sexta-feira, 25 de março de 2011

TEXTO 13.3

III
Subamos agora até ao alto do miradouro, onde podemos alargar mais os nossos horizontes, e até, quem sabe, descobrir onde está o umbigo do mundo! E como ainda é um pouco longe e não temos nada que fazer, contemos uma saborosa história. É afinal a historiazinha tantas vezes repetida do instinto e da razão, os quais a Natureza nos concedeu para podermos governar a nossa vida, mas que frequentemente não se entendem entre si lá muito bem! Gaiteiro e namoradeiro e cheio de expedientes como é, muitas vezes o instinto põe mansinha a mão no ombro da razão, segreda-lhe umas coisas com doçura à orelha...e logo os dois vão dançar o vira para o arraial! Até às tantas dançam, primeiro desagarrados e depois agarradinhos. E é então a oportuna altura de o instinto puxar a razão para lugares escusos e aí desafiá-la para mais umas coisitas! E a razão, que por natureza deve gostar da luz mas já está meio entontecida e sonolenta, não resiste ao apelo, e deixa-se levar!
Há encarniçadas guerras simbólicas entre os humanos, algumas delas quase com a idade da própria Humanidade, que, se eles soubessem porque elas se levantam e ganham relevância, o seu impacto seria reduzido ou até de todo desapareceriam. Na generalidade dos casos, é a voz do instinto e do coração, que, sabendo muito bem agenciar a alma e levá-la para o seu campo, assim a põe a travar essas encarniçadas batalhas, as quais para a alma não deviam ter sentido porque só dizem respeito ao instinto e ao coração.
E eis que já chegámos há pouquinho ao alto do mirante, e já ali se põe um menino a dizer que, para além de tantos montes e vales que daqui pode ver e já viu todos, o que ele quer mesmo é ver se descobre e onde está o tal e tão importante umbigo do mundo. Isso mesmo, meu amigo, é isso a que agora vamos. Na antiga Grécia, Apolo era o deus da razão. No frontispício do magnífico templo a ele dedicado, em Delfos, podia ler-se a seguinte inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. Para os gregos de então, que não andavam torturados com as aldrabices das suas contas públicas, o centro do mundo era ali. Ali era o umbigo do mundo. Tal como um bebé, que, antes de nascer, só se pode alimentar pelo umbigo, assim também, depois de nascido, só se poderá alimentar através do auto-conhecimento. Por isso, o mais importante na vida, é conhecermo-nos a nós mesmos, porque é pelo auto-conhecimento que nos alimentamos. O auto-conhecimento, que nunca na vida podemos dar por acabado, é o umbigo pelo qual nos vamos alimentando. Somos feitos, profundamente feitos de instinto ou coração mas também profundamente feitos de razão ou alma, e de frutos que dessas duas fontes nos vêm nós nos alimentamos. Mas o umbigo da alimentação está na razão ou alma, está no auto-conhecimento. Por tudo isto é que a imbecilidade é um vício detestável. Isto, porém, ficará para outra ocasião, muito embora os meninos e as meninas já possam ir congeminando razões.
“Mas ouça lá, meu amigo”, pergunta aquela curiosa menina, “então não seria melhor que, por natureza, nós fôssemos só um mar de emoções que nos fizessem até chorar de alegria, emoções que nos chegam dessa parte mais antiga do nosso ser, e portanto não houvesse necessidade de termos razão ou alma”? Boa pergunta, minha menina, muito boa pergunta! Mas então, para sermos esse mar de emoções de alegria, não teríamos de ser também o seu contrário, isto é, também um mar de emoções de tristeza, de pena e até de luto? E sentir alegrias e tristezas, muito embora elas tenham raízes muitas vezes no corpo, isso não é fruto próprio da razão ou alma? Sem esquecermos, minha curiosa menina, sem esquecermos que a evolução, se bem nos fez assim com corpo de instintos e emoções e coração, também nos fez subir à fria razão e à consciência! Nisto, não podemos mexer, não é? (Eu bem sei que até houve um pensador que afirmou que a evolução fez evoluir demasiado o bicho que havia de dar o ser humano, e isso redundou em que este, se bem que ficasse equipado com mais competências, também ficou com mais problemas. Mas isto, torno a dizer, não podemos alterar!). E se não fôssemos também razão e consciência, e portanto não nos pudéssemos ir conhecendo a nós mesmos, estávamos aqui com esta conversa? E não é também esta conversa toda, para quem escreve e quem lê, uma saborosa alegria que a todos nos está possuindo?
Mas aquele auto-conhecimento - era isto que eu queria acrescentar quando aquela menina falou e fez a pergunta – aquele auto-conhecimento que Apolo e a razão nos facultam, ainda nos dá asas para vislumbrarmos e acedermos a um nível mais sublime de conhecimento! A razão já não chega lá, mas não se opõe a ele e até no-lo pode apontar. Esse nível mais alto de conhecimento e auto-conhecimento, que a razão já não nos dá mas só aponta, é o conhecimento pelo amor. Podemos então dizer que o genuíno umbigo do mundo é o amor. Pelo amor e de amor nos devemos alimentar. Amor que, portanto, além de amor, é também a mais sublime forma de conhecer. A um tempo, o amor é o umbigo e o alimento.
Ainda havemos de voltar a este assunto, se a isso não se opuserem os meninos e as meninas.

quarta-feira, 23 de março de 2011

NOTA SOLTA DE DESPEDIDA

Nota Solta de Despedida
Olá!
Já que tens de regressar a Ítaca, procura fazê-lo o mais tarde possível. E quando te decidires pelo regresso, demora-te quanto puderes na viagem. É esta a lição de um poeta grego, quase de nossos dias, mas que ainda não andava em aflições com a bodega das agências de rating a martelá-lo com urgências de mau gosto. Seguindo eu a lição do poeta, tomei já a decisão de deixar este lar por mais uns tempos, não sem levar a ideia de um dia aqui regressar, já que tenho mesmo de entrar de novo na minha Ítaca.
Tal como o poeta avisadamente aconselha, quero ainda demorar-me pelos portos junto ao mar, a ver, recortados pela diáfana luz, marinheiros e embarcações de outras paragens; demorar-me a visitar mercados para sentir o grito dos pregões e o rumor dos regateios, e também para comprar um ou outro produto, não muitos porque o Sócrates e o Teixeira não os consentem; a passear longamente nas praias, sobre a areia batida junto às águas e com a cara ao vento; a subir às montanhas para respirar o ar fino das alturas e me embeber de horizontes sem fim; a visitar a casa onde vi pela primeira vez a luz, e aí sentar-me no banquinho onde me costumava sentar a falar com os meus pais, e deixar-me envolver pela branca nuvem onde ainda os pressinto … e mais e mais, mas sem ser em demasia e só se a saúde deixar.
Por isso, eu venho por este meio despedir-me, até sempre, de todas as senhoras funcionárias do lar, às vezes um tanto palavrosas e barulhentas mas muito amáveis comigo durante toda a minha estadia; também despedir-me, com saudade, das três dedicadas meninas que vêm suportando comigo a pesada e dura mole, qual tem sido a do lançamento e do desempenho deste blog; ainda do muito amigo e jovem funcionário omnivalente que pratica todos os seus trabalhos com a perfeição de um ourives; e outrossim de todos os elementos da direcção desta casa de repouso - especialmente daquela querida senhora que ainda está em convalescença de uma intervenção cirúrgica -, que com proficiência a governam. De uma forma muito especial e carinhosa me despeço de todas as senhoras e senhores residentes no lar. Nunca é bom, mesmo com provecta idade e grande falta de saúde, estarmos de costas voltadas para a vida e olhando só para o cais de embarque, de onde navegamos para o outro lado. Nem é bom, estando nós conscientes, matar simplesmente o tempo que ainda nos é dado para viver. Quem é capaz de descobrir os encantos da bruxuleante luz dos nossos tempos últimos, dos últimos sons da melodia da nossa vida?
Com um carinhoso abraço para todos e até sempre,
do João Reis.
Advertência Final: Não é da vontade do autor, que se proceda à divulgação publicitária desta “Nota Solta de Despedida”. Convém sim, e só, que ela seja conhecida das pessoas por ela abrangidas, e ainda editada no Clube dos Poetas Vivos, para a reduzida audiência que tem e outrossim para a que possa vir a ter. Não se faz aqui a casuística de ocorrências reprováveis de publicidade, deixando esse assunto à consciência bem (de)formada de cada um. Que se cumpram à risca todas estas vontades, ainda não as últimas, graças à generosidade da Vida que ainda me vai dando alento para viver. O autor, agradecido.

terça-feira, 22 de março de 2011

NOTAS SOLTAS

1 - Não é triste e lamentável o nosso Estado ter de financiar-se em condições insuportáveis nos mercados estrangeiros, quando, pelo menos em parte, ele podia financiar-se aqui dentro? E porque é que ele compra lá fora o dinheiro a sete e oito por cento – que depois todos nós temos de pagar – e aqui dentro só nos dá um ou dois por cento, pelos seus títulos de dívida pública?
2 - Sabemos que o ainda recente terramoto financeiro se deveu a imprudências e falcatruas do mundo financeiro americano, daí alastrando a crise por todo o mundo. E como é que, então, o resto do mundo continua a dobrar a cerviz e a ajoelhar-se perante as agências financeiras americanas, as quais, precisamente horas antes de os bancos e Estados europeus terem de ir aos mercados financiar-se, baixam a nota da dívida pública desses Estados? Não haverá aqui deficiente e tendenciosa informação e oportunismo especulativo? Não será isto o capital andar completamente à solta, sem controlo de nada nem de ninguém, a não ser da descontrolada e criminosa cobiça?
3 – Porque é que a sociedade civil de um e mais Estados não institui “Bancos do Povo” para financiar famílias e pequenas empresas, indo assim fazendo frente e tirando a freguesia aos habituais bancos da finança, e mesmo pondo em causa a omnipotência do mercado de capitais? Não é esta a necessária e urgente revolução?
4 – Pode o capital andar à solta, em vez de ele ser o sangue da economia? Enquanto a política não controlar a finança, poderá haver ordem social no mundo?

sexta-feira, 18 de março de 2011

TEXTO 13.2

II
Subo agora, com energia, a estrada íngreme que dá acesso ao centro da povoação. É uma povoação risonha e relativamente pequena, com acentuados desníveis no terreno onde se implantam as casas, mas tudo num sítio de razoável altitude, o que faz com que de muitos pontos nós possamos ter belos horizontes.
É portanto uma povoação pequena, sem valências para acudir a todas as necessidades da vida. Mas para satisfazer as duas principais necessidades, ela tem! Há dois lugarzinhos onde as pessoas se podem abastecer para alimentar a vida, e há também um outro lugarzinho, aqui no meio da povoação, onde as pessoas podem repousar depois da vida!
Batidas pelo sol da tarde, duas das quatro paredes brancas bastam para iluminar o ambiente. Não é uma luz crua, a ferir os olhos, mas também não é uma mortiça luz. Ela é, sim, a exacta e necessária luz para podermos ver, com a possível objectividade, as coisas. Chamam-lhe cemitério, que quer dizer “lugar onde se repousa”, e ainda bem que assim se chama, pois que, que outro abençoado nome se poderia encontrar para dizer esta realidade?
“Olá, bonequinha, também andas por aqui? Vieste com a mamã, foi”? Fizeste muito bem, mamã, muito bem mesmo em trazer a tua menina que não tem mais de dois anitos e se passeia e brinca pelas alas entre as sepulturas. Ela salta agora ao pé de ti, mamã, agarra mesmo a ponta da tua saia, e as duas se preparam para depositar um vaso de frescas flores, na cabeceira da sepultura onde está o corpo daquela que foi a tua mãe e a sua avó. Quem dera que todas as crianças pudessem frequentar estes benditos lugares, porque, com isso, a vida delas ganharia mais densidade e sabor!
Este abençoado espaçozinho, todo recamado de areia dourada e fina e só relevando um tanto o lugar das sepulturas, não é um necrotério, mas sim um cemiteriozinho. Aquele, é um lugar para corpos mortos; aqui é um lugar para corpos dormindo. Entre corpos que dormem, podemos estar bem; entre corpos mortos, com certeza que não!
É certo que há cemitérios cravados de uma multidão tremenda e impetrante e soluçante de lápides e de cruzes, mas aqui não! Aqui, quando muito, há duas ou três lápides, parcamente escritas só com À memória de... ou Saudades dos teus familiares e amigos.
É muito agradável estar por aqui com vagar... ou até trazer um banquinho e sentar-me por largos minutos para descansar e ver...ou mesmo deitar-me em sítio desocupado, puxando manta de areia por causa do frio ou do relento, fazendo companhia aos que dormem e até com eles dormindo, se bem que por enquanto o meu dormir seja diverso, mas um dia igual será, disso não tenho dúvidas!






NOTAS SOLTAS SOBRE O TEMPO

Porque é que o ano judicial abre logo em meados de Março, e não só lá para meados de Agosto ou Setembro, já tombando o ano para o seu termo? Num país onde a justiça não funciona bem, já só por isso, tudo passa a funcionar mal.

Como é que um plano de estabilidade e crescimento pode ser simplesmente um apertar de cintos?







Precipitando-se numa fug

terça-feira, 15 de março de 2011

NOTAS SOLTAS SOBRE O TEMPO QUE FAZ

1- Precipitando-se numa fuga para a frente, um político pode dar como resolvidos, em instâncias alheias e superiores, assuntos que directamente nos dizem respeito, sem ter um mandato nosso para tanto? Isso não é uma afronta contra a ordem democrática?
2- Ouviu-se hoje na rádio uma notícia tão desinteressante como muitas outras a que já estamos habituados. O presidente da comissão para reavaliar a situação e o funcionamento das parcerias público-privadas – comissão instituída pelo governo e exigida pelo principal partido da oposição – demitiu-se. E, supostamente, demitiu-se por falta das informações por si solicitadas e que a administração pública, nessas mesmas empresas, não lhe concedeu. Assemelham-se assim, as cúpulas dessas empresas, a autênticos ninhos de vespas em que é perigoso tocar! E então, não haverá ninguém que consiga furar esses bloqueios, pesem embora umas boas picadelas na ponta do nariz e nas orelhas? Porque é que a transparência só se exige aos pequeninos? Porque é que o poder político não tem mão nos grandes?



segunda-feira, 14 de março de 2011

NOTAS SOLTAS SOBRE O TEMPO QUE FAZ

1- A Sociedade é a mais engenhosa e nobre e capital invenção do género humano. Sem ela, nem simplesmente poderíamos ser humanos. Cada ser humano e sociedade são duas entidades que devem equilibrar-se entre si. Elas são uma para a outra, mas sempre com mútuo respeito por cada uma.
2- A Democracia é o sistema sociopolítico menos imperfeito para o povo de um Estado se auto-governar. Como é que então, agora, um e outros Estados hão-de estar dependentes dos egoísmos do “gado alemão” e de outros “gados”? Como é que havemos de sentir e apreciar o valor do poder democraticamente decisivo do nosso voto?
3- O Dinheiro é o sangue das nações. Como tal, ele é sagrado, só devendo servir para produzir bens para os cidadãos consumirem, e nunca para empanturrar a voracidade dos agiotas. Não se deve negociar com o sangue, e muito menos descer à agiotagem.

sexta-feira, 11 de março de 2011

13.1


I

Olá, meninas e meninos!
Pelos meandros destes caminhos antigos, subo decidido até à capela do Santo Cristo; daí, plano para Poente por ruas direitas até ao Largo de São Tomé; e a seguir, à direita, mergulho na maravilha que é a densa floresta verde.
Há uma brisa mansa no ar, que primeiro faz bulir as ramagens das árvores, e depois afaga suavemente o meu rosto. Está uma manhã muito doce! Mas a doçura da manhã, faz mesmo parte da manhã, ou sou eu que a vejo assim? As coisas são boas ou más em si mesmas, ou elas são simplesmente coisas, e eu é que as faço más ou boas? E aqueles altos ideais de Justiça e de Liberdade e de Paz e ainda outros são mesmo realidades objectivas, ou são eles a simples mas também vigorosa objectivação de subjectivas aspirações da generalidade dos humanos, a concretizar em terrestres realidades?
Por sobre a estrada e as vegetais ramagens laterais, sente-se agora um risco sonoro de aves – talvez de popas, talvez de gaios – a inundar o silêncio da manhã...E de súbito, à esquerda, o lavadouro.
“Bom dia, senhora, logo de manhã a lavar roupa, aqui no lavadouro”! Ela, esfregando bem a roupa na pedra do tanque, depois mergulhando-a na água limpa...”É verdade! Tenho de aproveitar bem o dia, que eles agora dão em ser pequenos”! E de novo ensaboando e esfregando e mergulhando, para a roupa ficar bem limpa...”Mas a senhora, hoje, está aqui sozinha! Não tem companheiras para conversar com elas”! E torcendo também a roupa, para a tornar mais leve e depois a poder arrumar no carrinho...”Às segundas-feiras é que costumamos vir todas. Mas como, esta semana, eu não pude vir com elas”...”Mas agora noto, minha senhora, noto que eu já a vi várias vezes por aí”! A roupa torcida ainda nas mãos, que no ar a surpresa suspende...”Mas onde é que me tem visto? Sim, diga-me lá”! Então, com brando sorriso, vou-lhe dizendo: “Olhe, minha senhora, tenho-a visto no brilho dos olhos e no rosto da sua filha”! E entre outras surpresas e sorrisos, começamos a explicar este gostoso imbróglio, enquanto a água escorre do tanque e aquelas peçazinhas já lavadas são arrumadas no carrinho. “Olhe, minha senhora, e agora quero aqui desvendar-lhe um segredo que ninguém mais vai saber! O seu marido e a senhora, quando decidiram pôr-se a fabricar na sua barriguinha aquela que viria a ser a sua filha, devem ter lavado os dois as mãos muito bem lavadinhas e ter-se benzido e persignado por várias vezes”!... Uma névoa de emoção lhe perpassa pelo rosto, uns olhos turvos de água se afundam na roupa, e outra água limpa corre para o tanque, outras palavras breves e sempre muito amáveis são trocadas...até que o encontro termina com uma amistosa despedida.

sexta-feira, 4 de março de 2011

TEXTO 12

Olá!
Aquela menina pequenina e recente, a qual na Quinta Verde desencalha as escalas de serviço do pessoal, anda aqui, neste final de pequeno-almoço, a ajudar as utentes a sair da sala. Pelas avenidas entre as mesas da sala, como também nas mais largas e longas avenidas dos corredores, várias utentes viajam no seu carrinho de marca Andarilho Adagio, mas viajam tão lentamente que até o próprio caracol as poderia ultrapassar. Se aqui dentro houvesse, como às vezes há na rua, autoridade a impor velocidades mais altas, todas estas viajantes ficariam em terra e deixariam de poder viajar.
Uma engenhosa velhinha destas conseguiu fazer suspender, da barra do seu carrinho, um porta-luvas de papelão onde transporta alguns dos seus mais urgentes pertences. Vai daí que, precisamente hoje, esta menina velhinha enfiou no seu porta-luvas a chávena do seu pequeno-almoço, contravenção que a tal menina recente pôde constatar. E constatando, logo mandou parar a viajante, e sobre o assunto a interpelou: “Ó Dona Assim e Assim, então para onde leva esta caneca”? Ó minha-menina-velhinha- que-vais-a-andar-tão-devagarinho, mas então, para que queres tu a “caneca”? Para a levares para o quarto? Mas para quê? Será para ires de lá bebendo e sempre a enchendo durante a noite de alguma espirituosa bebida, e toda a noite ires cantando “ora zumba na caneca,/ ora na caneca zumba, / o diabo da caneca / toda a noite catrapumba”?!...
Caminho agora por esta silenciosa rua da vila. Brilhante e fresca está a manhã, nestes tempos frios em que festejamos outro início do remontar do sol no firmamento. E de súbito, na berma da estrada, um pequeno montinho de pedrinhas muito brancas. Se me não fossem tão branquinhas as pedrinhas, ali na berma da estrada, eu passava à frente e elas eram-me indiferentes. Mas se uma pedrinha de qualquer cor que fosse me entrasse no sapato, então eu não lhe podia ser indiferente! Teria de parar, tirar e sacudir o sapato, e de novo calçá-lo.
Quando dizemos que algo é bom ou mau para nós, é porque a isso nós não somos indiferentes. Então, algo é bom ou mau em si mesmo, ou somos nós que o fazemos bom ou mau? E se não tivéssemos a liberdade de escolher, ou simplesmente a capacidade mental de ver e escolher e decidir, haveria coisas boas e más? Haveria o mal e o bem? Para aquela vaquinha que além pasta deliciada no prado, também haverá coisas boas e más? Que diferenças haverá entre o caso dela e o nosso, se acaso elas existem? E existindo, as diferenças medir-se-ão só em termos de quantidade ou também de qualidade?
E aqui paro agora, de fronte a um muro alto, voltado para o sol. Que bom para o muro – se o muro pudesse ser como eu – que bom estar assim, neste balbuciante Inverno, voltado para o sol e com tão belo panorama em frente! É claro que, se ele fosse como eu, com este sol de Inverno, teria de pôr também um chapéu na cabeça!
Ali, no meio do muro, à altura de um homem, está um pequeníssimo menino metido em sua redonda casinha e colado ao cimento. Que delicioso será para ele, assim dormindo um sono longo, receber o benfazejo calor através da sua concha! E não obstante, eu cometo o verdadeiro sacrilégio de o desencravar do muro, para o transportar na concha da minha mão.
Pelo caminho, eu vou vendo se ele põe cá para fora a cabeça e os cornitos, a fim de tactear o mundo e ver onde está. Mas, nada! Durante todo o caminho de regresso, nada saiu lá de dentro. E mais: tudo permanece dentro da casinha, sempre protegido por uma película que o continua a isolar totalmente do mundo! De onde deduzo que, para não acordar assim, com muita probabilidade se tratará de um menino já muito velho e doente...
“Menina enfermeira, trago ali um menino, que deixei na quinta, mas que precisa de ser aqui recolhido no lar. Deve ser muito velhinho e doente”! “Pois é”, diz ela, “mas nós agora só temos lugar para uma menina”! Oh, minha Nossa..., mas então como é que eu agora vou averiguar se ele é menina ou menino? Despontarão os cornitos, de entre um rosto rosado e macio e um cabelo em caracóis, ou de entre um carão de barba rija e umas melenas ao vento? Terá ele uma vozita de flauta ou de flautim emplumada em risadinhas, ou exibirá vozeirão de trombone ou trovão? Dono será ele de umas maminhas levantadas e redondinhas, e o resto do tronco em concha para acolher sementinhas e elas aí germinarem e crescerem, ou será antes, e ao contrário, quem lá pode depositar tais sementes? Haverá, lá dentro, sapato alto para valor acrescentar, ou só sapato raso para não andar descalço?
Mas a insistente enfermeirazinha não se fica só por aquela exigência! “Além disso”, acrescenta ela, “terá de ser apresentado relatório médico, onde constem a idade e as suas principais maleitas”. Oh, minha Nossa Senhora! Por esta é que eu não esperava!... Mas como para grandes males, muitas vezes remédio há, talvez também aqui isso aconteça... Há na quinta, de onde o lar tira o seu nome, restos de poda recente de dois belos aloendros. E assim, num raminho de algumas folhas e rematado por uma flor, eu encontro uma parte da solução, e a outra já vem a caminho! “Menina enfermeira, está aqui o relatório que exigiu, lavrado neste papel que é de sua usança. O menino tem um primo médico e foi este que o lavrou. Está cá tudo o que é preciso. Tem é de ser lido com óculos de muito aumento e até talvez à lupa, porque a letra é muito miudinha!... “
Agora, só resta ir outra vez à quinta, para ver se o menino continua no sítio onde foi posto, e se já está a comer ou ainda continua a dormir. Mas, simplesmente, ele não está! E sondo com cuidado o espaço, num raio cada vez maior, mas não o encontro! Afinal, o caracol não anda assim tão devagar! Como quem aqui viaja em Andarilho Adagio, também não anda assim tão lentamente!
E agora, meninas e meninos, só deixo duas perguntas no ar. Quem disse que não pode haver ternura, ao falarmos da vida? Não estará certo, portanto, aquilo do subtítulo dado a este blog, que nos aponta para o fascínio pela vida, pela vida breve que nos possui, neste planeta azul?