quarta-feira, 7 de setembro de 2016

456.1 (de 4) - Água

1.1 – Olá, amigas e amigos! Segundo lenda muito antiga, conta-se que um dia, ou uma noite, caiu uma sementinha no ventre de uma mulher que até podia ter sido a Grande Mãe. Caiu, fixou-se e não tardou a crescer, a desenvolver-se cada vez mais. É claro que as células das paredes do ventre, já aí há muito residentes, acharam aquilo muito estranho. Mas as coisas, depois, foram evoluindo e mudando. Onde havia uma simples semente ia-se modelando uma figurinha que, desprendendo-se da parede onde estava, deu em nadar naquela água amniótica, a tocar mesmo em marradinhas nas circunstantes células, as quais, por isto mesmo, rapidamente passaram da estranheza para com ela, a uma terna afeição. E quando a figurinha, cada vez mais definida, se punha a fazer piruetas e contorções e até a fazer o pino perante elas como menina ou rapazinho de circo, então era um delírio lá dentro.
         Mas eis que tal felicidade não pôde durar muito. De repente, produziu-se um como que terramoto, houve um movimento estranho … e a figurinha escapuliu-se por um buraco escuro. As células ainda quiseram retê-la, mas havia uma força que parecia puxá-la lá de fora. Até que desapareceu, e a porta do buraco acabou por se fechar.
Então, tristes e sós no interior do ventre, chorando por aquela criaturinha desaparecida, quiseram proceder a uma celebração fúnebre, em memória daquele seu ente querido. Algo estranho, porém, estava a acontecer: incomodavam-nas os ruídos que vinham do exterior. Elas não sabiam que, lá fora, se estava a celebrar jubilosamente o nascimento.
        
1.2 - Então, aquela saída brusca é morte ou nascimento? Ou é simultaneamente morte e nascimento se atendermos por um lado aos lamentos lá de dentro onde terá sido considerada morte, e por outro à ruidosa alegria cá de fora, onde foi tida por nascimento?
Mas, se essa saída é realmente morte, ela não é só o termo da vida que houve no ventre da Grande Mãe, mas também da que a seguir haverá cá fora no bojo do grande mundo, afinal também este da Grande Mãe. Pois eles são os dois trechos de uma vida só, ambos amassados em tempo, no tempo.
É razoável e até muito belo e bom que aquelas celulazinhas íntimas chorem a morte do seu ente querido, com quem passaram momentos tão ditosos. O amor e o tempo o deram, com muitas alegrias para elas, tal como o levou também, envolto nos seus lamentos e tristezas.
E se, numa perspectiva, aquela saída dos dois trechos da vida temporal tomados conjuntamente foi morte - como realmente foi, pois que tudo o que é temporal é mortal -, que vida por outro lado terá sido essa que finalmente nasceu, já não temporal, tão ruidosamente festejada lá fora? Quem a estava a festejar? Onde?

1.3 – Paremos aqui para considerar de mais perto o belo texto da lenda, tão rico de níveis de sentido, sempre partindo do sentido básico ou literal das palavras, o qual se vai expandindo por meio de um colorido leque de figurações. É que os principais significantes, quase se esquecendo dos seus habituais significados e correspondentes realidades, passam a apontar ou a figurar outros significados e suas próprias realidades. Assim, concretizando, a água amniótica de que fala o texto é figura da inexorável água do tempo, e porventura de outras águas de que adiante se falará; as células intra-uterinas, que riem e depois choram, figuram os familiares e amigos daquele tão querido ser; a sua vida intra-uterina presentifica toda a sua vida mortal, incluindo mesmo essa vida intra-uterina, na qual se desenrola a lenda.
 E então, aqueles ruídos que se ouviam lá fora, ruídos de alegria a festejar um nascimento, pertenciam a quem? Que nascimento era esse? Os referentes a que se pode aludir para responder a estas perguntas parecem envolver-se numa nuvem e por isso serem quase indefiníveis pois até nem são concretos e por isso nem pertencerem a este mundo material e temporal. Ainda assim, podemos dizer que, segundo a fé, se tratará do início de uma vida outra, da vida fora do tempo, para a qual Deus chama graciosamente esse ser humano que morreu e agora outra vez vive mas de outra maneira, só espiritualmente. Isto será a razão dessa ruidosa alegria de Deus e da sua corte celeste, a que muito contidamente se associariam algumas pessoas também “lá fora presentes” – lá fora, não, porque os familiares e amigos que faziam o funeral estavam dentro, dentro do tempo - mas só na sua qualidade de crentes.

Porém, como será possível uma vida nossa sem corpo, fora do tempo, sem a carne e os ossinhos a fazerem-se e depois a crescerem, sem músculos e sem nervos e sem cérebro, enfim sem nada de onde lhe possa florir e se sustentar uma alma, um espírito, uma particular identidade toda feita só de vivências temporais e terrenas?


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