo
em barro moldado e em tempo
e tenho consciência de mim

Sou terra e universo
e sua consciência
saindo sempre e voltando
à primigénia fonte
almo silêncio úbere vazio

sábado, 23 de março de 2013

139 - O Fogo de Deus


No benigno fulgor
da primeira manhã
já não se viu a si mesmo
em solidão
o ser humano:

Passeando no paraíso
iluminaram-se um ao outro
nomeando as coisas
a luz os olhos os frutos
 a fímbria nítida de um lago,
e cada um se conhecendo a si mesmo
os dois se conhecendo
no amor.

Então, a gelosia do deus
deu em esbracejar:
pegou nesse fogo dado
 ou furtado
e escondeu-o muito secretamente
num abismo do oceano ou da montanha
ou antes no mais fundo de cada ser humano
onde nunca este pudesse suspeitar.

Que farão os humanos
com esse fogo essa sua
dada e nunca perdida
divindade?

Bom seria
fosse para cumprirem
em pleno
a sua humanidade!

quarta-feira, 20 de março de 2013

138 - A Voz do Silêncio


1 - Olá, amigas e amigos! Helena Blavatsky (Rússia, 1831 – Londres, 1891) foi uma senhora de rara sensibilidade e espiritualidade. Tendo viajado por muitas terras do mundo, permaneceu por sete anos no Tibete entre os grandes mestres espirituais budistas, que, depois, a incumbiram de trazer essa sabedoria milenar para o Ocidente. Como iremos ver, é uma sabedoria um tanto diversa da nossa sabedoria ocidental, se assim, a esta e sobretudo em nossos dias, lhe pudermos chamar.
A Voz do Silêncio é o título do primeiro de três “fragmentos” de uma pequenina obra de H.B., e também o título da própria obrinha, traduzida para a nossa língua por Fernando Pessoa. Sobre este livrinho, que a autora escreveu num repente por ter de memória todo o seu conteúdo, o qual, depois, inspirou muitos escritores e cientistas, o nosso poeta tradutor disse: “Abalou-me a um ponto que eu julgaria impossível”.
Por meio de citações dele extraídas, entremos então sem mais delongas nesse primeiro fragmento, deixando para depois o trabalho de comparar as duas referidas sabedorias:

1.1 – A Voz do Silêncio é um conjunto de instruções para quem quiser “ouvir a voz de Nada, o Som sem som, e compreendê-la”:
1.2 – Que tu sejas só a forma do barro, quando ainda só unida ao espírito do oleiro – o Falador Silencioso -, antes de ele plasmar o teu barro. “Antes que a Alma possa ouvir, tem de se tornar surda; para que possa compreender e recordar, ela deve primeiro unir-se ao Falador Silencioso”. Unir-se a Ele como a forma do teu barro, quando ainda está só no espírito do oleiro, antes de o criar.
1.3 – Mata os teus desejos e pensamentos, e apaga o teu eu mental. Torna-te indiferente aos objectos de percepção, não dando atenção aos sentidos. Vigia o “produtor de pensamentos”, aquele que acorda a ilusão. Quando deixares de ouvir os muitos, poderás divisar o Um: o som interior que mata o exterior. Mata a mente, que é a grande assassina do Real. “Antes que a mente da tua alma possa compreender, deve a flor da personalidade ser esmagada em botão”.
“0s sábios não se demoram nas regiões de prazer dos sentidos; não dão ouvidos às vozes musicais da ilusão”.
1.4 – Para matares os desejos e os pensamentos, e apagar o eu mental, terás de cultivar a compaixão. Ela leva-te à paz e à felicidade, na terra do silêncio e do “não-ser”. Ela é a “semente da libertação do renascer”.
1.5 – Abandona a tua personalidade e individualidade, para depois te perderes na Personalidade, na plena consciência espiritual de onde irradiaste, para seres “faúlha perdida no meio do fogo, gota dentro do oceano, raio de luz sempre presente tornado o Todo e o fulgor eterno”. “Se queres chegar ao vale da felicidade, fecha os teus sentidos à grande e cruel heresia da separação, que te afasta dos outros”.
1.6 - “Não podes caminhar no Caminho, enquanto não te tornares, tu próprio, esse Caminho” “Só chegado bem ao fim, podes ouvir a Voz do Silêncio”.
1.7 – “Vê! tornaste-te a luz, tornaste-te o som, és o teu Mestre e o teu Deus. Tu próprio és o objecto da tua busca: a voz sem falha, que ressoa através de eternidades, isenta de mudança e de pecado, os sete sons em Um, a VOZ DO SILÊNCIO”.

2 – A propósito do Deus dos místicos ocidentais, já aqui falámos do livrinho A Nuvem do Não-Saber, escrito por um monge anónimo, em finais do século XIV, com o propósito de ensinar os seus discípulos no caminho para Deus (ver texto 78).
Por isso, pode perguntar-se: a sabedoria oriental dos antigos mestres budistas, presente em A Voz do Silêncio pode comparar-se com a sabedoria dos monges a Ocidente, concretamente com a doutrina de A Nuvem do Não-Saber?

2.1 - Entremos pelas semelhanças, que mais serão do que as diferenças. Nos dois casos, há um discípulo ou peregrino, e portanto também um mestre e uma peregrinação a empreender. Ora, havendo o binómio “mestre e discípulo”, isso implicará no texto a preferência pela tradição e não pelo livre exame (das Escrituras); a preferência pelo ouvir e não pelo ver; pela fé e não pela razão; pelo coração e não pelo intelecto.
 Por outro lado, com o binómio “peregrino e peregrinação” vem a travessia da escuridão da noite e do pecado (em que o peregrino pecador está mergulhado) em direcção ao reino da luz, divina luz. Isto, com o acúmulo de que as religiões, para valorizarem aquele estado luminoso final que propõem, acentuam o mais possível a escuridão desta vida terrena.
 E tudo isto, num caso e noutro, veiculado e servido por um discurso pedagógico e coloquial, ricamente figurado, metafórico, mesmo encantatório, para prender intensamente os afectos dos iniciados, que só para estes se dirige o discurso. Para os afectos, pelo menos dos que seguem a sabedoria ocidental.

2.2 - Mas também há diferenças, das quais são de referir algumas. No fim do caminho, ainda nos dois casos, vai ouvir-se a Voz do Silêncio, mas, enquanto em “A Voz do Silêncio” se ordena “mata os teus desejos e pensamentos e apaga o eu mental”, em “A Nuvem do Não-Saber” diz-se ao discípulo “Toda a tua vida deve ser um desejo”; enquanto no primeiro, ao fim do caminho, estará o autoconhecimento daquele que caminhou e que é ele o próprio caminho e também o seu deus, no segundo parece estar a alteridade do Deus Pessoal; e assim, enquanto no primeiro, se perde a individualidade do caminhante na Personalidade cósmica, no segundo, parece não perder-se.

quarta-feira, 13 de março de 2013

137 - Bênção



Todos os anos, no Inverno,
antes da Primavera,
nós podamos as árvores dos quintais,
da lenha não necessária,
inútil e perniciosa
para a produção de frutos.

Muitas vezes nós sofremos
por fazermos comparações
e nos deixarmos seduzir
pelo nosso imaginário,
 por afunilarmos o olhar
e não nos transcendermos …

Porque não procedemos
a semelhante poda
aos ramos secos ou inúteis
da árvore da nossa vida?

O fértil húmus da terra
e as chuvas que caem do céu
agradecem.

Porque depois,
no início do Outono,
na árvore nua de folhagens
ao sol esplenderão os frutos,
os “dios-piros”, o “fogo de deus”.

segunda-feira, 11 de março de 2013

136 - O Voo da Borboleta e da Canoa


1 - Olá! Ocorreu no dia 2 do corrente mês, em Montemor-o-Velho, a celebração da palavra: palavra de ficcionistas gandareses reunida em Antologia.
Integrada no “Festival do Arroz e da Lampreia” e por gentileza da Câmara Municipal, a cerimónia teve lugar no Centro de Alto Rendimento em Canoagem, pela tarde. Um pavilhão muito amplo, em grande parte dividido e ocupado com tasquinhas para servirem os pitéus para o corpo, e ao fundo um palanque com uma mesa, umas cadeiras, colunas de som, microfones e ainda um painel gigante na parede com a capa da Antologia, tudo preparado para confortar a alma.

2 - O que são as palavras? Serão elas meros objectos ou, de alguma forma, já farão parte dos sujeitos falantes? Como é que as aprendemos? Para que servem? A quem pertencem? Como se formam e constituem? Serão elas como nós, feitas de corpo e alma? E frágeis, como também nós somos?
Tomemos o caso da muito bela palavra “borboleta”. Todos conhecemos o multicor bichinho por ela referido - um fio alado de carne entre duas esplêndidas asas amplas e abertas, ou fechadas -, e também todos temos contemplado o seu pastoso voejar em campo aberto ou cirandando seduzido à volta de uma luz.
Mas uma coisa é o bichinho, que é o referente borboleta, e outra bem diversa o artefacto humano, que é a palavra “borboleta”. Se esse (sempre o mesmo) bichinho voar ou poisar em Portugal, ele é uma borboleta; se em Espanha, é mariposa; se em França, papillon; se em Inglaterra, butterfly; se em Itália, farfalla. E se tivéssemos estado na Grécia Antiga com um desses bichinhos, ouviríamos os nossos irmãos gregos a chamarem-lhe “psychê”! Mas então, não era esta mesmíssima palavra que eles usavam para referir a sua alma? Claro que era! Mas, para eles, simultaneamente, a palavra “psiché” significava borboleta e alma. Quer dizer, a nossa alma humana, em relação ao corpo, parecia-lhes uma borboleta, levantando e saindo de dentro do seu corpo e voando livre à volta dele e nos céus!

3 – Assim é que todas as palavras são feitas de duas faces: uma sensível ou corporal (os sons ou os grafemas), e uma outra espiritual, que é a sua alma ou significado, e que está só na nossa mente mas também a supomos na palavra. Pode então dizer-se que, na segunda acepção referida, a alma da palavra “borboleta” indica a nossa própria alma.
As palavras são inventadas por nós, pertencem a todos os falantes e são, como eles, frágeis e feitas de corpo e de alma. Elas são papagaios de criança voejando no ar, voando mesmo no céu, no mundo do espírito, mas sempre agarradas à pedra do significante, do sensível, do terreno, do material. Nada humano anda no ar, nos céus, que não tenha florescido do chão.
E quanto às artes humanas, seja a literatura que é a arte feita com palavras, ou a pintura ou a música ou a escultura ou a arquitectura ou quaisquer outras, todas elas consistem, à semelhança das palavras, em dar uma bela alma ou espírito a um corpo que vem do chão, que portanto é material ou sensível. As palavras já têm corpo e alma; mas as artes concedem especial beleza ao corpo e à alma que as constituem.
No vertente caso da arte literária, nós criamos a beleza de sons e grafemas de palavras, para deles extrairmos a intentada beleza em significados e sentidos. Como diz Ricardo Reis: “Que, quando é alto e régio o pensamento. / Súdita a frase o busca / E o scravo ritmo o serve.”
É como se, com arte, escolhêssemos e tocássemos por fora o cortiço dos significantes, para deles saírem as abelhas à colheita do mel que há nas flores. É também como se, a uma canoa, imprimíssemos remadas certas e decisivas nas lisas águas do lago, que a levassem a levantar voo e a voar livre pelos céus.





domingo, 3 de março de 2013

135 - O Tabernáculo da minha Intimidade


1 - Olá! Na minha intimidade, a sós, é quando eu posso estar mais acompanhado: os pensamentos que então germinam ou me traz a água da memória vêm ter comigo, eu estou com eles, e até me posso ver com eles e neles no espelho da reflexão. Este é o soberano domínio do meu espírito, mundo impassível, mundo como que fora do tempo.

2 - Descendo agora desse mundo fora do tempo, também posso estar com o meu ser corpóreo, com o meu “eu” histórico, o meu “eu” das vicissitudes e do tempo, o meu “eu” mortal. E então, eu posso sentir na alma a força ou a debilidade das paixões, que à alma sobem vindas do corpo. Este é mundo do desejo e do coração, que sempre se faz sentir na ampla sala da alma.

3 - Muito vivos mas também muito belos diálogos se podem travar aí, nessa sala mental, entre o frio e impassível espírito e o apaixonado coração, aquecido de desejos. Ganha um? Ganha outro? O que importa é nenhum ganhar nem perder, mas entenderem-se os dois numa boa cumplicidade. Tudo é limitado para o corpo, como também afinal para o espírito, de sorte que o melhor caminho será os dois entenderem-se. Entenderem-se para eu me conhecer melhor a mim próprio, melhor conhecer o mundo, e viver melhor.