1.1 – Olá, amigas e amigos! Segundo
lenda muito antiga, conta-se que um dia, ou uma noite, caiu uma sementinha no
ventre de uma mulher que até podia ter sido a Grande Mãe. Caiu, fixou-se e não
tardou a crescer, a desenvolver-se cada vez mais. É claro que as células das
paredes do ventre, já aí há muito residentes, acharam aquilo muito estranho.
Mas as coisas, depois, foram evoluindo e mudando. Onde havia uma simples semente
ia-se modelando uma figurinha que, desprendendo-se da parede onde estava, deu
em nadar naquela água amniótica, a tocar mesmo em marradinhas nas circunstantes
células, as quais, por isto mesmo, rapidamente passaram da estranheza para com
ela, a uma terna afeição. E quando a figurinha, cada vez mais definida, se punha
a fazer piruetas e contorções e até a fazer o pino perante elas como menina ou
rapazinho de circo, então era um delírio lá dentro.
Mas eis que tal felicidade
não pôde durar muito. De repente, produziu-se um como que terramoto, houve um
movimento estranho … e a figurinha escapuliu-se por um buraco escuro. As
células ainda quiseram retê-la, mas havia uma força que parecia puxá-la lá de
fora. Até que desapareceu, e a porta do buraco acabou por se fechar.
Então, tristes e sós no interior
do ventre, chorando por aquela criaturinha desaparecida, quiseram proceder a
uma celebração fúnebre, em memória daquele seu ente querido. Algo estranho,
porém, estava a acontecer: incomodavam-nas os ruídos que vinham do exterior.
Elas não sabiam que, lá fora, se estava a celebrar jubilosamente o nascimento.
1.2 - Então, aquela saída brusca é
morte ou nascimento? Ou é simultaneamente morte e nascimento se atendermos por
um lado aos lamentos lá de dentro onde terá sido considerada morte, e por outro
à ruidosa alegria cá de fora, onde foi tida por nascimento?
Mas, se essa saída é realmente morte,
ela não é só o termo da vida que houve no ventre da Grande Mãe, mas também da
que a seguir haverá cá fora no bojo do grande mundo, afinal também este da
Grande Mãe. Pois eles são os dois trechos de uma vida só, ambos amassados em
tempo, no tempo.
É razoável e até muito belo e bom
que aquelas celulazinhas íntimas chorem a morte do seu ente querido, com quem
passaram momentos tão ditosos. O amor e o tempo o deram, com muitas alegrias
para elas, tal como o levou também, envolto nos seus lamentos e tristezas.
E se, numa perspectiva, aquela
saída dos dois trechos da vida temporal tomados conjuntamente foi morte - como
realmente foi, pois que tudo o que é temporal é mortal -, que vida por outro
lado terá sido essa que finalmente nasceu, já não temporal, tão ruidosamente
festejada lá fora? Quem a estava a festejar? Onde?
1.3 – Paremos aqui para considerar
de mais perto o belo texto da lenda, tão rico de níveis de sentido, sempre
partindo do sentido básico ou literal das palavras, o qual se vai expandindo
por meio de um colorido leque de figurações. É que os principais significantes,
quase se esquecendo dos seus habituais significados e correspondentes
realidades, passam a apontar ou a figurar outros significados e suas próprias
realidades. Assim, concretizando, a água
amniótica de que fala o texto é
figura da inexorável água do tempo,
e porventura de outras águas de
que adiante se falará; as células intra-uterinas, que riem
e depois choram, figuram os familiares
e amigos daquele tão querido ser; a
sua vida intra-uterina presentifica
toda a sua vida mortal, incluindo mesmo essa vida
intra-uterina, na qual se desenrola a lenda.
E então, aqueles ruídos que se ouviam lá fora,
ruídos de alegria a festejar um
nascimento, pertenciam a quem? Que nascimento era esse? Os referentes a que
se pode aludir para responder a estas perguntas parecem envolver-se numa nuvem
e por isso serem quase indefiníveis pois até nem são concretos e por isso nem
pertencerem a este mundo material e temporal. Ainda assim, podemos dizer que, segundo
a fé, se tratará do início de uma vida
outra, da vida fora do tempo,
para a qual Deus chama graciosamente esse
ser humano que morreu e agora outra vez vive mas de outra maneira, só
espiritualmente. Isto será a razão dessa ruidosa
alegria de Deus e da sua corte celeste, a que muito contidamente se
associariam algumas pessoas também “lá fora presentes” – lá fora, não, porque
os familiares e amigos que faziam o funeral estavam dentro, dentro do tempo -
mas só na sua qualidade de crentes.
Porém, como será possível uma vida
nossa sem corpo, fora do tempo, sem a carne e os ossinhos a fazerem-se e depois
a crescerem, sem músculos e sem nervos e sem cérebro, enfim sem nada de onde
lhe possa florir e se sustentar uma alma, um espírito, uma particular
identidade toda feita só de vivências temporais e terrenas?
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