sexta-feira, 9 de setembro de 2016

456.3 - Água

3 – Desçamos de novo a escada do tempo, mas tão só três ou quatro seculares degraus. Sentado num banco e com uma tosca mesa à sua frente, Hakuin, monge do budismo Zen, esteve hoje toda a manhã na sua cela a ler livros e a rabiscar papéis e, num momento de mais intensa iluminação, escreveu e ultimou um texto. E agora, no claustro, onde ao centro avulta uma fonte escorrendo para uma cisterna, ele vem mostrar-nos o seu poema, e nós, embalados pelo murmúrio da água a ecoar-nos na alma e pelo amplo recinto, pudemos desfrutar do prazer doce e espiritual de o ler:

Todos os viventes são
originariamente budas.
Como a água e o gelo.
Não há gelo sem água,
mas não nos damos conta.
Buscamos na lonjura o que temos à mão.
Que pena ver a gente extraviada
buscando longe a Verdade
que mora no seu interior,
como quem se queixa de sede
enquanto nada num lago!

Até o gelo e a água são iluminados porque aquele está sempre disponível para ser água e, por seu turno, esta, generosa, está sempre pronta a fazer-se gelo, e depois a desfazer-se. Mas nós, por nossa parte, esquecidos e fúteis, não nos damos conta disso.
A nós, que nos presumimos de ser o pináculo da evolução, consciente e responsável, pode aplicar-se o sábio aforismo antigo: “a corrupção do óptimo redunda no péssimo”.
Porque é que olhamos para as dimensões e qualidades dos outros blocos de gelo, bloquinhas e bloquinhos, e não olhamos para as dos nossos? Porque não cedemos parte ou partes dos nossos blocos, desfeitas em água, para alimentar blocos carecidos?

Perguntas mais radicais ainda: De onde e porque é que nos vem a profunda sede que sentimos? Não será porque nos esquecemos de que já somos feitos de água? Porque nos custa tanto ir anulando espiritualmente a nossa independente identidade de blocos flutuantes e de superfície, para nos perdermos na profunda imensidão da água do oceano?

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