3 – Desçamos de novo a escada do
tempo, mas tão só três ou quatro seculares degraus. Sentado num banco e com uma
tosca mesa à sua frente, Hakuin, monge do budismo Zen, esteve hoje toda a manhã
na sua cela a ler livros e a rabiscar papéis e, num momento de mais intensa
iluminação, escreveu e ultimou um texto. E agora, no claustro, onde ao centro
avulta uma fonte escorrendo para uma cisterna, ele vem mostrar-nos o seu poema,
e nós, embalados pelo murmúrio da água a ecoar-nos na alma e pelo amplo recinto,
pudemos desfrutar do prazer doce e espiritual de o ler:
Todos os viventes
são
originariamente
budas.
Como a
água e o gelo.
Não há
gelo sem água,
mas não
nos damos conta.
Buscamos
na lonjura o que temos à mão.
Que pena
ver a gente extraviada
buscando
longe a Verdade
que mora
no seu interior,
como quem
se queixa de sede
enquanto
nada num lago!
Até o gelo e a água são iluminados
porque aquele está sempre disponível para ser água e, por seu turno, esta,
generosa, está sempre pronta a fazer-se gelo, e depois a desfazer-se. Mas nós,
por nossa parte, esquecidos e fúteis, não nos damos conta disso.
A nós, que nos presumimos de ser o
pináculo da evolução, consciente e responsável, pode aplicar-se o sábio
aforismo antigo: “a corrupção do óptimo redunda no péssimo”.
Porque é que olhamos para as
dimensões e qualidades dos outros blocos de gelo, bloquinhas e bloquinhos, e
não olhamos para as dos nossos? Porque não cedemos parte ou partes dos nossos
blocos, desfeitas em água, para alimentar blocos carecidos?
Perguntas mais radicais ainda: De
onde e porque é que nos vem a profunda sede que sentimos? Não será porque nos esquecemos
de que já somos feitos de água? Porque nos custa tanto ir anulando espiritualmente
a nossa independente identidade de blocos flutuantes e de superfície, para nos
perdermos na profunda imensidão da água do oceano?
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