O
dia nasceu no alto da colina,
entornando
lento a sua líquida luz
pela
ampla encosta até ao vale:
Olá.
caro Alberto, Caeiro de sobrenome,
(o
olhar à distância, no meio da encosta)
dizes
ser “o
guardador de rebanhos”: não há mais nenhum?
Se
não, é porque o teu rebanho não é de ovelhas e cordeiros,
mas
de seres de outra espécie. Queres dizer?
O meu rebanho são os
meus pensamentos e ideias,
mas todos afinal
feitos só de sensações
Sendo
assim só sensações teus pensamentos e ideias,
tu
és o cantador das coisas nuas, só coisas:
achas
mesmo que o mundo é mais belo assim?
Não! O mundo não é
belo nem feio,
porque o mundo é só
mundo e nada mais
Assim,
sem ideias, mas só com sensações,
tu
arredaste o manto com que cobrimos
o
mundo e a nós também, e o lançaste fora
perdido
num barranco, tu ficando nu …
Quem
és tu agora sem o manto que te cobria,
se
é que não és assim desde a nascença?
Eu não trago a minha “alma
vestida”, e por isso,
não vejo nas coisas
algo mais que nuas coisas,
e eu nada mais sou
que simplesmente ser consciente
És
então só consciente, estás a dizer, e nada mais,
despido
nessa nudez, e as coisas também nuas
nem
boas nem más nem belas nem feias,
pois
lhes tiraste, a elas e a ti também
o
manto de ideias que a todos vos cobria.
Mas
então, porque é que falas de beleza
e
por vezes achas belas as coisas, queres dizer?
Porque é difícil
nunca cair nas “mentiras dos homens”
e mais difícil “ser
próprio e não ver senão o visível”
Sabes
que, se não houvera seres vivos, como nós,
todo
o mundo seria pesadamente baço e triste,
sem
cores nem sons, sem olores nem sabores…
Tudo isso é
importante e só isso quase me basta,
pois eu sou só
sensações e consciência do que sinto!
Pois
é, caro Caeiro, uns fazem poemas
cobrindo
com
seus mantos simbólicos as coisas do mundo,
mas
outros tecem poemas, como tu intentas,
despindo
de todos esses mantos as coisas.
Como eu sou só
consciência e sensações,
ou, se quiseres, as
coisas consciencializadas,
esses mundos
simbólicos nada me interessam
Mas
seres (o) guardador de rebanhos, voltamos a dizer,
de
rebanhos sem ovelhas nem cordeirinhos,
mas
de rebanhos de pensamentos só sensações,
isso
não é já cobrir as realidades do mundo
(real
guardador de rebanho e real rebanho guardado)
com
um manto simbólico ou virtual?
Não
é dizeres que, por seres consciência do que sentes,
és
o guardador, não das tuas não sentidas ideias,
mas
de todas as por ti sentidas coisas do mundo?
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Em
habituais voltinhas que davas por tua aldeia,
era
sempre como se visses pela primeira vez as coisas
e
como se, assim as vendo, também de novo nascesses,
místico
das coisas da terra, naturalmente saudável e pagão.
Será
isto que, liberto de pensamentos e ideias
e
só sendo consciência e sensações,
é
o conhecer/amar as coisas, por união ou fusão,
compreensão
global ou contemplação,
(consciência
de uma rosa ou simples rosa consciente)
num
agora que, a espaços, parece intemporal?
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Já
vejo, meu Caeiro, já vejo que,
onde
quer que estejas não podes falar muito,
ou
é só porque o dia deu em declinar.
E
tal como na aurora se abriram as pálpebras do dia,
com
a luz dos seus olhos também os nossos se abrindo
e
com os olhos os outros sentidos,
da
mesma sorte agora, cerrando ele os seus olhos,
fechamos
nós também os nossos sentidos na noite,
esse
leito onde o dia e nós de igual modo dormimos
Nota: Sobre Pessoa e Caeiro,
veja ainda os textos 205 e 209.