sexta-feira, 28 de março de 2014

211 - Olá, Alberto


O dia nasceu no alto da colina,
entornando lento a sua líquida luz
pela ampla encosta até ao vale:

Olá. caro Alberto, Caeiro de sobrenome,
(o olhar à distância, no meio da encosta)
dizes ser “o guardador de rebanhos”: não há mais nenhum?
Se não, é porque o teu rebanho não é de ovelhas e cordeiros,
mas de seres de outra espécie. Queres dizer?
O meu rebanho são os meus pensamentos e ideias,
mas todos afinal feitos só de sensações

Sendo assim só sensações teus pensamentos e ideias,
tu és o cantador das coisas nuas, só coisas:
achas mesmo que o mundo é mais belo assim?
Não! O mundo não é belo nem feio,
porque o mundo é só mundo e nada mais

Assim, sem ideias, mas só com sensações,
tu arredaste o manto com que cobrimos
o mundo e a nós também, e o lançaste fora
perdido num barranco, tu ficando nu …
Quem és tu agora sem o manto que te cobria,
se é que não és assim desde a nascença?
Eu não trago a minha “alma vestida”, e por isso,
não vejo nas coisas algo mais que nuas coisas,
e eu nada mais sou que simplesmente ser consciente

És então só consciente, estás a dizer, e nada mais,
despido nessa nudez, e as coisas também nuas
nem boas nem más nem belas nem feias,
pois lhes tiraste, a elas e a ti também
o manto de ideias que a todos vos cobria.
Mas então, porque é que falas de beleza
e por vezes achas belas as coisas, queres dizer?
Porque é difícil nunca cair nas “mentiras dos homens”
e mais difícil “ser próprio e não ver senão o visível”

Sabes que, se não houvera seres vivos, como nós,
todo o mundo seria pesadamente baço e triste,
sem cores nem sons, sem olores nem sabores…
Tudo isso é importante e só isso quase me basta,
pois eu sou só sensações e consciência do que sinto!

Pois é, caro Caeiro, uns fazem poemas cobrindo
com seus mantos simbólicos as coisas do mundo,
mas outros tecem poemas, como tu intentas,
despindo de todos esses mantos as coisas.
Como eu sou só consciência e sensações,
ou, se quiseres, as coisas consciencializadas,
esses mundos simbólicos nada me interessam

Mas seres (o) guardador de rebanhos, voltamos a dizer,
de rebanhos sem ovelhas nem cordeirinhos,
mas de rebanhos de pensamentos só sensações,
isso não é já cobrir as realidades do mundo
(real guardador de rebanho e real rebanho guardado)
com um manto simbólico ou virtual?
Não é dizeres que, por seres consciência do que sentes,
és o guardador, não das tuas não sentidas ideias,
mas de todas as por ti sentidas coisas do mundo?
………………………………………………………..
………………………………………………………..

Em habituais voltinhas que davas por tua aldeia,
era sempre como se visses pela primeira vez as coisas
e como se, assim as vendo, também de novo nascesses,
místico das coisas da terra, naturalmente saudável e pagão.
Será isto que, liberto de pensamentos e ideias
e só sendo consciência e sensações,
é o conhecer/amar as coisas, por união ou fusão,
compreensão global ou contemplação,
(consciência de uma rosa ou simples rosa consciente)
num agora que, a espaços, parece intemporal?
………………………………………………………

Já vejo, meu Caeiro, já vejo que,
onde quer que estejas não podes falar muito,
ou é só porque o dia deu em declinar.
E tal como na aurora se abriram as pálpebras do dia,
com a luz dos seus olhos também os nossos se abrindo
e com os olhos os outros sentidos,
da mesma sorte agora, cerrando ele os seus olhos,
fechamos nós também os nossos sentidos na noite,
esse leito onde o dia e nós de igual modo dormimos




Nota: Sobre Pessoa e Caeiro, veja ainda os textos 205 e 209.

sexta-feira, 21 de março de 2014

210 - Fado

Andamos colectivamente empurrados
por forças menores ou alheias
a tristeza a saudade o destino
o sebastianismo o quinto império
o fado migalha de património do mundo
sempre o céu baixo de uma sina
Em 85 uma voz clamou
“agora acabou-se o fado”
Mas veio o abandono dos mares e dos campos
vieram as auto-estradas e os estádios estéreis
a pindérica opereta “Fado - a história de um povo”:
só a barriga e as paixões nos conduzem
e os ditames alheios
Mas nós é que, outrora,
por nossa decisão,
descobrimos o mundo
e o tornámos redondo


sábado, 15 de março de 2014

209. 3-4 - Luís Vaz, F. Pessoa e o Tempo

3 – Do tempo na acepção de chronos, ou melhor, das vicissitudes ou mudanças temporais nossas e do mundo, fala-nos magistralmente o poema de Camões Mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Mudam-se os tempos, isto é, mudam-se as situações, que são causa ou produto das nossas mutantes vontades e também da natureza, tudo fazendo com que, enfim, todo o mundo seja composto de mudança.
Este nosso Luís Vaz, que venceu o tempo mas por outras razões, bem sabe ele que as mudanças não são um acidente no mundo, mas a sua própria essência, Sabe até e sente que, para ele, no momento em que escreve, elas eram cada vez mais, e cada vez mais corrosivas. Mas não é propriamente o tempo que o corrói, mas sim essas mudanças a que ele e também todos os outros seres materiais e temporais estão por sua essência sujeitos. E sentimo-las tanto porque, além de seres materiais, nós humanos também somos consciência, que se volta para o mundo mas sobretudo para nós mesmos, pacientes dessas mudanças.
Mas quanto ao tempo na acepção de cairós, esse tempo das boas ocasiões e dos momentos oportunos, o meu mestre favorito é F. Pessoa–Caeiro: “O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas / olhando para a direita e para a esquerda, / e de vez em quando olhando para trás …/ E o que vejo a cada momento / é aquilo que nunca antes eu tinha visto, / e eu sei dar por isso muito bem … / Sei ter o pasmo essencial / que tem uma criança se, ao nascer, / reparasse que nascera deveras … / Sinto-me nascido a cada momento / para a eterna novidade do mundo …”  
Já vimos que o presente temporal ainda pertence a chronos. Mas quando, ainda no presente, abrimos uma fenda nessa cadeia do tempo e assim se nos oferece a oportunidade de mergulharmos num agora por assim dizer intemporal, então acontece-nos um novo nascimento. Sem passarmos pelo “corredor do pensamento” e sem colar “ideias às coisas”, querendo só “as coisas que existem, e não o tempo que as mede” como diz e faz Caeiro, vemos tudo a nu, de uma maneira nova e primeira. E nesse mesmo nu olhar a ver as coisas pela primeira vez, nós nos sentimos vivos, acabados de nascer.
O agora é como que a superação do devir temporal em nós. É, na corrente das mudanças (nossas e do mundo) em que vamos, sentirmo-nos ancorados ao ser que realmente também somos, essa cidadela quanto possível inexpugnável.
Como se se despisse de todas as ideias e doutrinas, F. Pessoa, na nudez de Caeiro, fez-se assim nosso sábio mestre e pastor. Ainda que esta nudez contemplativa não possa “por muito tempo” subsistir sozinha, e por isso é que o “pai” de Caeiro inventou outros “filhos” (ver texto 205).

4 – Pode então dizer-se que o poema de Luís Vaz e os versos de Caeiro são intemporais, no sentido em que se podem aplicar em todos os tempos da humanidade: no passado, ainda mais no presente, e porventura mais ainda no futuro.
De facto, dado o ritmo vertiginoso de mudanças, não poucas vezes para pior, as palavras de Camões aparecem-nos como cada vez mais certeiras, à medida que o futuro se vem tornando presente. E quanto mais certeiras forem estas de Luís Vaz, mais apropriadas e válidas serão as de Caeiro, pela óbvia razão de que o ser humano, como indivíduo e como espécie, não pode perder a sua identidade na voragem das mudanças.
Infelizmente, o nosso tempo não corre de feição para pararmos, para descermos ao agora, a fim de, na nudez essencial que somos, nos podermos deslumbrar com a vida. Com efeito, tal como uma ferida que dói muito e por isso exige muita atenção, muitos de nós, assoberbados pelas muitas dificuldades que nos vão assaltando e quase nos submergem, temos de voltar a nossa mente para aí, porque aí é que nos dói, não nos sobejando assim atenção e boa disposição para festejarmos o agora, o agora da vida.

Oxalá as coisas mudem para melhor, e isso devemos tentar. E para vivermos bem, não podemos deixar de ter a oportunidade (cairós) de mergulharmos no agora, assim festejando a vida.

sexta-feira, 14 de março de 2014

209. 1-2 - Luís Vaz, F. Pessoa e o Tempo


1 – Olá, amigas e amigos! Um dos temas insistentemente versados ao longo da história cultural do Ocidente é o tema do tempo. A este, tem-se-lhe chamado “o brutamontes do tempo” (ver texto 80), tem-se dito que ele é o carrasco dos seres humanos, e chega-se ao ponto de, indo lá atrás ao fundo da nossa cultura ocidental, fazer dele o grande devorador dos humanos, como fazia o deus Cronos aos seus filhos.
Mas não é o deus Cronos – esse que devorava os seus filhos - quem também nos devora a nós. Não é, antes de mais, porque o deus do tempo não é esse Cronos, mas Chronos. Este é que é o deus do tempo, como ainda se pode ver em vocábulos de outras línguas, e também em palavras antigas da nossa maviosa língua: crónica e cronicões são narrativas históricas segundo a ordem temporal dos acontecimentos narrados, e Herculano, por exemplo, ainda conserva a palavra chronicões, segundo a sua grafia etimológica.
         Na realidade, porém, nem é este Chronos-deus-do-tempo, como também nem o próprio tempo, que nos devoram! O que realmente nos devora, se assim metaforicamente quisermos dizer, são as vicissitudes ou mudanças de que somos intimamente feitos! Mas, se elas nos devoram, se nos vão devorando até ao fim, também elas, antes disso e até ao mesmo tempo, nos fazem nascer e crescer: de bebés a crianças, a adolescentes, jovens e adultos, subindo até à mais alta pujança da vida. E, claro, as mudanças, por serem tão evidentes, bem se vêem no nosso rosto, na fala e em todo o corpo, mas também na mente; e tais vicissitudes ou mudanças medimo-las com o tempo. Assim, o tempo é mera medida que inventámos para medir o nosso externo e interno e sempre vital movimento, e também o movimento do mundo. Somos seres materiais de corpo e com corpo, tal como todo o universo, e por isso todos sujeitos a contínuas mudanças, e aquilo que as mede é a medida do tempo.

         2 – Para falarem do tempo, os gregos antigos tinham pelo menos dois vocábulos: chronos, como já ficou dito, e cairós.
         Chronos é o tempo personificado, e também o tempo em geral e no seu conjunto, com as três vertentes que lhe conhecemos: de presente, passado e futuro.
         Percorrendo passos da literatura grega como um bom dicionário nos mostra, a palavra chronos – substantivo comum – significava o tempo todo inteiro no seu conjunto; a duração do tempo; o tempo de antes, ou passado; o resto do tempo, ou futuro; o tempo presente; o tempo infinito, ou tão longo que não se pode contar; e também se empregava nas expressões o tempo da juventude, houve um tempo em que, o tempo suavizará a dor, longo tempo se escoou depois de, no curso do tempo, naquele tempo, muito (ou pouco) tempo depois (ou antes), por todo o tempo; a duração da vida.

         Quanto a cairós, substantivo comum, ele significava o momento oportuno, uma boa ocasião, oportunidade, vir a propósito. Aristóteles escreveu que a primeira juventude, quando a idade está na sua frescura, é o momento mais favorável para desenvolver o corpo.

sexta-feira, 7 de março de 2014

208 - A Longa e Íngreme Escalada de um Yogi

A longa e também íngreme escalada do yogi,
que ocupa e se prolonga por toda a sua vida
tornando transparente em sua divindade o eu superficial,
de oito trechos consta, importantes e distintos:

Nos dois primeiros trechos desta escalada,
como “preliminares morais” para o corpo e para a mente,
deve o yogi abster-se de ferir, mentir, cobiçar, roubar,
ser sensual; e autocontrolar-se, estudar e contemplar o divino.
Com as asanas ou posturas corporais, no terceiro trecho,
a mente cuida do corpo, para que este melhor a sirva.
Vem depois o quarto trecho, em que se treina a respiração,
não vá ela perturbar mas promover o repouso da mente.
Já voltado para o seu mundo interior, no quinto trecho,
fechadas que estão as portas dos sentidos, o yogi
começa a concentrar-se num só objecto.
A mente em repouso, liberta de todos os pensamentos
e concentrada longamente num só objecto, é o sexto trecho.

E eis que se avizinham os píncaros nevados e nítidos 
do mais alto da montanha, com os derradeiros passos:
quando, desprendido do seu eu de pensamentos e desejos,
feito só consciência, o yogi olha absorto para uma flor,
fundem-se o sujeito e o objecto,
sobrando só a flor consciencializada.
E se assim, feito só consciência, ele olhar para si mesmo,
verá que não é eu, mas Eu; que é nada, mas também Tudo,
tendo também cada objecto perdido os seus limites.

Já não é o eu que espera recompensas - já lá vai há muito
a espessura do seu isolamento ou até mesmo solidão -
mas sim Eu aberto, anónimo transcendente e eterno,
tornada visível essência de um eu já sem necessidades,
Eu profundo, infinito, íntima centelha de Deus



Nota: Para este assunto, veja Huston Smith em A Essência das Religiões (Induísmo), aqui seguido e citado.