domingo, 3 de julho de 2011

TEXTO 22

BILHETE-POSTAL A MÁRIO

Meu caro Mário,

Não é por desprimor que lhe envio só bilhete-postal, considerando que a outras pessoas mandei cartas. Envio-lhe só bilhete-postal porque, enquanto outras pessoas mandaram cartas a Deus, o Mário mandou só bilhete-postal.
Nessa pequenina mas muito bela missiva, o Mário invoca Deus, da seguinte maneira: “Meu Pai, meu Filho, meu Espírito Santo”.
Permita-me então que lhe formule algumas perguntas simples: como é que sabe que Deus é Pai e Filho e Espírito Santo? Talvez responda que o sabe por elementos que tira dos livros sagrados, não é? Mas a Bíblia será de facto o repositório da Palavra de Deus, ou ela é simplesmente produto da inteligência espiritual da humanidade?
Se os antigos pensavam que, quando trovejava, era Deus que estava a ralhar, porque não há-de pensar-se hoje que Deus nos fala na palavra da Bíblia? Não é até este Deus muito mais à medida do homem, mais humanizado, utilizando até a sua linguagem? E no entanto, essas palavras da Bíblia podem muito bem ser só palavras humanas!
Se se escolher a segunda alternativa, que parece a mais provável, sobrevêm-nos ainda mais perguntas: Quando a Bíblia diz que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança, não estará ela também, profundamente, a dizer que é o homem que está “criando” um deus à sua imagem? Não estará o homem – que também produz verbo mental e que também pode amar – a atribuir a Deus aquelas suas propriedades, embora em grau absoluto?
Como escritor que é, já com certeza terá sentido muita alegria com os filhos literários que vai criando! Ora, isso que se passa consigo terá semelhanças com a trindade de Deus, ou é a trindade de Deus que é imaginada à semelhança do que sente o escritor, em relação à sua obra? Será possível, enfim, dizer algo de Deus, e até imaginá-lo, se ele é o Inefável?
São muito belas as palavras do seu bilhete-postal, que dirige a Deus. Mas será que podemos ir a Deus por palavras e imagens mentais, ou será Ele que pode vir ao nosso encontro, no meio do silêncio da alma, para aquém ou para além das palavras e das imagens? E se vier, não será possível simplesmente amá-lo, e nesse amor o conhecer, no meio do silêncio?
Com muita atenção,
João.

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