sábado, 15 de março de 2014

209. 3-4 - Luís Vaz, F. Pessoa e o Tempo

3 – Do tempo na acepção de chronos, ou melhor, das vicissitudes ou mudanças temporais nossas e do mundo, fala-nos magistralmente o poema de Camões Mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Mudam-se os tempos, isto é, mudam-se as situações, que são causa ou produto das nossas mutantes vontades e também da natureza, tudo fazendo com que, enfim, todo o mundo seja composto de mudança.
Este nosso Luís Vaz, que venceu o tempo mas por outras razões, bem sabe ele que as mudanças não são um acidente no mundo, mas a sua própria essência, Sabe até e sente que, para ele, no momento em que escreve, elas eram cada vez mais, e cada vez mais corrosivas. Mas não é propriamente o tempo que o corrói, mas sim essas mudanças a que ele e também todos os outros seres materiais e temporais estão por sua essência sujeitos. E sentimo-las tanto porque, além de seres materiais, nós humanos também somos consciência, que se volta para o mundo mas sobretudo para nós mesmos, pacientes dessas mudanças.
Mas quanto ao tempo na acepção de cairós, esse tempo das boas ocasiões e dos momentos oportunos, o meu mestre favorito é F. Pessoa–Caeiro: “O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas / olhando para a direita e para a esquerda, / e de vez em quando olhando para trás …/ E o que vejo a cada momento / é aquilo que nunca antes eu tinha visto, / e eu sei dar por isso muito bem … / Sei ter o pasmo essencial / que tem uma criança se, ao nascer, / reparasse que nascera deveras … / Sinto-me nascido a cada momento / para a eterna novidade do mundo …”  
Já vimos que o presente temporal ainda pertence a chronos. Mas quando, ainda no presente, abrimos uma fenda nessa cadeia do tempo e assim se nos oferece a oportunidade de mergulharmos num agora por assim dizer intemporal, então acontece-nos um novo nascimento. Sem passarmos pelo “corredor do pensamento” e sem colar “ideias às coisas”, querendo só “as coisas que existem, e não o tempo que as mede” como diz e faz Caeiro, vemos tudo a nu, de uma maneira nova e primeira. E nesse mesmo nu olhar a ver as coisas pela primeira vez, nós nos sentimos vivos, acabados de nascer.
O agora é como que a superação do devir temporal em nós. É, na corrente das mudanças (nossas e do mundo) em que vamos, sentirmo-nos ancorados ao ser que realmente também somos, essa cidadela quanto possível inexpugnável.
Como se se despisse de todas as ideias e doutrinas, F. Pessoa, na nudez de Caeiro, fez-se assim nosso sábio mestre e pastor. Ainda que esta nudez contemplativa não possa “por muito tempo” subsistir sozinha, e por isso é que o “pai” de Caeiro inventou outros “filhos” (ver texto 205).

4 – Pode então dizer-se que o poema de Luís Vaz e os versos de Caeiro são intemporais, no sentido em que se podem aplicar em todos os tempos da humanidade: no passado, ainda mais no presente, e porventura mais ainda no futuro.
De facto, dado o ritmo vertiginoso de mudanças, não poucas vezes para pior, as palavras de Camões aparecem-nos como cada vez mais certeiras, à medida que o futuro se vem tornando presente. E quanto mais certeiras forem estas de Luís Vaz, mais apropriadas e válidas serão as de Caeiro, pela óbvia razão de que o ser humano, como indivíduo e como espécie, não pode perder a sua identidade na voragem das mudanças.
Infelizmente, o nosso tempo não corre de feição para pararmos, para descermos ao agora, a fim de, na nudez essencial que somos, nos podermos deslumbrar com a vida. Com efeito, tal como uma ferida que dói muito e por isso exige muita atenção, muitos de nós, assoberbados pelas muitas dificuldades que nos vão assaltando e quase nos submergem, temos de voltar a nossa mente para aí, porque aí é que nos dói, não nos sobejando assim atenção e boa disposição para festejarmos o agora, o agora da vida.

Oxalá as coisas mudem para melhor, e isso devemos tentar. E para vivermos bem, não podemos deixar de ter a oportunidade (cairós) de mergulharmos no agora, assim festejando a vida.

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